Valor Econômico
Destroçada por tecnocratas de turno, a
economia entre seu destino às forças da apologética sem limites
Proclamado “mago das finanças” pela grande
mídia global, George Soros escreve livros e artigos a respeito dos mercados
financeiros. Entre outras considerações, cuida de avaliar o capitalismo e suas
crises. Não vá o caro leitor perder-se em divagações sobre os propósitos
subversivos do senhor Soros. O “megaespeculador” limita-se a ponderar razões
contra os “fundamentalismos de mercado” e a enaltecer as virtudes do pensamento
crítico.
Soros apresentou com clareza impressionante
a fragilidade dos supostos que sustentam as teorias dos mercados competitivos,
livres, “eficientes” e denunciou o seu caráter predominantemente apologético.
Na narrativa convencional, o intercâmbio de mercadorias e de ativos transcorre, com ligeiras flutuações, nos mercados “eficientes” informados pelos “fundamentos”. Nos modelos de equilíbrio geral com mercados completos para todas as datas, o dinheiro é supérfluo. Os agentes racionais logram maximizar sua função-utilidade, dentro das restrições impostas por sua dotação de recursos reais. No universo newtoniano da modelística, só um desatinado poderia desejar o dinheiro pelo dinheiro. Nessa economia sem dinheiro verdadeiro não há demanda de liquidez.
A crise financeira de 2008, como tantas
outras, esgueirou-se silenciosa nos subterrâneos da economia globalizada,
enquanto seus acólitos midiáticos e acadêmicos evangelizavam o público com as
crendices sobre os mercados eficientes e “competitivos” no provimento de
informações para os agentes racionais e otimizadores. É reconfortante acreditar
em Papai Noel.
Quando irrompeu das profundezas, o
terremoto financeiro exigiu os cuidados das políticas de socorro às
instituições financeiras. Incapazes de revigorar as economias, socializaram
prejuízos e acentuaram a concentração de renda e resgataram dos baixios do
fracasso a subteologia dos mercados eficientes e competitivos.
Soros reconhece que o fundamentalismo do
laissez-faire não é diferente, em essência, daquele que sustentou as
experiências malogradas do socialismo real. Ambos têm em comum a certeza do
conhecimento da verdade “última”, atingida a partir de procedimentos científicos.
Uns e outros têm pretensões de praticar a engenharia social e almejam enfiar a
sociedade nos escaninhos estreitos de suas certezas funestas. Vai sobrar
sociedade.
Soros desdenhosamente acusa a teoria dos
mercados eficientes - cujas forças fundamentais moveriam a economia
continuamente para a senda do equilíbrio e da estabilidade - de pertencer à
categoria de superstições científicas contaminadas irremediavelmente pelo
determinismo. A partir de uma concepção ultrapassada do método científico, a teoria
econômica pretende tirar conclusões práticas relevantes, recomendar políticas e
impor reformas.
Seria uma ousadia convocar Theodor Adorno e
sua Dialética Negativa para testemunhar que “palavras como problema e solução
soam falsas na filosofia porque postulam a independência do pensado em relação
ao pensamento precisamente lá onde pensamento e pensado são mediados
reciprocamente”.
Vou assumir o risco de intrometer no texto
leituras do livro “A Ordem do Tempo”, do físico Carlo Rovelli:
“Partículas elementares, fótons e quanta de
gravidade, ou seja, “quanta de espaço”, esses grãos elementares não vivem
imersos no espaço. Eles mesmos formam o espaço. Ou melhor, a espacialidade do
mundo é a rede de suas interações. Não vivem no tempo; interagem incessantemente
uns com os outros, aliás existem apenas enquanto elementos de contínuas
interações; e esse interagir é o acontecer do mundo: é a forma mínima elementar
do tempo, que não é nem orientada, nem linear... É um interagir recíproco em
que os quanta se atualizam no próprio ato de interagir em relação àquilo com
que interagem”.
Peço licença para ressaltar as frases:
“interagem incessantemente uns com os outros, aliás existem apenas enquanto
elementos de contínuas interações... É um interagir recíproco em que os quanta
se atualizam no próprio ato de interagir em relação àquilo com que interagem”.
Retornamos a George Soros e seu conceito de
reflexividade para investigar a natureza das relações entre os protagonistas
dos mercados financeiros. “A característica distintiva da reflexividade é que
ela introduz um elemento de incerteza no pensamento dos participantes e um
elemento de indeterminação na situação em que participam”.
A ortodoxia neoclássica parte do indivíduo
como unidade de análise e chega ao equilíbrio geral entre a soma de indivíduos
que formam uma economia harmônica. Seja qual for a interpretação mais correta
das crises financeiras, mais importante é a constatação do caráter reducionista
do pensamento que se arroga foros de cientificidade. Sua função não é
propriamente a de indagar ou investigar, se não a de simplificar: certo ou
errado, bem ou mal. Trata-se de justificar e não de compreender ou explicar.
O exemplo mais conspícuo do fracasso
ontológico e epistemológico foi sintetizado na resposta que o nobelizado Robert
Lucas deu à indagação da Rainha Elisabeth II depois da crise. Em visita à
London School of Economics a rainha perguntou por que os economistas não haviam
previsto a crise. Lucas respondeu em um artigo na revista The Economist em
2009: “A crise não foi prevista porque a teoria econômica prevê que estes
eventos não podem ser previstos”. Se os indivíduos são racionais, eles conhecem
a estrutura da economia e são capazes de antecipar corretamente sua trajetória
probabilística. Os mercados são, portanto, eficientes e a crise que aconteceu
não poderia ter acontecido. Não poderia ser prevista.
A “ciência” aproxima-se assim do pensamento
mítico. O retorno do mito é um dos fenômenos mais formidáveis de nossos tempos
e atinge com maior intensidade as chamadas ciências humanas. Como sempre
destroçada pelas exigências da política antidemocrática dos tecnocratas de
turno, a economia entrega seu destino às forças do empobrecimento conceitual e
da apologética sem limites. O esvaziamento teórico se faz em nome da
despolitização e da “limpeza ideológica”, da aproximação da economia ao
paradigma que atribuem às ciências da natureza.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.
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