O Globo
Índices e taxas se desligam do contexto e viram signos autônomos, politizados e ideologizados
Psicólogo israelense laureado com o Nobel
de Economia de 2002, Daniel Kahneman adverte que peritos de verdade têm noção
dos limites do seu saber. Dois séculos antes, consciente da arrogante espécie
que nos constitui, o poeta John Keats percebera o limite, ao propor a paradoxal
“capacidade negativa” — o talento para aceitar aquilo que não podemos. O
desmonte da onisciência e da onipotência ainda é mais crucial quando o saber
incide sobre área onde é alto o grau de complexidade e imprevisibilidade.
O presidente Lula tem sido criticado por reclamar dos limites estreitos do gasto público e se opor à taxa brasileira de juros reais — no momento, a mais alta do mundo. Mexer com isso é chamar o mercado para a briga. Não obstante seu êxito em abrir o debate público (80% dos brasileiros o apoiam na luta contra os juros altos, segundo recente pesquisa Datafolha), analistas econômicos o acusam de estar fazendo ruído, causando turbulência, aumentando as expectativas de inflação — e, com isso, a própria taxa de juros.
Os agentes do mercado, no entanto, parecem
não perceber: pau que bate em Chico bate em Francisco. Quando reconhecem que as
expectativas influenciam as taxas de inflação, não se incluem a si próprios —
nas suas previsões de carestia e assíduo pessimismo sobre déficit público —
como formadores influentes dessas mesmas expectativas. Como disse Bradford
DeLong — um dos mais brilhantes historiadores econômicos da atualidade —, no
fenômeno inflacionário há menos fundamento e muito de expectativa: para onde as
pessoas estimam que vai a inflação. Isso depende da mentalidade que se difunde
na sociedade.
O passado hiperinflacionário, governos
ineficientes e gastadores, moratórias são uma realidade — mas também uma
assombração traumática sempre evocada. Não temos só uma realidade econômica,
mas o que se percebe dela, sua leitura ideológica e a difusão pelo mercado de
um discurso único. Assim a expectativa pessimista e uníssona — quase sem espaço
para o debate — converte preocupação em fobia, e esta é a parteira de todos os
dogmas.
Tudo se parece como se números e dados
deixassem de refletir a dinâmica econômica atual, sendo travestidos de uma aura
fantasmática que prenuncia o inevitável abismo. Índices e taxas se desligam do
contexto e viram signos autônomos, politizados e ideologizados, espécie de
labirinto de ecos retroalimentado, onde os maus presságios se reproduzem num
jogo de espelhos terrificantes — em meio a uma economia estagnada que só cresce
na desleixada produção de desigualdades.
Edgar Morin diz que o cálculo econômico é
uma barbárie fria e gelada: “Quando existe um pensamento fundado exclusivamente
em contas, não se veem mais os seres humanos. O que se vê são estatísticas,
produtos burros”. A formulação romântica se legitima cientificamente no sentido
de que o cálculo — sempre exato — nem sempre é neutro e pode ter vieses
múltiplos em seu uso. Já se disse que os economistas — em seu desejo de certeza
— tinham inveja da física. Proponho que na verdade alucinam um outro modelo: a
precisão necessária dos parâmetros e protocolos médicos. O corpo econômico, com
seus índices, taxas e dados capturados para um exame preciso da saúde ou doença
de uma economia.
Mas e a doença da desigualdade e da pobreza
extrema, efeitos da barbárie de que fala Morin? A ameaça inflacionária causa
nos banqueiros centrais estratégia preferencialmente mais dura e inflexível do
que ponderada e suave. A reação dogmática nem sempre é a mais coerente com os
anseios sociais, mas alivia a angústia dos aflitos formuladores e agentes
econômicos — os guardiães da estabilidade da moeda, sem a qual seria pior para
os mais pobres. É proibido pensar num trade-off entre maior risco e menor desigualdade.
O dogma e a ortodoxia acenam com a suposta garantia de eficácia e certeza,
capturando um cortejo de apoiadores avessos à reflexão.
*Paulo Sternick é psicanalista
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