O Globo
Conversa de Boulos e Datena é fruto da
situação fragilizada do governo
Os primeiros cem dias do terceiro mandato
de Lula não dão margem a um prognóstico positivo, como recentes pesquisas de
opinião Datafolha indicam. A não ser para aqueles que se contentam com gestos
simbólicos à esquerda, como a suspensão da implantação do novo ensino médio ou
o cancelamento da Medalha Princesa Isabel para o combate ao racismo.
Isabel, na definição do Ministério dos
Direitos Humanos, “herdeira do trono imperial, uma mulher branca”, foi
substituída por Luís Gama, negro abolicionista. A situação fragilizada do
governo — diante de um Congresso empoderado e de uma base parlamentar
disfuncional — dá margem, a meu ver precipitadamente, a conversas como a
ocorrida entre José Luiz Datena, popular âncora de programas policialescos da
televisão e eterno candidato a algum cargo político, e o deputado federal
Guilherme Boulos, divulgada nas redes sociais ontem.
Surpreendente a começar pelo simples fato de ter sido gravada em vídeo o que seria, segundo Boulos, uma conversa privada. Quem estaria numa mesa como aquela com o celular ligado sem que soubessem ou quisessem? Além desse espanto inicial, a maneira como Boulos, um campeão de votos, ouve atentamente Datena demonstra que leva a sério os conceitos emitidos e chega a concordar em certo momento, afirmando “este é o tema”, quando Datena fala em “peitar o Lula” para que uma chapa Boulos-Datena tenha o apoio do PT na disputa pela prefeitura.
O potencial de votos de Datena é
pressentido por todos os partidos políticos em São Paulo, embora nunca tenha
sido testado. Datena sempre sai da disputa, mesmo quando está na frente nas
pesquisas. Parece desconfiar do comprometimento dos políticos.
— O PT é um partido corrupto — afirma a
certa altura, sem que Boulos reaja.
A conversa gira em torno de assuntos
delicados, como o futuro de Lula no governo, a chance de o presidente não
conseguir lidar com a crise econômica e de levar Boulos junto na derrocada.
Datena diz que não sabe se Lula “aguenta o mandato” e faz uma análise da
situação do PT em relação a Lula e ao próprio Boulos:
— O PT não gosta do Lula. E não gosta de
você também. O PT tem feudos.
Boulos concorda:
— É verdade.
Datena estava tão convicto de que falava
entre apoiadores que comparou a situação de Boulos à de Fidel Castro, numa
improvisação arrojada depois de ver um retrato do ditador cubano na parede:
— Se o Fidel estivesse pensando que não ia
ter dificuldade, ele não ia descer a serra [Sierra Maestra] (…) com o maluco do
Che Guevara, o Fulgencio Batista [ditador na época] estava lá até agora.
A conversa é tão maluca que Datena se
oferece para ser o Guevara de Boulos. O mais espantoso é que ele já foi o
candidato preferido de Bolsonaro, como lembrou o presidente do PT paulista,
Kiko Celeguim:
— A opinião do porta-voz do bolsonarismo
não quer dizer nada.
O dirigente petista alegou que Boulos “não
disse nada” no vídeo. É uma falácia. Boulos concorda com a cabeça quando Datena
garante que terá a prova de que o PT, apesar de dizer que sim, não o quer como
candidato a prefeito em São Paulo e tentará fazer do ministro da Fazenda,
Fernando Haddad, candidato do partido, para derrotar Boulos e o PSOL.
Confirmando as suspeitas, o PT ontem mesmo,
diante da repercussão do vídeo, começou a cogitar a filiação de Boulos a seus
quadros, por ter candidatos próprios com força para derrotá-lo. Haddad seria um
candidato para mais adiante, provavelmente como substituto de Lula na disputa presidencial.
Todos esses lances dependem, no entanto, do sucesso do plano econômico que
Haddad coordena, com a aprovação do arcabouço fiscal e, mais adiante, da
reforma tributária. Só a proposta de tirar Boulos do PSOL já explicita a visão
petista das alianças partidárias mesmo na esquerda, com sua vocação hegemônica
que não abre espaço nem para os correligionários.
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