terça-feira, 4 de abril de 2023

Luiz Gonzaga Belluzzo* - Certo ou errado?

Valor Econômico

Destroçada por tecnocratas de turno, a economia entre seu destino às forças da apologética sem limites

Proclamado “mago das finanças” pela grande mídia global, George Soros escreve livros e artigos a respeito dos mercados financeiros. Entre outras considerações, cuida de avaliar o capitalismo e suas crises. Não vá o caro leitor perder-se em divagações sobre os propósitos subversivos do senhor Soros. O “megaespeculador” limita-se a ponderar razões contra os “fundamentalismos de mercado” e a enaltecer as virtudes do pensamento crítico.

Soros apresentou com clareza impressionante a fragilidade dos supostos que sustentam as teorias dos mercados competitivos, livres, “eficientes” e denunciou o seu caráter predominantemente apologético.

Na narrativa convencional, o intercâmbio de mercadorias e de ativos transcorre, com ligeiras flutuações, nos mercados “eficientes” informados pelos “fundamentos”. Nos modelos de equilíbrio geral com mercados completos para todas as datas, o dinheiro é supérfluo. Os agentes racionais logram maximizar sua função-utilidade, dentro das restrições impostas por sua dotação de recursos reais. No universo newtoniano da modelística, só um desatinado poderia desejar o dinheiro pelo dinheiro. Nessa economia sem dinheiro verdadeiro não há demanda de liquidez.

A crise financeira de 2008, como tantas outras, esgueirou-se silenciosa nos subterrâneos da economia globalizada, enquanto seus acólitos midiáticos e acadêmicos evangelizavam o público com as crendices sobre os mercados eficientes e “competitivos” no provimento de informações para os agentes racionais e otimizadores. É reconfortante acreditar em Papai Noel.

Quando irrompeu das profundezas, o terremoto financeiro exigiu os cuidados das políticas de socorro às instituições financeiras. Incapazes de revigorar as economias, socializaram prejuízos e acentuaram a concentração de renda e resgataram dos baixios do fracasso a subteologia dos mercados eficientes e competitivos.

Soros reconhece que o fundamentalismo do laissez-faire não é diferente, em essência, daquele que sustentou as experiências malogradas do socialismo real. Ambos têm em comum a certeza do conhecimento da verdade “última”, atingida a partir de procedimentos científicos. Uns e outros têm pretensões de praticar a engenharia social e almejam enfiar a sociedade nos escaninhos estreitos de suas certezas funestas. Vai sobrar sociedade.

Soros desdenhosamente acusa a teoria dos mercados eficientes - cujas forças fundamentais moveriam a economia continuamente para a senda do equilíbrio e da estabilidade - de pertencer à categoria de superstições científicas contaminadas irremediavelmente pelo determinismo. A partir de uma concepção ultrapassada do método científico, a teoria econômica pretende tirar conclusões práticas relevantes, recomendar políticas e impor reformas.

Seria uma ousadia convocar Theodor Adorno e sua Dialética Negativa para testemunhar que “palavras como problema e solução soam falsas na filosofia porque postulam a independência do pensado em relação ao pensamento precisamente lá onde pensamento e pensado são mediados reciprocamente”.

Vou assumir o risco de intrometer no texto leituras do livro “A Ordem do Tempo”, do físico Carlo Rovelli:

“Partículas elementares, fótons e quanta de gravidade, ou seja, “quanta de espaço”, esses grãos elementares não vivem imersos no espaço. Eles mesmos formam o espaço. Ou melhor, a espacialidade do mundo é a rede de suas interações. Não vivem no tempo; interagem incessantemente uns com os outros, aliás existem apenas enquanto elementos de contínuas interações; e esse interagir é o acontecer do mundo: é a forma mínima elementar do tempo, que não é nem orientada, nem linear... É um interagir recíproco em que os quanta se atualizam no próprio ato de interagir em relação àquilo com que interagem”.

Peço licença para ressaltar as frases: “interagem incessantemente uns com os outros, aliás existem apenas enquanto elementos de contínuas interações... É um interagir recíproco em que os quanta se atualizam no próprio ato de interagir em relação àquilo com que interagem”.

Retornamos a George Soros e seu conceito de reflexividade para investigar a natureza das relações entre os protagonistas dos mercados financeiros. “A característica distintiva da reflexividade é que ela introduz um elemento de incerteza no pensamento dos participantes e um elemento de indeterminação na situação em que participam”.

A ortodoxia neoclássica parte do indivíduo como unidade de análise e chega ao equilíbrio geral entre a soma de indivíduos que formam uma economia harmônica. Seja qual for a interpretação mais correta das crises financeiras, mais importante é a constatação do caráter reducionista do pensamento que se arroga foros de cientificidade. Sua função não é propriamente a de indagar ou investigar, se não a de simplificar: certo ou errado, bem ou mal. Trata-se de justificar e não de compreender ou explicar.

O exemplo mais conspícuo do fracasso ontológico e epistemológico foi sintetizado na resposta que o nobelizado Robert Lucas deu à indagação da Rainha Elisabeth II depois da crise. Em visita à London School of Economics a rainha perguntou por que os economistas não haviam previsto a crise. Lucas respondeu em um artigo na revista The Economist em 2009: “A crise não foi prevista porque a teoria econômica prevê que estes eventos não podem ser previstos”. Se os indivíduos são racionais, eles conhecem a estrutura da economia e são capazes de antecipar corretamente sua trajetória probabilística. Os mercados são, portanto, eficientes e a crise que aconteceu não poderia ter acontecido. Não poderia ser prevista.

A “ciência” aproxima-se assim do pensamento mítico. O retorno do mito é um dos fenômenos mais formidáveis de nossos tempos e atinge com maior intensidade as chamadas ciências humanas. Como sempre destroçada pelas exigências da política antidemocrática dos tecnocratas de turno, a economia entrega seu destino às forças do empobrecimento conceitual e da apologética sem limites. O esvaziamento teórico se faz em nome da despolitização e da “limpeza ideológica”, da aproximação da economia ao paradigma que atribuem às ciências da natureza.

*Luiz Gonzaga Belluzzo é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da Universidade Federal de Goiás.

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