Psicólogo e linguista se baseia em dados e estatísticas sobre o desenvolvimento humano nos últimos séculos
Paulo Nogueira*, O Estado de S. Paulo / Aliás
O psicólogo e linguista Steven Pinker é um espécime raro de intelectual público. Inúmeros pensadores contemporâneos têm uma prosa na qual, quando finalmente se dignam a concluir a resposta, ninguém mais lembra qual era a maldita pergunta. Já a obra deste professor de Psicologia em Harvard (e até 2003 diretor do Centro de Neurociência do MIT) é de uma limpidez diamantina, sem sacrificar uma vírgula ao rigor acadêmico.
O Novo Iluminismo é um sucedâneo de Os Anjos Bons da Nossa Natureza (memorável, apesar do título meio brega). Agora Pinker postula que a revolução epistemológica do século 18 ajudou a criar um mundo mais saudável, próspero, pacífico e democrático. E receita umas recauchutagens.
Primeiro, uns duros pingos nos is: “Os iluministas foram homens e mulheres de sua época. Alguns eram racistas, machistas, escravistas ou duelistas. Algumas das questões que os preocupavam são quase incompreensíveis para nós, e eles tiveram muitas ideias tolas junto com as brilhantes.
Nasceram muito cedo para apreciar algumas bases na nossa compreensão moderna da realidade. Não é demérito para os iluministas identificarmos algumas ideias cruciais a respeito da condição humana e da natureza do progresso que conhecemos e eles não. Essas ideias, proponho, são: entropia, evolução e informação.”
Voltaire, talvez a quintessência do Iluminismo, zoou com o otimismo em Cândido, no qual o personagem do doutor Pangloss é uma sátira ao filósofo alemão Leibniz, para quem este era “o melhor mundo possível”. Mas Pinker não usa lentes cor de rosa. Por exemplo, se recusa a permitir que um neandertal o tire do sério: “Neste momento, meu país é governado por pessoas que têm uma opinião sombria sobre o nosso tempo. Mas este livro não trata do 45.º presidente dos EUA. Só mostrarei que essa avaliação do mundo é errada.”
Como realçou Mark Lilla, a ideia de um progresso cumulativo (ainda que com solavancos contingentes) é repulsiva para extremismos reacionários e revolucionários. Os primeiros se embevecem com uma mítica Idade de Ouro no passado, enquanto os segundos salivam por um teleológico porvir radioso. E é aí que Pinker lhes puxa o tapete: “Desde o Iluminismo, a expectativa de vida em todo o mundo aumentou de trinta para 71 anos e, nos países mais afortunados, para 81.
Quando o Iluminismo começou, um terço das crianças nascidas nas partes mais ricas do mundo morria antes do quinto aniversário; hoje, esse destino está reservado para 6% das crianças das regiões mais pobres. Suas mães também foram libertadas da tragédia: nos países mais ricos, 1% delas não sobrevivia ao parto, uma taxa que é o triplo da dos países mais pobres de hoje, que continua a cair. A proporção da humanidade que vive em extrema pobreza caiu de quase 90% para menos de 10% e, durante o período de vida da maioria dos leitores deste livro, pode aproximar-se de zero.”
Este livro foi alfinetado por gregos e troianos – o que é salutar. Afinal, o pessimismo está tão entranhado no espírito ocidental (sem falar na ignorância crassa) que poucos nos recordamos de quão “pobre, ruim, bruta e curta” (para usar a expressão famosa de Hobbes) foi a vida da esmagadora maioria das pessoas praticamente até ontem.
À esquerda, John Gray acusou o autor de “utilitarismo tosco”, “neoliberalismo” e “amante da humanidade em abstrato”. Pelo contrário, Pinker apoia intervenções pragmáticas na economia (sobretudo na forma de gastos sociais). Porém, indica que o progresso não foi “apenas” material: atitudes e costumes mudaram muitas vezes para melhor. Por exemplo, no abandono de preconceitos contra mulheres e minorias étnicas: todo o Ocidente proibiu a discriminação e descriminalizou a homossexualidade. Quanto à “abstração”, Pinker insiste que a noção de que nossas existências são individuais (“acima da glória da tribo, raça, nação ou religião”) é a vacina contra as engenharias coletivistas de tantos reis filósofos do século 20, com seus totalitarismos genocidas.
À direita, Pinker levou caneladas por seu ateísmo, seu “cientificismo” e por “negligenciar o papel das paixões”. Todavia, ele não crê que só a ciência possa elucidar a condição humana, decifrando emoções através de processos químicos. “Confunde-se a defesa da razão com a afirmação implausível de que os seres humanos são agentes perfeitamente racionais.”
O alerta de Pinker é que o legado iluminista, embora inestimável, não é imperecível: “Realizações humanas, e não direitos cósmicos inatos. Sabemos que países podem regredir a condições primitivas.” A funesta pós-verdade arrisca abrir uma fissura no baluarte iluminista. Ao brandir que “não existe verdade” (mas apenas narrativas e os rebolados mais ou menos bonitinhos da intertextualidade), o desconstrucionismo e o pós-modernismo podem minar ou até degradar a autoridade do conhecimento e do estudo – portanto, da razão, substituindo-a pelo relativismo moral e epistemológico. O resultado são as realidades solipsistas. Já que nada corresponde ao real, cada um que acredite no que quiser e que todo mundo se exploda.
Por tudo isso, é evidente a oportunidade de O Novo Iluminismo. Ainda mais numa altura em que, no Brasil, o debate político tantas vezes se reduz a impropérios ocos vociferados por todos os lados das barricadas, com a profundidade de um dedal.
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*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)
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