Regulamentação
pode destruir avançada e liberal forma de trabalho assalariado
O
trabalhador, tal como o conhecemos hoje, é fruto da primeira Revolução
Industrial. Sua existência como classe data do final do século 18. Surge com a
invenção das primeiras máquinas de fiar e de tecer na Inglaterra. Até então
esse trabalho era executado em casa, com a utilização de equipamentos toscos,
de reduzida capacidade produtiva.
A
esse respeito escreveu Jurgen Kuczynski: “Antes de la introducción de las
máquinas, el hilado y tejido de materias primas se hacía em la casa del
trabajador. Su mujer y su hija hilaban el hilo que el marido tejía; o bien lo
vendían cuando el padre de família no lo trabajaba en persona. (...) De esta
manera vegetaban los trabajadores en una existencia tranquila, llevando una
vida pacífica y ordenada llenos de piedad y dignidade. Su bienestar material
era mucho mejor que el de sus sucessores” (Evolución de la Classe Obrera, Ed.
Guadarrama, Madri).
A
Revolução Industrial provocou o aparecimento de grandes unidades industriais
construídas pela iniciativa privada. Karl Marx sintetiza de forma magistral a
passagem da economia rudimentar para o processo de produção industrial. Leia-se
o que escreveu no Manifesto do Partido Comunista, cuja primeira edição
inglesa data de 1850: “A indústria moderna transformou a pequena oficina do antigo
mestre da corporação patriarcal na grande fábrica industrial capitalista.
Massas de operários, amontoados nas fábricas, são organizadas militarmente.
Como soldados da indústria, estão sob a vigilância de uma hierarquia completa
de oficiais e suboficiais. Não são somente escravos da classe burguesa, do
Estado burguês, mas também diariamente, a cada hora, escravos da máquina, do
contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica. E esse despotismo é tanto mais
mesquinho, odioso e exasperador quanto maior é a franqueza com que proclama ter
no lucro seu objetivo exclusivo”.
Ignoro
o nome do inventor do relógio de ponto. Creio ter sido alguém informado pelo
desejo de impor disciplina ao processo de fabricação, para obter da força de
trabalho os melhores resultados. Alguém – como Frederick W. Taylor, pai da
gestão científica (Scientific Management), ou Henry Ford, criador da linha de
montagem – empenhado em garantir à livre-iniciativa “prodigioso desenvolvimento
da produtividade por meio do desenvolvimento da tecnologia”, como registrou
Louis Althusser em prefácio para o livro primeiro de O Capital.
No
Brasil a sujeição do empregado comum à rigidez do horário e à assiduidade é
disciplinada na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e na Lei do Repouso
Semanal Remunerado. Qualquer que seja a forma de remuneração, nunca se pode
atrasar ou deixar a oficina antes de se encerrar a jornada. O tempo destinado
ao repouso ou à alimentação e o intervalo entre jornadas são delimitados. A lei
o obriga a registrar o ponto quatro vezes por dia. O custo da mão de obra é um
dos principais componentes do custo final. É natural que o empregador procure
conseguir o máximo rendimento dos assalariados.
A
Constituição da República e a CLT traçam limites à duração diária e semanal da
jornada, determinam que horas extras não ultrapassem o limite de duas e que
sejam pagas com o acréscimo mínimo de 50%. Férias e repouso semanal são
calculados proporcionalmente às faltas não justificadas. Nos estabelecimentos
com mais de dez empregados a anotação da hora de entrada e saída deve ser feita
“em registro manual, mecânico ou eletrônico” (artigo 74).
O
isolamento determinado pela pandemia de covid-19 acelerou a expansão do
teletrabalho. Na residência o empregado iniciará a jornada sem os atropelos habituais.
Economizará os gastos com transporte individual ou coletivo. Se quiser, terá
alguns minutos para atividades físicas, tomará o café da manhã ouvindo ou vendo
as últimas notícias, irá ao computador adquirido de acordo com o modelo
escolhido e executará as tarefas do dia ou antecipará as do dia seguinte. Não
haverá horário rígido para a refeição feita em casa ou encomendada no delivery.
Se necessário, interromperá o trabalho para ajudar a esposa, correr ao
supermercado e dar atenção aos filhos. Desde que execute a tempo os serviços
sob sua responsabilidade, organizará com liberdade a jornada de acordo com sua
melhor conveniência.
A
libertação do ponto é uma das vantagens do teletrabalhador. Esgarça o regime de
subordinação inerente ao contrato. Sobre a nova e revolucionária modalidade de
trabalho pesa, contudo, ameaça de regulamentação detalhada, com o perigo de
causar prejuízos a ambas as partes, destruindo avançada e liberal forma de
trabalho assalariado. Infelizmente, trouxemos de Portugal a prolixidade barroca
das Ordenações Afonsinas (século 15), Manuelinas e Filipinas (século
16/17).
A
Lei n.º 13.467/2017 reformou a CLT. Antecipou-se à pandemia ao lhe acrescentar
cinco dispositivos sobre teletrabalho (artigos 75-A, B, C, D, E). Bastará
interpretá-los de forma racional e aplicá-los com boa-fé e inteligência para
que esse veículo de modernização não se perca.
*Advogado, foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)
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