Valor Econômico
Há um ataque ao Brasil religioso, agravado
por sua extensão ao Brasil político, por igrejas e seitas cuja concepção de fé
é a de uma fé de guerra santa contra as demais visões de mundo
No final de novembro, os desembargadores do
Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo atenderam a pedido
da Procuradoria Geral de Justiça que questionava a constitucionalidade de
dispositivo do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araraquara. O que
obrigava a leitura de seis versículos da Bíblia Sagrada, pelos vereadores, em
rodízio, por ordem alfabética, no início de cada sessão. A Bíblia ficaria
aberta no recinto em página determinada, como num templo evangélico.
Em 2017, em sua primeira sessão ordinária da Câmara, a vereadora Thainara Faria, do Partido dos Trabalhadores, católica praticante, na época estudante de direito, hoje advogada e deputada, foi à tribuna e declarou que não participaria do rodízio. Invocou a laicidade do Estado brasileiro, definida na Constituição.
A reação da vereadora causou polêmica, apesar
de suas fundamentadas razões. A norma inserida no Regimento da Câmara, em 2006,
tinha uma definição maliciosa que colocava em situação adversa e estigmatizante
quem, mesmo invocando a Constituição, optasse por não fazer a leitura. O
discordante deveria solicitar a retirada de seu nome, indevida e
compulsoriamente nela incluído, da lista de rodízio dos leitores do trecho da
Bíblia preconizado.
Ficava ele ou ela, assim, indevidamente
exposto como se fosse pessoa não identificada com valores religiosos. A
responsabilidade pela negativa não era entendida como da maioria obediente,
numa ação irregular, e sim do desobediente cumpridor da Constituição.
Autoritarismo de minoria e não precedência dos direitos da maioria.
O notório abuso da norma foi levado à
consideração do Ministério Público pelo jornalista Eduardo Banks, em 2021, que
apontou outras câmaras municipais envolvidas em idêntica irregularidade, como a
de Itapecerica da Serra e a de São Carlos, podendo-se aí incluir a de Rio
Preto.
O Órgão Especial do Tribunal de Justiça
acolheu o pedido da Procuradoria Geral de Justiça. Por unanimidade os
desembargadores entenderam ser inconstitucional a regra da Câmara de
Araraquara, entendimento que se aplica às regras de mesmo vício de todas as
câmaras municipais do estado de São Paulo.
A decisão se refere a que a anomalia julgada
fere a isonomia que supostamente deveria haver entre religiões ou entre
denominações religiosas. Isto é, igualdade de oportunidade de usar textos
religiosos nas instituições públicas em favor do ponto de vista de determinada
religião. O que é provavelmente um equívoco em face da Constituição, pois não
se trata de um direito. Outras religiões ou crenças poderiam invocar o suposto
direito e incluir a leitura de seus textos sagrados nas sessões das câmaras.
A fragilidade da decisão não está no prejuízo
à isonomia, mas no desconhecimento de que religião, no Brasil, é questão
privada desde quando estabelecida a separação entre Estado e Igreja.
Cada um tem o direito de ter sua religião,
mas não tem o direito de impô-la a outros. Porque passariam as câmaras a maior
parte do tempo rezando e funcionando como recinto de nova e peculiar
religiosidade, a do testemunho de fé fora do lugar, por meio da invasão das
instituições públicas.
Continua pendente, no entanto, a questão da
compreensão jurídica da laicidade do Estado brasileiro. A qual já se tornara
clara quando os tribunais reconheceram que desde o Império, quando o Brasil
acolheu a reivindicação de países estrangeiros, que tinham aqui seus negócios e
seus súditos, para que lhes fosse garantido o direito do exercício comunitário
de sua fé, ainda que em edifícios sem forma exterior de templo. Era e é o
entendimento de que religião é uma questão privada, praticada nos recintos do sagrado.
Os evangélicos estão na contramão desse processo.
Por iniciativa e inspiração externa, desde os
anos 1950, há um ataque ao Brasil religioso, agravado por sua extensão ao
Brasil político, por igrejas e seitas cuja concepção de fé é a de uma fé de
guerra santa contra as demais visões de mundo, religiosas ou não. Isso reduziu
o espaço de legitimidade das igrejas protestantes históricas, que já não são
religiões de afirmação da identidade e diversidade das crenças mas religiões de
intolerância e em nome dela religiões de conflito social, ideológico e político.
O uso político-partidário da religião, por
parte de pastores e de igrejas, agrava o cenário nas anomalias da indistinção
entre púlpito e gazofilácio (a caixa de coleta do dízimo), entre fé e ódio,
entre ambição de salvação e ambição de poder. O que vem transformando essas
igrejas em instrumentos de destruição provável justamente da fé evangélica no
Brasil e da democracia que lhes é garantia de direito, de atualização e de
sobrevivência.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Nenhum comentário:
Postar um comentário