terça-feira, 4 de abril de 2023

Paulo Sternick* - A economia que nem Freud explica

O Globo

Índices e taxas se desligam do contexto e viram signos autônomos, politizados e ideologizados

Psicólogo israelense laureado com o Nobel de Economia de 2002, Daniel Kahneman adverte que peritos de verdade têm noção dos limites do seu saber. Dois séculos antes, consciente da arrogante espécie que nos constitui, o poeta John Keats percebera o limite, ao propor a paradoxal “capacidade negativa” — o talento para aceitar aquilo que não podemos. O desmonte da onisciência e da onipotência ainda é mais crucial quando o saber incide sobre área onde é alto o grau de complexidade e imprevisibilidade.

O presidente Lula tem sido criticado por reclamar dos limites estreitos do gasto público e se opor à taxa brasileira de juros reais — no momento, a mais alta do mundo. Mexer com isso é chamar o mercado para a briga. Não obstante seu êxito em abrir o debate público (80% dos brasileiros o apoiam na luta contra os juros altos, segundo recente pesquisa Datafolha), analistas econômicos o acusam de estar fazendo ruído, causando turbulência, aumentando as expectativas de inflação — e, com isso, a própria taxa de juros.

Os agentes do mercado, no entanto, parecem não perceber: pau que bate em Chico bate em Francisco. Quando reconhecem que as expectativas influenciam as taxas de inflação, não se incluem a si próprios — nas suas previsões de carestia e assíduo pessimismo sobre déficit público — como formadores influentes dessas mesmas expectativas. Como disse Bradford DeLong — um dos mais brilhantes historiadores econômicos da atualidade —, no fenômeno inflacionário há menos fundamento e muito de expectativa: para onde as pessoas estimam que vai a inflação. Isso depende da mentalidade que se difunde na sociedade.

O passado hiperinflacionário, governos ineficientes e gastadores, moratórias são uma realidade — mas também uma assombração traumática sempre evocada. Não temos só uma realidade econômica, mas o que se percebe dela, sua leitura ideológica e a difusão pelo mercado de um discurso único. Assim a expectativa pessimista e uníssona — quase sem espaço para o debate — converte preocupação em fobia, e esta é a parteira de todos os dogmas.

Tudo se parece como se números e dados deixassem de refletir a dinâmica econômica atual, sendo travestidos de uma aura fantasmática que prenuncia o inevitável abismo. Índices e taxas se desligam do contexto e viram signos autônomos, politizados e ideologizados, espécie de labirinto de ecos retroalimentado, onde os maus presságios se reproduzem num jogo de espelhos terrificantes — em meio a uma economia estagnada que só cresce na desleixada produção de desigualdades.

Edgar Morin diz que o cálculo econômico é uma barbárie fria e gelada: “Quando existe um pensamento fundado exclusivamente em contas, não se veem mais os seres humanos. O que se vê são estatísticas, produtos burros”. A formulação romântica se legitima cientificamente no sentido de que o cálculo — sempre exato — nem sempre é neutro e pode ter vieses múltiplos em seu uso. Já se disse que os economistas — em seu desejo de certeza — tinham inveja da física. Proponho que na verdade alucinam um outro modelo: a precisão necessária dos parâmetros e protocolos médicos. O corpo econômico, com seus índices, taxas e dados capturados para um exame preciso da saúde ou doença de uma economia.

Mas e a doença da desigualdade e da pobreza extrema, efeitos da barbárie de que fala Morin? A ameaça inflacionária causa nos banqueiros centrais estratégia preferencialmente mais dura e inflexível do que ponderada e suave. A reação dogmática nem sempre é a mais coerente com os anseios sociais, mas alivia a angústia dos aflitos formuladores e agentes econômicos — os guardiães da estabilidade da moeda, sem a qual seria pior para os mais pobres. É proibido pensar num trade-off entre maior risco e menor desigualdade. O dogma e a ortodoxia acenam com a suposta garantia de eficácia e certeza, capturando um cortejo de apoiadores avessos à reflexão.

*Paulo Sternick é psicanalista

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