Jason Stanley, professor na Universidade de Yale e autor de 'How Fascism Works', mostra como identificar o fascismo atual
Lúcia Guimarães | O Estado de S.Paulo/ Aliás
Uma nova pesquisa revelou que 8 em 10 americanos temem pela democracia no país e dois terços acreditam que o sistema democrático está enfraquecido. A pesquisa foi encomendada por um grupo bipartidário, o Democracy Project, que envolve o ex-presidente George W. Bush e o ex-vice presidente Joe Biden. A mais longa campanha presidencial da história dos Estados Unidos, que começou em 2015, reintroduziu no discurso político americano palavras que muitos acreditavam pertencer ao passado. Especialmente duas palavras carregadas de temor histórico, fascismo e nazismo. Mas o triste retorno não se deveu apenas à vitimização desonesta de tragédias históricas, como usar as palavras para xingar qualquer pessoa não identificada com a esquerda.
Simpatizantes do fascismo e do nazismo não foram erradicados nos EUA. A diferença, na eleição de 2016, é que eles deram apoio aberto a um candidato e passaram a ter mais visibilidade em comícios e na mídia digital de direita, inclusive no site do então futuro alto assessor presidencial Steve Bannon. E o candidato republicano não se indignava com o apoio. Republicanos moderados e democratas liberais tentaram ver neste súbito protagonismo de extremistas antes marginalizados uma anomalia passageira. Afinal, como disse o ex-diretor do FBI James Comey, a sem precedentes interferência russa na eleição a favor do ex-apresentador de O Aprendiz podia ser investigada sem alarde porque nem ele, nem boa parte dos observadores políticos imaginavam que Hillary Clinton não seria eleita.
Mas, mesmo antes de começar a campanha presidencial, a semente do renovado namoro com o fascismo foi plantada pelo birtherismo, teoria conspiratória segundo a qual o primeiro presidente negro do país não teria nascido no Havaí e sim no Quênia. Em março de 2011, Donald Trump disse à rede ABC que estava pensando em se candidatar e, sim, era preciso duvidar que Obama era cidadão americano, uma acusação que manteve acesa até, sem a menor sinceridade, renunciar a ela dois meses antes de ser eleito.
O birtherismo chamou atenção do filósofo e professor da Universidade de Yale Jason Stanley, um filho de refugiados da 2.ª Guerra e neto de Ilse Stanley, a atriz judia alemã que salvou centenas de judeus posando como oficial nazista em campos de concentração e narrou suas memórias em The Unforgotten, publicado em 1957. Jason Stanley lançou, no final de 2016, o elogiado How Propaganda Works (Como Funciona a Propaganda), um livro sobre a fragilidade das democracias sob a difusão de propaganda.
Em setembro, sai nos Estados Unidos How Fascism Works: The Politics of Us and Them(Como Funciona o Fascismo: A Política de Nós e Eles), a nova obra do filósofo. O livro oferece contexto e referências históricas, mas não é uma história do fascismo, é um guia de identificação de políticas fascistas no mundo contemporâneo. Numa entrevista exclusiva ao Aliás, Jason Stanley refletiu sobre o peso da palavra fascismo. Ela teria perdido o impacto? “Não”, responde resoluto. “Era a palavra apropriada em 2016. É possível ser fascista, como já aconteceu na Inglaterra, na década de 1930, e não se engajar em crimes.” O autor lembra que a origem italiana da palavra (fascio, feixe, ajuntamento) faz com que seja evitada por nacionalistas brancos, os neofascistas americanos.
Apesar do mea culpa coletivo pela complacência com o autoritarismo anunciado na campanha, o professor Stanley cobra mais sobriedade dos jornalistas. “Veja a semana que passou, quanto tempo foi dedicado à jaqueta da primeira dama, que dizia ‘Eu não me importo e você?’ Alguém notou o plano de cortar o programa de nutrição que atende a 12% da população? Os jornalistas aderiram a esta política simbólica preferida dos dependentes químicos da indignação,” denuncia.
Stanley cita Hungria, Polônia, Turquia e Rússia como exemplos de países onde políticas fascistas têm sucesso pela via eleitoral. Assim como no slogan da campanha americana de 2016, Faça a América Grande de Novo, que romantiza o país dos anos 1950, um recurso crucial da política fascista é promover a volta ao passado que não aconteceu. “É o passado mítico, glorioso”, explica. “Daí vem o outro ingrediente importante do fascismo que é a oposição à ciência e a uma educação pública liberal. A ciência e a educação ampla desmentem o passado fictício. A escola pública é inimiga, coloca pessoas de grupos e classes diferentes em contato e, se você interage com o outro, tem menos chances de considerá-lo uma ameaça.”
Como explicar a devoção cultista do eleitor do atual presidente diante de políticas como as que cortam acesso a assistência médica, benefícios e a guerra comercial que deve provocar alta de preços e desemprego? Afinal, dizia o clichê, na Itália de Benito Mussolini, ao menos os trens estavam sempre no horário. A devoção, afirma Jason Stanley, é racial, ilustrada, segundo ele, por 53% de mulheres brancas que votaram no presidente e mais de 90% de mulheres negras que votaram em Hillary Clinton. Mas, se o patriarcado é um dos elementos do fascismo, como ele explica tanto apoio feminino a Trump? De novo, raça, ele afirma. O patriarca protege o grupo interno da ameaça externa.
No epílogo de How Fascism Works, Stanley responde à possível crítica de que exagera o retrocesso democrático em curso. O problema da normalização é real, ele argumenta, e cita um estudo recente de dois acadêmicos de Yale sobre o “julgamento da normalidade.” Nossa percepção do que é normal depende, além de nossos princípios, do que consideramos estatisticamente normal. “Quando a crueldade se torna mais frequente,” ele diz, como no caso das crianças tomadas dos pais na fronteira, “ela se torna mais aceitável. É um caminho para transformar uma política fascista numa realidade fascista.”
Pergunto ao professor Stanley, que tem alunos entre 18 e 21 anos e dá um curso chamado Propaganda, Ideologia e Democracia, se está otimista com a consciência democrática de seus estudantes. “Não”, dispara. “Há dois anos, minhas turmas estavam perturbadas com a direção da nossa política. Os calouros que entraram este ano não conheceram outro presidente. Não têm memória, parecem achar isso tudo normal.”
Jason Stanley indica como reconhecer um fascista em dez etapas:
Fetiche do passado
A gênese do fascismo está no passado mítico, quando havia pureza étnica, religiosa ou cultural. A mitologia é intencional, para provocar nostalgia pelo que não aconteceu.
Propaganda
Criar um problema, como uma crise de imigração fictícia e unificar um grupo em torno do combate à invasão de estrangeiros.
Anti-intelectualismo. Para erodir o discurso público bem informado, é preciso minar a ciência, a educação liberal, o conhecimento especializado.
Irrealidade
Uma vez que o anti-intelectualismo é bem sucedido, o debate racional é substituído por medo e raiva, o estímulo de um sentimento de perda para o qual é preciso encontrar culpados.
Hierarquia
A natureza impõe hierarquias de domínio que são incompatíveis com a aspiração de igualdade diante da lei que vinha se expandindo sob a democracia liberal.
Vitimização
Aumento de representação de minorias provoca um sentimento de vítima entre maiorias pressionadas a compartilhar poder. O coração do fascismo é lealdade à tribo – étnica, religiosa, cultural.
Lei e ordem
Esse slogan mascara a licença para violar a lei e a ordem. Impunidade de assassinatos policiais, abusos carcerários são vistos como necessários para proteger a sociedade virtuosa.
Ansiedade sexual
Se o demagogo é o pai da nação, qualquer ataque ao patriarcado e à família tradicional é uma ameaça. É preciso sexualizar o outro com fantasias de agressão e “desvio” sexual. Hitler dizia que os judeus conspiravam para usar soldados negros para estuprar as puras mulheres arianas. Linchamentos de negros no sul dos EUA ocorriam pelo simples boato de que um negro teria tentado flertar com uma mulher branca.
Nós e os outros
É preciso desumanizar segmentos da população, o “outro” como imigrantes latinos, muçulmanos, o que ajuda a justificar o tratamento destes grupos.
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