Dois dos mais importantes filósofos do século 20 são celebrados nos palcos por Peter Ruzicka e Ella Milch-Sheriff
A. J. Goldmann | The New York Times
HAMBURGO, ALEMANHA - Ópera e filosofia são estranhos companheiros. A teatralidade e o sentimentalismo de Puccini e Verdi, extraordinários, não se prestam exatamente a esclarecer ideias complexas e precisas. No entanto, por coincidência, não apenas um, mas dois novos dramas musicais sobre os principais pensadores do século 20 – dois intelectuais judeus-alemães que fugiram dos nazistas – estrearam na Alemanha nesta temporada. Poucos teriam previsto que Walter Benjamin e Hannah Arendt iriam se unir às fileiras de Don Giovanni e Carmen.
“Não há documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie”, escreveu Benjamin em 1940, ano em que cometeu suicídio na cidade fronteiriça espanhola de Portbou. A poderosa terceira ópera de Peter Ruzicka, Benjamin, escrita para a Ópera Estatal de Hamburgo, onde foi apresentada até 16 de junho, leva-nos através das várias estações no exílio do filósofo em 90 minutos. Do começo ao fim, parece a música do cataclismo: angustiada, indignada, infernalmente surrealista.
O libreto não linear e associativo de Yona Kim – que também dirigiu a emocionante encenação, ambientado no que parece ser um salão decadente do século 19 – muda de Berlim para Moscou e de Paris para Riga. Suas sete ambientações formam uma série alucinante de episódios da vida de Benjamin.
Ele joga xadrez e fala sobre marxismo com Bertolt Brecht (o imperioso tenor Andreas Conrad), discute sobre sionismo com o estudioso da Cabala Gershom Scholem (o determinado baixo Tigran Martirossian) e sonha com um teatro infantil proletário com sua amante letã, Asja Lacis a intensa soprano coloratura Lini Gong). O próprio Benjamin é uma figura acossada e assombrada, cantada em pânico pelo barítono Dietrich Henschel. (Ruzicka bifurca a personalidade de Benjamin acrescentando um duplo falante, interpretado pelo ator Günter Schaupp.)
Escrito para uma grande orquestra, músicos de bastidores, um coro completo e um coro infantil, Benjamin é um importante empreendimento. Com o compositor no poço, a partitura rosnou e crepitou com energia furiosa. A linguagem musical de Ruzicka é heterogênea e fluida – por vezes lírica, dissonante, estridente e esparsa. Às vezes as linhas vocais irregulares parecem laceradas por cordas furiosamente tocadas; em outras, ventos suaves e cordas suportam notas sustentadas pelos solistas ou coro.
A peça central da ópera é um coro infernal adaptado da ópera de 2001 de Paul Ruzicka sobre Paul Celan, o judeu da Europa Oriental, sobrevivente do Holocausto que é considerado um dos maiores poetas de língua alemã do século 20. Os gritos estridentes de “Jerusalém!” Parecem expressar tanto um desejo de fuga quanto as tendências messiânicas no pensamento não ortodoxo de Benjamin. O trabalho será apresentado na próxima temporada em Heidelberg, na Alemanha: Uma ópera tão robusta e impressionante merece ser vista amplamente.
Hannah Arendt tem uma participação pequena em Hamburgo, cantando um acompanhamento de Baudelaire para Benjamin quando ele tira a vida, mas ela é a protagonista na pitoresca cidade bávara de Regensburg, onde a nova ópera da compositora israelense Ella Milch-Sheriff, Die Banalität der Liebe (A Banalidade do Amor) dramatiza o famoso – ou infame – romance entre Arendt, a grande teórica política, e Martin Heidegger, o imponente filósofo alemão e membro do Partido Nazista.
Ao contrário de Ruzicka, Milch-Sheriff opta por uma narrativa direta e música que harmonize. Em vários pontos, a música é exuberante, irônica e cheia de citações; há um pouco de Wagner, Mahler e até Bernstein na música. Mas a falta de uma linguagem harmônica ou melódica unificadora é apenas uma das partes que torna essa obra de duas horas, moderadamente divertida, frequentemente exasperante, uma viagem atribulada.
Uma das inspirações mais estranhas de Milch-Sheriff é fazer do jovem Heidegger um tenor lírico (Angelo Pollak). Nós o encontramos, junto com Arendt (cantada como uma jovem com a pureza virginal de Anna Pisareva e na meia-idade por Vera Semieniuk, uma imponente mezzo), em 1924, durante uma palestra de filosofia em Marburg.
Em uma cena espirituosa em sala de aula, Milch-Sheriff define uma passagem de Ser e Tempo de Heidegger para a música que é paródia de uma serenata, completa com acompanhamento de bandolim. A cena é interpretada principalmente por risos – a linguagem de Heidegger é notoriamente complexa – e não há muita discussão sobre sua filosofia no que segue. Ele é apresentado menos como um pensador do que como um Svengali que seduz e humilha sua jovem discípula judia. Seu romance no palco é cheio de toques excêntricos, incluindo sadismo e masoquismo.
O libreto de Savyon Liebrecht, baseado em sua peça, salta fluidamente das décadas de 1920 a 1970 e da Alemanha para Israel e Estados Unidos. Em 1933, quando os nazistas nomeiam Heidegger como reitor da Universidade de Freiburg, Milch-Sheriff substitui o tenor arrogante por um barítono mefistofélico (Adam Kruzel).
A produção de Itay Tiran faz um excelente trabalho ao lidar com os frequentes deslocamentos geográficos e temporais. Enquanto suas imagens são muitas vezes impressionantes, a produção tem seus excessos. Durante o discurso inaugural de Heidegger na exaltação dos nazistas em Freiburg, estrelas amarelas de David chovem sobre o público, e a cena do julgamento de Adolf Eichmann é uma peça kitsch digna de Ken Russell.
Gideon Hausner, o promotor-chefe de Israel, tem uma estrela de David estampada na testa, enquanto suas mãos estão estendidas à maneira da bênção sacerdotal judaica (não muito diferente da saudação vulcana, que a inspirou). É uma caricatura sugadora de sangue vinda direto de Os Protocolos dos Sábios de Sião. Milch-Sheriff marca a cena com órgão, fazendo com que o julgamento pareça um auto-de-fé. Enquanto isso, é Arendt, não Eichmann, que ocupa a famosa caixa de vidro, respondendo à acusação de que ela “defendeu” Eichmann por amor a Heidegger.
A ópera não chega a acusar Arendt, que cunhou a polêmica frase “banalidade do mal” para ajudar a explicar os crimes do Terceiro Reich, de dar livre trânsito aos nazistas porque ela adorava a cultura alemã (e sua grande personificação, Heidegger).
Mas em uma nota do programa, Milch-Sheriff escreve que sua ópera se destina a culpar, entre outros, os judeus que continuaram a “venerar a cultura alemã e, portanto, seus próprios assassinos”. É uma falsa dicotomia: pensadores judeus como Arendt e Benjamin eram parte fundamental da cultura cujo brilho os nazistas procuravam extinguir. Isso é que é o lamentável em tudo. / Tradução de Claudia Bozzo
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