Valor Econômico
O modelo institucional dessa reforma e as suas consequências precisam ser mais bem discutidas num processo de diálogo institucional
O presidencialismo de coalizão vem passando
por várias reformas nos últimos anos, gerando um novo jogo de equilíbrios e
disputas entre os Poderes. Em parte, trata-se de um projeto institucional do
Congresso Nacional em busca de protagonismo e maior delimitação da autoridade
do Executivo e do Supremo Tribunal Federal. Mas também há neste processo
elementos de disputa política e de definição de posicionamento eleitoral que
vão além do aperfeiçoamento do sistema. Se não houver clareza frente a essa
possível contradição entre a mudança institucional de longo prazo e as
estratégias de curto prazo dos grupos políticos, o resultado das mudanças
poderá ser a piora da democracia, em vez de seu aprimoramento.
Após duas décadas de regime autoritário, a redemocratização prometia criar um sistema político mais transparente, garantidor da liberdade, subordinado à voz dos eleitores e mais plural em termos da distribuição dos poderes institucionais. De fato, a Constituição de 1988 cumpriu grande parte dessa promessa, gerando um modelo que fortaleceu a cidadania nos últimos 35 anos. No plano institucional, além de se ter criado um federalismo mais democrático, deu mais força ao Legislativo e ao sistema de Justiça, com um Ministério Público com poderes inéditos e um Supremo Tribunal Federal mais potente. Tudo isso foi feito ao mesmo tempo que foram reforçados os instrumentos de atuação do Executivo federal.
A nova ordem institucional demorou um tempo
para se consolidar, com dois governos instáveis, como foram as gestões de
Sarney e Collor. Somente com o impeachment, e mais claramente com a chegada de
Fernando Henrique ao Palácio do Planalto, é que se estruturou efetivamente o
que foi chamado de presidencialismo de coalizão. Nele, o presidente precisa
montar alianças políticas amplas para governar, levando em conta o
multipartidarismo e, em menor medida, dinâmicas regionais. Mas essa divisão do
poder está assentada nos fortes instrumentos que o Executivo federal tem para
conquistar e cooptar a maior parcela dos congressistas. Combinou-se aqui a
necessidade de coalizão com a existência de um ramo claramente majoritário e
preponderante entre os Poderes.
Foram quase 20 anos de auge desse modelo mais
favorável ao Poder Executivo. Isso não quer dizer que o jogo institucional
fosse tranquilo ao presidente. Havia muitas negociações, CPIs barulhentas,
brigas na coalizão e um sistema de Justiça cada vez mais atuante no controle do
sistema político e do próprio governo. Embora o Congresso tenha feito pequenas
reformas no sistema desde os anos 2000, como no caso das medidas provisórias, o
que mais chamava atenção era a capacidade de o Ministério Público e, principalmente,
o Supremo Tribunal Federal influenciarem o processo decisório, tornando-se
atores centrais no presidencialismo de coalizão, com mais nitidez, e de forma
exponencial, com a Operação Lava-Jato e o impeachment da presidente Dilma.
A década passada teve eventos que mudaram o
rumo do equilíbrio institucional. Com o enfraquecimento do centro nevrálgico do
sistema partidário, que era a disputa PT versus PSDB, a exposição pública de
políticos e a condenação de vários deles, além do crescente peso do Sistema de
Justiça, o Congresso Nacional buscou, paulatinamente, mudar sua posição no jogo
entre os Poderes. É bem verdade que havia exageros nos demais ramos, como a
enorme capacidade de contingenciar recursos e definir nomeações por parte do
Executivo, ou então a grande capacidade de o STF atuar sobre políticas públicas
ou legislações produzidas pelos congressistas - mesmo que parte desse processo
de judicialização da política partisse da provocação feita pelos próprios
atores partidários.
O Congresso Nacional, desde a mudança na
legislação sobre os vetos presidenciais, começou a querer ter um protagonismo
maior no presidencialismo de coalizão. Havia um norte institucional aqui: dar
maior poder aos congressistas, especialmente na alocação efetiva dos recursos
orçamentários, e limitar a capacidade de os demais Poderes interferirem nas
decisões dos legisladores. Mas também havia a tentativa de se construir uma
nova hegemonia política, vindo do que é chamado, de forma imprecisa, de
Centrão, pois há várias configurações desse grupo ao longo da história.
Esse processo de reconfiguração do
presidencialismo de coalizão foi comandado por lideranças congressuais sem
grande protagonismo eleitoral, mas com grande capacidade de diálogo com seus
pares, apontando uma estratégia corporativa de fortalecimento do “clube dos
deputados”. Eduardo Cunha, Rodrigo Maia (depois engolido pelo próprio grupo que
o apoiou) e, o mais importante deles, Arthur Lira foram os líderes de mudanças
em prol de maior protagonismo do Legislativo, em particular (mas não só) no
campo da distribuição dos recursos orçamentários. A nova era emendista gerou
várias formas de transferência de verbas às bases dos parlamentares, num volume
inédito em sua grande magnitude e com caminhos cada vez menos dependentes ou
mais difíceis de serem contingenciados pelo Executivo. Também nesta trilha deve
ser encaixado o crescimento do financiamento partidário e eleitoral, que gerou
fundos públicos com um tamanho muito expressivo em comparação a outras
democracias.
As reformas institucionais para fortalecer o
Congresso Nacional no jogo entre os Poderes tiveram um intuito de mais longo
prazo, de reposicionar a posição dos congressistas em relação ao peso do
Executivo sobre eles. As coalizões continuam sendo possíveis e obviamente
necessárias, mas serão cada vez mais custosas e com um grau maior de incerteza
quanto à efetividade do apoio parlamentar. Pelo lado positivo, esse
reequilíbrio está levando o governo a ter de dialogar mais com o Legislativo na
produção de mudanças legais e na construção de políticas públicas. Pelo lado
negativo, tem havido um aumento da fragmentação das demandas e do comportamento
parlamentar, algo que nem a alteração da regra de representatividade eleitoral,
capaz de diminuir o número de partidos com participação congressual, conseguiu
reverter.
A questão-chave é que tais reformas têm se
orientado igualmente por outro cálculo, mais de curto prazo e com endereço
eleitoral bem nítido: o fortalecimento de um modelo mais clientelista e
individualista de representação política, expresso no peso cada vez maior das
emendas e do financiamento eleitoral no processo político. Os partidos do
Centrão de hoje são os mais beneficiados por essa nova estrutura institucional.
Por meio dela, conseguiram aumentar seu poder de barganha junto ao Executivo,
custando mais caro e tornando mais incerto o seu apoio, ao mesmo tempo que os
congressistas têm válvulas de escape, as emendas em particular, para obter
força eleitoral.
Claro que todos os deputados e senadores são
potenciais beneficiários desse modelo, mas sua dinâmica tem um grupo mais
privilegiado de vencedores. Dado o controle que os líderes mais próximos do
centro, e distantes dos dois polos da polarização atual (lulismo versus
bolsonarismo), detêm sobre esse jogo, o fato é que a reforma define não só o
jogo mais geral, mas a força conjuntural de um grupo político-partidário. O
quanto isso fortalece a democracia de maneira mais profunda? Um otimista diria
que a garantia de um Centrão forte é um antídoto contra crises de uma política
polarizada. Houvera um agrupamento assim nos Estados Unidos e o perigo de uma
nova Presidência de Trump seria menor. Já o pessimista perguntaria se esse tipo
de representação será capaz de fazer as mudanças de que o país precisa para ter
um futuro melhor no século XXI - e tenderá a responder que não. No fundo, ambos
estão certos.
Um novo jogo começou neste processo de
reequilíbrio do presidencialismo de coalizão: a tentativa de delimitar melhor o
poder do STF. Ainda é uma partida em andamento e com várias rodadas pela
frente, e a escolha de um político para a próxima vaga da Corte foi menos um
ato do presidente e mais uma pressão dos ministros do Supremo, que querem
negociar esse processo de mudança institucional. Tornar as decisões do STF mais
colegiadas é, sem dúvida, uma reforma correta, que já vem sinalizada até
internamente por ações da ministra Rosa Weber quando no comando da instituição
máxima da Justiça brasileira. A questão está em como fazer essa transformação,
se de forma negociada e amparada em evidências ou por uma trilha que pareça uma
demanda dos oposicionistas bolsonaristas, que querem imprimir uma derrota a
quem evitou que dessem um golpe de Estado.
O modelo institucional dessa reforma e as
suas consequências precisam ser mais bem discutidas num processo de diálogo
institucional. Isso trará mais benefícios à democracia brasileira. Um detalhe
que poucos comentaram: a proposta aprovada pelo Senado enfraquecerá as minorias
políticas, num sentido mais geral, e, sobretudo, os bolsonaristas, no curto
prazo, que vão assistir a um maior número de decisões colegiadas do que há
atualmente, quase todas com o placar de 9 a 2 contra seu posicionamento. Talvez
a intenção do bolsonarismo seja mesmo realçar à opinião pública que o STF é
ilegítimo. Que tipo de governo futuro pode sair dessa estratégia de confronto
institucional é o que deveria ser pensado se quisermos ter um modelo
democrático melhor.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
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