Os futuros historiadores dirão que a
secular recusa do Brasil a oferecer educação com a mesma qualidade a todas as
suas crianças teriam uma explicação: evitar a distribuição dos benefícios
econômicos conforme o talento de cada pessoa. Ao restringir a educação com
qualidade apenas aos que poderiam pagar por uma boa escola, o sistema impedia o
florescer do talento entre as crianças pobres e, portanto, barrava a
distribuição da renda quando elas fossem adultas.
Para comprovar essa teoria, alguns historiadores lembrarão que a bola de futebol, sendo redonda para todos, permitiu a distribuição da renda para os jogadores talentosos, mesmo filhos de famílias pobres. Se as escolas tivessem todas a mesma qualidade, tanto quanto as bolas de futebol são igualmente redondas, o talento determinaria o salário da pessoa sem relação com a origem familiar.
No passado, a concentração de renda era
determinada pela herança na propriedade de terra, depois por herança de capital
em dinheiro ou ativos. Na sociedade moderna, com a importância do conhecimento,
a concentração de renda vem do monopólio da educação, obtida pelos que podem
comprá-la. A herança é colocada no cérebro dos filhos cujos pais pagaram por
educação de qualidade.
Os historiadores lembrarão que, no período
escravagista e no primeiro século da República, negava-se vaga nas escolas aos
pobres. Quando ficou impossível negar matrícula, passou-se a utilizar a
desigualdade na qualidade. Mantinha-se a ilusão de que todos estavam
matriculados, mas o sistema escolar adotou "escola casa grande", para
os que podiam pagar, e "escola senzala" para os que precisavam se
contentar com escolas sem qualidade.
Para explicar como foi possível esconder
que a negação de escola com qualidade para todos prejudicava o país inteiro, os
historiadores dirão que, na política, o egoísmo foi maior do que o patriotismo,
e na lógica política não se defendeu que a criação e distribuição de
conhecimento antecede a criação e a distribuição de renda.
A sociedade não percebeu que a montagem de
uma estrutura social para a distribuição de renda passaria antes pela montagem
de uma estrutura educacional que distribuiria conhecimento, independentemente
da renda da família; que a educação de qualidade para todos é a base da
produtividade econômica, que amplia a renda nacional; e que a equidade no
acesso à educação com qualidade é a base para a distribuição da renda nacional
entre as pessoas, conforme o talento e o esforço de cada indivíduo.
A estupidez vai explicar como foi possível
criar a ilusão de que investir bilhões para retirar petróleo do fundo do mar
seria mais benéfico para os pobres do que colocar toda criança em escola de
qualidade. O egoísmo explicará a lógica porque as classes médias preferiram
gastar parte de suas rendas para educação de seus filhos, no lugar de
pleitearem escolas grátis com qualidade para todos; o sacrifício de pagar foi o
custo para que seus filhos não tivessem de disputar sucesso com base no talento
dos filhos dos pobres.
A elite rica aprendeu que a bola redonda
para todos impediu que seus filhos chegassem à Seleção brasileira. Não vão
deixar que isso aconteça na Copa do Conhecimento. Além disso, preferiram que o
Estado concedesse subsídios às escolas particulares e que as universidades de
qualidade fossem públicas e gratuitas. Com educação de qualidade apenas para
seus filhos, essas universidades ficaram reservadas para eles.
Os historiadores darão essas explicações
que parecerão tão absurdas que não serão aceitas. Terão dificuldade, sobretudo,
em explicar como foi possível que líderes políticos sensíveis e comprometidos
com os pobres não adotassem a bandeira de escolas de base com a mesma
qualidade, graças a um Sistema Único Nacional Público de Educação de Base.
*Cristovam Buarque - Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)
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