A
exemplo de Bolsonaro, ministros brigam em público e mostram governo perdido
Até
para o padrão de balbúrdia e inoperância seguido pelo governo de Jair Bolsonaro
desde seu início, é espantoso o grau de entropia observado nas últimas semanas.
Conflitos
intestinos entre ministros, ataques públicos a adversários reais ou imaginários
e intermináveis intrigas palacianas revelam, bem mais que divergências em torno
de ideias ou propósitos, uma administração sem rumo.
Um destampatório
do titular da Economia, Paulo Guedes, em audiência no Congresso, foi
o mais recente episódio do gênero.
Ao
discorrer mais uma vez sobre sua cisma em recriar um imposto nos moldes da
velha CPMF, Guedes descambou na quinta-feira (29) para uma diatribe contra a
federação dos bancos, que estaria a financiar um “ministro gastador”
—presumivelmente, Rogério
Marinho (Desenvolvimento Regional).
Noticiou-se
que, apenas dois dias antes, Bolsonaro pedira um pacto de
silêncio a seu primeiro escalão, na esteira de um entrevero
entre Ricardo Salles (Meio Ambiente) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de
Governo). Convenha-se, porém, que o exemplo de cima não ajuda.
Desde
que veio a público, poucos meses atrás, o vídeo da fatídica reunião em que o
presidente da República indicava seu intento de interferir na Polícia Federal,
o país conheceu sem disfarces o chefe inseguro e rude, que exigia em meio a
palavrões a fidelidade canina de seus auxiliares.
Não
poucos, na ocasião, trataram de corresponder de imediato a tais expectativas
—no caso mais ruidoso, o então titular da Educação, Abraham Weintraub, defendeu
a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal, o que lhe custaria o cargo
depois.
Embora
tenha recuado nos ataques às instituições republicanas, Bolsonaro nunca
abandonou a rotina de bravatas, declarações impensadas e desautorizações em
público de ministros. Sente-se visivelmente confortável no caos que patrocina —e
que não basta para disfarçar a inação de seu governo.
Tanto
quanto pode, terceiriza responsabilidades, como se viu na reforma da
Previdência conduzida pelo Congresso e, agora, no combate à pandemia, deixado a
cargo de governadores e prefeitos.
Num
regime presidencialista, entretanto, a omissão do chefe de Estado e a
ineficácia de sua equipe cedo ou tarde resultam na paralisia em áreas cruciais
—como se vê hoje na agenda econômica, a despeito dos riscos crescentes para a
recuperação do país e a própria sobrevivência política do governo.
Em
artigo recente publicado no jornal Correio Braziliense, o general Otávio do
Rêgo Barros, ex-porta-voz de Bolsonaro, falou de governantes que passam a
rejeitar a discordância e “são tragados pelos comentários babosos dos que o
cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião”. Não foi
preciso citar nomes.
Freio à boiada – Opinião - Folha de S. Paulo
Liminar
do STF derruba medida de Salles, reflexo da desmoralização do ministro
O
Supremo Tribunal Federal impôs, ao menos por ora, um freio à boiada. A ministra
Rosa Weber concedeu liminar
para suspender uma resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) que
permitia a exploração de mangues e restingas do país.
No
que pode ser um precedente importante, a magistrada entendeu que revogar normas
ambientais —como faz amiúde, no governo Jair Bolsonaro, o desastroso ministro
Ricardo Salles— cria um estado inconstitucional de “anomia e descontrole
regulatório”.
Tampouco
é cabível dispensar o licenciamento ambiental para atividades com potencial
poluidor, considerou a ministra com base em diretrizes da política nacional
ambiental e em compromissos internacionais assumidos pelo Brasil.
Com
a decisão, voltam a valer resoluções do Conama revogadas por Salles em
setembro. Além da proteção a mangues e restingas, ficam restabelecidas normas
de proteção a áreas no entorno de reservatórios artificiais e sobre
licenciamento ambiental para empreendimentos de irrigação.
O desmonte
promovido pelo ministro não se dá somente nas regras ambientais, mas também nos
órgãos que deveriam redigi-las e colocá-las em prática.
Presidido
por Salles, o Conama fora reformulado para reduzir a representação das
organizações da sociedade civil (de 23 para 4 assentos) e dos estados (de 27
para 5), tornando o órgão mais amigável aos anseios do governo federal.
A
esta altura, Salles já se tornou um estorvo para o próprio governo, o que torna
contraproducente sua permanência no Executivo federal. Sua imagem já era
péssima antes de vir a público a gravação em que defende aproveitar a pandemia
para “ir passando a boiada” sobre a regulação ambiental.
De
lá para cá, a constatação de que levou a cabo a infame estratégia, bem como as
cifras dramáticas de queimadas e desmatamento, tornam qualquer ato seu objeto
de desconfiança e contestação.
A
desmoralização do ministro se estende em conflitos públicos com um colega de
governo, o ministro Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) e com o
presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Pior, reflete-se
também nas relações do Brasil com o restante do mundo.
Crise de confiança acelera inflação dos mais pobres – Opinião | O Globo
Para
evitar que os preços subam mais para quem ganha menos, Bolsonaro precisa
recobrar saúde fiscal do Estado
A
inflação voltou a abalar com força o orçamento das famílias mais pobres. Em setembro,
a alta nos preços foi muito maior para os grupos familiares com renda
domiciliar abaixo de R$ 1.650 mensais (0,98%) que no conjunto mais rico da
população (0,29%).
O
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada calcula que, de janeiro a setembro, a
inflação das famílias mais pobres aumentou 2,5%, enquanto, no grupo de maior
renda, subiu 0,2%. A intensidade da corrosão na renda dos mais pobres tem
origem na alta dos alimentos, entre eles óleo de cozinha (28%), arroz (18%) e
leite (6%). O quadro ocorre num ciclo recessivo, agravado pelos efeitos da
pandemia. Não há dúvida de que o país empobreceu.
Uma
evidência — que também pressiona a inflação — é a desvalorização do real, de
quase 42% no ano em relação ao dólar. Outro indício é a fila de 66 milhões de
pessoas dependentes do auxílio emergencial de R$ 600 mensais, que acaba em
dezembro. Há também 12 milhões de desempregados sem perspectivas.
O
presidente Jair Bolsonaro tem demonstrado incômodo com as cobranças sobre o
ritmo da inflação. Respondeu grosseiramente a um eleitor que pediu ação para
conter a alta de preços do arroz. Mandou-o comprar na Venezuela, que tem
liderado as compras do produto brasileiro. Na sequência, apelou aos produtores
agrícolas para “deixar um pouco da produção no Brasil”.
É
mais uma manifestação da ignorância do presidente, que revela desconhecer o
mecanismo de gangorra por meio do qual o câmbio flutuante equilibra a demanda
maior por produtos no exterior e protege o mercado interno da alta nos preços.
Com termos de troca mais favoráveis aos exportadores, o real deveria ter se
valorizado, isolando a economia da flutuação internacional nos preços. Se o
dólar se mantém alto, é por força do movimento de fuga de capital, resultante
da desconfiança do investidor sobre a saúde fiscal do Estado brasileiro.
Bolsonaro
pode fingir que não vê, não sabe nem quer saber, mas não pode evitar os fatos:
o dólar fortalecido vem sendo repassado aos preços nos supermercados e feiras
livres. O item “alimentação no domicílio” d o Índice Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA) subiu 15% em 12 meses. O avanço da percepção de alta na
inflação entre os pobres também é problema novo para o governo. Cedo ou tarde,
deverá ter consequência política.
A
inflação não passa da expressão aritmética dos desequilíbrios estruturais do
Estado, que já custa quase 40% da riqueza produzida pelo país. Bolsonaro se
mostra incomodado com o assunto, mas se mantém inerte. Não lidera as reformas
necessárias para o país recobrar a credibilidade no campo fiscal. É difícil até
acreditar que consiga entender a importância delas para seu próprio futuro
político, já que frequentemente atrapalha a agenda legislativa. O presidente se
tornou o principal vetor da crise de confiança que resulta em inflação.
Supervisão do MEC é vital para consolidar o ensino à distância – Opinião | O Globo
Só
a qualidade pedagógica dará sustentação ao grande crescimento das matrículas
nos últimos anos
O
ensino à distância passou a chamar atenção na pandemia como única maneira
segura de tentar evitar atraso na formação dos estudantes. Também expôs a
desigualdade brasileira no acesso a serviços de internet em condições técnicas
mínimas, que permitam a professores ministrar aulas e aos alunos assistir. É
certo que, no balanço destes meses, já se pode concluir que o ensino remoto é
uma ferramenta vital para um país de grandes dimensões territoriais e baixos
índices educacionais. Porém ele necessita da supervisão do MEC para ser uma
fonte de educação de qualidade.
A
importância desse meio de instrução, até a pandemia usado principalmente no ensino
superior, ficou nítida com a divulgação do Censo Escolar de 2019, pelo
Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). No ano
passado, quase 40% dos que passaram no vestibular optaram por se matricular em
cursos à distância. Em 2009, eram apenas 16,1%, ou 330 mil matriculados. Agora,
dez anos depois, eles são um milhão e meio.
Há
diversas explicações para o crescimento, entre elas a possibilidade que alguém
pode ter de trabalhar ou tratar de outros afazeres sem abandonar os estudos.
Outra: as mensalidades são mais baratas. No setor público, o ensino à distância
recebeu grande impulso no governo Temer, quando o MEC permitiu que instituições
particulares bem avaliadas pudessem, sem autorização prévia, abrir polos de
ensino remoto — centros de apoio aos alunos com bibliotecas, laboratórios,
salas para professores etc.
A
principal dificuldade, como costuma acontecer sempre que algo cresce com
rapidez, é garantir a qualidade na expansão. Mantê-la é o desafio de todas as
escolas na pandemia. Como lembra o pesquisador Carlos Eduardo Bielschowsky, em
artigo publicado na Revista Brasileira de Política e Administração da Educação,
entre 2007 e 2010 houve intensa supervisão dos cursos pela Secretaria de
Educação a Distância (SEED) do MEC. A fiscalização descredenciou várias
instituições de ensino, num movimento de saneamento necessário. De acordo com
Bielschowsky, a partir de 2011 os controles voltaram a ser relaxados.
Será
lastimável se o grande aumento da procura pelo ensino remoto for apenas uma
bolha a explodir depois numa grande decepção. Trata-se de uma esperança de
acelerar a qualificação, num país no qual apenas 21% da população entre 25 e 34
anos têm curso superior, ante a média de 44% para os países da Organização para
a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nem é preciso que o MEC parta
do zero para transformar o ensino à distância em instrumento de melhoria da
educação brasileira. O ministério já tem experiência no assunto.
A China se apruma – Opinião | O Estado de S. Paulo
Após quatro dias de conclave, o Comitê Central do Partido Comunista Chinês apresentou as linhas gerais do novo Plano Quinquenal econômico e social. Os detalhes serão conhecidos nas próximas semanas e o Plano será formalizado no ano que vem. Mas o documento já reflete os efeitos da pandemia e das tensões comerciais internacionais sobre o regime chinês.
O
Plano Quinquenal é um resquício do leninismo soviético. Seria o mais próximo de
um “programa eleitoral”, se a República Popular da China fosse de fato uma república
e não uma ditadura de partido único.
O
Plano de 2016 asseverava o objetivo do Plano anterior de transformar a China
numa “sociedade moderadamente próspera”, com uma meta ambiciosa de redução da
dívida e crescimento em torno de 6,5% ao ano. Ao contrário dos outros Planos, o
atual não estabelece uma meta de crescimento, mas as estimativas apontam para
algo como 5% ao ano. A redução é efeito não tanto da pandemia, mas sobretudo
das “instabilidades e incertezas” resultantes da hostilidade comercial liderada
pelos EUA.
Analistas
chineses preveem que o resultado das eleições americanas não afetará tanto a
intensidade desta hostilidade, mas a sua forma. Uma nova gestão de Donald Trump
pode recrudescer as pressões unilaterais em favor de condições comerciais
vantajosas aos EUA, ao passo que uma gestão de Joe Biden talvez seja menos
agressiva no confronto direto, mas mais capaz de coordenar resistências
multilaterais ao regime chinês, sobretudo em questões ligadas aos direitos
humanos.
Este
“ambiente internacional cada vez mais complicado” explica a ênfase do Partido
naquilo que chama “Estratégia de Circulação Dual”, ou seja, manter o esforço de
integração da China à economia globalizada e, ao mesmo tempo, beneficiar-se
disso para estimular o consumo interno em busca de mais “autossuficiência” e
redução da desigualdade.
A
estratégia dedica particular atenção à corrida tecnológica. Prevendo a
possibilidade de limitações às importações de insumos tecnológicos e à
exportação de sua tecnologia, o Partido insiste na prioridade de atingir
“grandes saltos em tecnologias cruciais” atualmente dominadas pelos EUA.
Outro
ponto importante é o compromisso climático. A China, de longe o maior emissor
de carbono do mundo, respondendo por 28% das emissões globais, se compromete a
atingir a neutralidade até 2060. A meta é distante e os meios precisam ser
detalhados. Mas a simples fixação de um prazo já implica um salto adiante,
fortalece os esforços de ativistas e outras jurisdições para promover suas
próprias medidas de redução e mostra que o cerco está se fechando para
governantes negacionistas, como Jair Bolsonaro.
Do
ponto de vista político, o Plano consolida inequivocamente a perpetuação no
poder do secretário-geral do Partido, Xi Jinping. Em 2017 o Parlamento removeu
da Constituição o limite de dois mandatos. O próprio Xi cuidou para que fosse
embutido no Plano uma espécie de “Plano de 15 anos” para uma “Grande Nação
Socialista Moderna”, sugerindo indisfarçavelmente o comando vitalício do líder
mais poderoso desde Mao Tsé-tung. O fato de que não foi apontado nenhum civil
como vice-secretário do Partido, tradicionalmente o sucessor do
secretário-geral, confirma essa expectativa.
Assim,
o Plano não traz surpresas: nos próximos anos a China fortalecerá sua
autocracia, continuará sua ascensão como potência econômica global (ainda que
num passo mais moderado) e investirá pesadamente em inovação tecnológica. Mas
isso num ambiente comercial cada vez mais volátil em comparação às últimas
décadas. Para países como o Brasil, esse cenário redobra a necessidade de
habilidade diplomática, seja para distinguir entre interesses econômicos comuns
e dissensões político-ideológicas de modo a garantir que uma área não interfira
indevidamente na outra (tarefa particularmente delicada quando se lida com um
capitalismo de Estado), seja para defender os interesses nacionais em condição
de equidistância na disputa geopolítica entre China e EUA.
O impacto fiscal sobre a educação – Opinião | O Estado de S. Paulo
Levantamento
projeta queda de tributos vinculados ao setor que pode chegar a R$ 39,8 bi
O impacto fiscal da pandemia sobre a educação pública é duplo: por um lado, a queda na arrecadação leva à contração da receita, por outro, as escolas precisam realizar gastos adicionais para garantir, entre outras coisas, a reposição da merenda às famílias, o acesso ao conteúdo no ensino remoto e as adaptações sanitárias nas instalações de ensino presencial. Some-se a isso o fato de que muitos pais têm retirado seus filhos de escolas privadas matriculando-os nas públicas.
O
levantamento feito pelos institutos Unibanco e Todos Pela Educação sobre O Impacto
Fiscal na Educação Básica projeta uma queda de tributos
vinculados à educação das redes estaduais e municipais que pode variar de R$
13,2 bilhões, no cenário mais otimista, a R$ 39,8 bilhões, no mais pessimista.
É
importante notar que essas perdas não são homogêneas. Os Estados das Regiões
Nordeste, Sudeste e Sul (mais dependentes da indústria e serviços) têm tido
perdas mais relevantes, enquanto os do Centro-Oeste e do Norte (mais ligados à
agropecuária) têm mantido ou mesmo ampliado suas receitas. A arrecadação de
Mato Grosso, por exemplo, aumentou 15% em relação a 2019.
Já
em relação aos gastos com ações extraordinárias de enfrentamento à pandemia, o
levantamento estima que podem oscilar, conforme a variação do tempo de
normalização, de R$ 2,1 bilhões a R$ 5,3 bilhões.
“Diante
deste cenário, os ganhos previstos com o novo Fundo de Manutenção e
Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) no próximo ano não serão
suficientes para dar conta de equilibrar a queda na arrecadação tributária em
decorrência da pandemia, mesmo no cenário mais otimista”, adverte Ricardo
Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco. “Nesse sentido,
para além da execução de uma boa gestão orçamentária, é fundamental que
Legislativo e Executivo atuem para garantir a recomposição desse orçamento de
forma a evitar o colapso da educação pública brasileira.”
As
entidades dedicadas à educação cumprem seu papel ao alertar os gestores
públicos sobre as perdas e pleitear sua recomposição. Parlamentares e
lideranças do Poder Executivo também devem cumprir o seu, ponderando com toda
gravidade estes alertas. Mas cabe-lhes também cuidar com prudência da coisa
pública como um todo.
Que
a educação é uma prioridade não se discute. Mas também o são comida na mesa,
saúde, moradia e segurança. E, por mais abstrato e indigesto que pareça ao
grande público, tudo isso depende do equilíbrio fiscal. Sem ele não haverá
investimentos; sem investimentos não haverá crescimento; e sem crescimento não
haverá empregos.
Antes
de falar em distribuição quantitativa de recursos, é preciso garantir que foram
exauridas todas as medidas para qualificar e otimizar os recursos existentes.
Nesse
sentido, é urgente que o Congresso aprove com a maior celeridade possível a lei
de regulamentação do Fundeb, estabelecendo um bom desenho redistributivo que
garanta a destinação adequada dos recursos da União às redes de ensino mais
vulneráveis.
Outra
medida importante, sugerida pelos autores do levantamento, é considerar a
possibilidade de que, excepcionalmente durante o período da pandemia, as regras
de vinculação dos impostos tenham validade bienal, de modo que os entes
subnacionais possam preservar receitas arrecadadas em 2020 para financiar
despesas com a retomada em 2021.
Nos
casos de extrema vulnerabilidade, o socorro emergencial da União pode ser
indispensável. Mas este é o momento de exigir de Estados e municípios a
arrumação de suas contas e de seus mecanismos de adaptação à Lei de
Responsabilidade Fiscal. Alguns têm feito a lição de casa, mobilizando suas
reformas previdenciárias e administrativas. Mas a maioria resiste, na
expectativa de que a União cobrirá seus buracos eternamente. Mas nunca é demais
lembrar o óbvio: o orçamento é finito e a queda de receitas e o aumento de
gastos são um fenômeno global. Sem medidas de ajuste fiscal e disciplina das
despesas, à recomposição de receita hoje se seguirá inexoravelmente a carência
de recursos amanhã.
Calote internacional – Opinião | O Estado de S. Paulo
Dívida
do Brasil com organizações internacionais ultrapassa R$ 4 bilhões
O desapreço do governo brasileiro por organizações internacionais vai além da retórica antimultilateral adotada pelo presidente Jair Bolsonaro e por seu ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Faltando apenas dois meses para o fim do ano, dificilmente o Brasil honrará os R$ 4,216 bilhões em compromissos assumidos em 2020 com a Organização das Nações Unidas (ONU), a Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), a Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre outras instituições. Desse montante, apenas R$ 15,4 milhões foram pagos até agora, segundo o Ministério da Economia. A pasta respondeu a pedido de informação feito pelo jornal Valor.
Em
nota para lá de otimista, o Ministério da Economia ressaltou que “o exercício
orçamentário de 2020 ainda está em andamento” e que, portanto, “ajustes à peça
orçamentária estão sendo estudados e pagamentos serão realizados, caso haja
espaço orçamentário no restante do ano”. A ressalva não está ali à toa. Como
São Tomé, é ver para crer.
A
dívida brasileira com a ONU neste ano é de R$ 458,45 milhões. Com a OMS, de R$
84,44 milhões. À Unesco, o País deve R$ 28,77 milhões. À OIT, são R$ 90,32
milhões. Além desses compromissos, o Brasil não pagou sua participação em 13
missões de paz, 8 bancos multilaterais, em fundos internacionais e em outras
106 organizações intergovernamentais.
O
governo alega que a pandemia de covid-19 deteriorou as contas públicas neste
ano e dificultou o pagamento dos compromissos do Brasil com esses órgãos. De
fato. Mas convém lembrar que em 2019, quando o mundo ainda não era assombrado
pela ameaça do novo coronavírus, o País por pouco não perdeu direito a voto na
Assembleia-Geral da ONU, pagando às pressas uma parte da dívida com a
instituição. Ou seja, a pandemia só acentuou a reiterada falta de compromisso
do País com as entidades multilaterais das quais faz parte.
Não
é de hoje que a ordem internacional baseada no multilateralismo está abalada.
Em parte, pelas próprias deficiências de organizações internacionais concebidas
no pós-guerra e que demandam algumas reformas urgentes para continuarem a ter
relevância no século 21. Mas é a hostilidade do presidente dos Estados Unidos,
Donald Trump, contra a ordem liberal e democrática representada por
instituições como a ONU, a OMS, a Organização Mundial do Comércio (OMC), entre
outras, a principal causa do abalo que elas têm sofrido nos anos recentes. E
não só os de natureza política, mas também econômica. Afinal, a constrição financeira
é uma das formas mais eficazes de minar a atuação de uma organização
multilateral, sobretudo quando um grande contribuinte como os Estados Unidos é
governado por alguém tão hostil quanto Donald Trump.
Sob
a inspiração do presidente americano, outros líderes mundiais, como o
presidente Jair Bolsonaro, passaram a se sentir confortáveis em ficar
inadimplentes com organismos que representam a ordem internacional vigente que,
aliada a outros fatores, contribuiu para o progresso da humanidade sem precedentes
no século passado e muito ainda tem a contribuir nos anos vindouros.
É
claro que a dívida do Brasil com as organizações internacionais não tem o
caráter de retaliação que têm os substanciais cortes de recursos praticados
pelos Estados Unidos. O Brasil não tem poder para tanto. Mas o desdém de
Bolsonaro por essas instituições, calcado em uma espécie de respaldo da
contraparte norte-americana, tampouco o anima a quitar os débitos.
Amanhã os americanos decidirão quem presidirá o país nos próximos quatro anos. A depender da escolha, o multilateralismo pode recuperar boa parte da força perdida. O Brasil pleiteia assentos na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e no Conselho de Segurança da ONU, entre outros objetivos internacionais que dependem de uma boa atuação no concerto das nações. Convém estar em dia com suas obrigações.
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