Valor Econômico
Posse de argentino terá Jair Bolsonaro
Fantasmas assombram a Argentina às vésperas
da posse do economista de extrema-direita Javier Milei como presidente do país,
neste domingo. A posse será uma festa global de protagonistas da degradação da
democracia, no passado ou no presente, possivelmente no futuro também, na qual
o ex-presidente Jair Bolsonaro liderará grande comitiva. Mas não é a ameaça
autoritária que está no horizonte argentino, longe disso.
A crise fiscal, cambial e inflacionária da
Argentina foi muito mais decisiva para a eleição de Milei do que qualquer
guerra cultural de estilo bolsonarista, e a agenda econômica deve ocupar todos
os espaços do novo governo. É um economista no poder, não um ex-capitão do
Exército, por mais que tenha mimetizado estratégias eleitorais do ex-presidente
brasileiro. Milei já deu sinais de que escolheu as brigas em que quer entrar. A
destruição da institucionalidade não parece ser uma delas. Montou uma equipe de
governo alinhada ao establishment, algo que Bolsonaro tardou a fazer
Ele partirá para um tudo ou nada para tentar um ajuste da economia argentina, de preferência com o desmonte do Estado. Difícil que sobre espaço para outra coisa em sua agenda.
É possível que haja algum grau de despiste. O
tom belicoso de seus pronunciamentos contra “a casta” e a esquerda deve
permanecer. Quebrando uma tradição das posses argentinas, ele fará neste
domingo dois discursos: um breve, na posse formal, diante do Congresso, o que
sempre houve, e outro inovador, para seu eleitorado, das escadarias da sede do
Legislativo. Cenário perfeito para a radicalização, mas a distância entre
intenção e gesto deve ser relevante.
A imprensa argentina dá como certa a terapia
de choque e prevê um pacote já para essa segunda-feira. Virá por meio do que
chamam de “lei ônibus”: uma proposta legislativa única, com diversas
iniciativas para sacudir o país.
Há ao menos dois espectros que rondam o
cenário: um é o de Celestino Rodrigo, ministro da Economia durante o governo de
Isabelita Peron, que baixou um pacote apelidado de “rodrigazo”, em 1975. O
outro é o de Erman González, ministro que no governo Menem lançou o Plano
Bonex, em 1990. Dois episódios traumáticos, em governos peronistas. Não se
acredita que haverá reprise desses fracassos, mas teme-se o uso como
referência.
O cenário de um novo “rodrigazo” é mais
amplamente discutido. O ministro de Isabelita tinha como prioridade reduzir de
forma abrupta o déficit fiscal, meta que também é anunciada atualmente por
Milei. O déficit fiscal da Argentina em 1975 oscilava em torno de 14% do PIB,
hoje algumas estimativas falam em 15%. Da noite para o dia, Rodrigo anunciou o
corte de subsídios, uma maxidesvalorização cambial e o reajuste imediato de
tarifas públicas que estavam muito desalinhadas. “Amanhã me matam ou as coisas
começam a funcionar”, disse o ministro na ocasião. O plano acelerou a inflação
no País, desatou uma onda de insatisfação social e ajudou a derrubar o governo
de Isabelita, deposta menos de um ano depois por um golpe militar.
Em janeiro de 1990, o objetivo central de
Antonio Erman González era enxugar a liquidez para deter a inflação, outra
preocupação central de Milei, já que a dolarização que preconizou durante a
campanha parece descartada. Ele então fez um alongamento compulsório de títulos
públicos que venciam a curto prazo, por meio de um papel chamado Bonex, com
resgate em dez anos. Foi algo que antecipou, de certo modo, o que Collor fez no
Brasil com o plano batizado com seu nome dois meses depois.
Milei já se mostrou apreensivo com o giro de
uma dívida de curto prazo tomada pelo Banco Central, representada por um papel
chamado “Leliq” (Letras de Liquidação). A autoridade monetária argentina vende
papéis com vencimento de 28 dias a uma taxa de juros altíssima ao sistema
financeiro.
Se os últimos dias demonstraram algo sobre
Milei, contudo, é que o presidente eleito da Argentina pode dizer que se
comunica com espíritos de cachorros, mas de louco não tem nada. Bancou uma
aposta alta, confiante que o mandato popular que recebeu poderá atenuar o
Congresso a sua falta de maioria parlamentar.
Em um surpreendente movimento, costurou um
acordo com os aliados da ex-presidente Cristina Kirchner no Congresso e
emplacou essa quinta-feira como presidente da Câmara um dos 38 deputados de seu
partido, em um conjunto de 257 parlamentares. O deputado é Martin Menem,
sobrinho do antigo presidente Carlos Menem (1930-2021).
Com essa manobra, colocou limite no avanço do
ex-presidente Mauricio Macri como avalista da governabilidade. A imprensa
argentina noticia que o ex-presidente queria eleger Cristian Ritondo, o líder
parlamentar de seu grupo político. As chances de Ritondo negociar a formação um
bloco de maioria eram maiores, mas Milei ficaria mais dependente de Macri.
Com o sobrinho de Menem no comando, Milei
opta por ser um presidente minoritário, que necessitará de acordos pontuais
para governar, mas tendo margem para buscar tanto o macrismo quanto o
peronismo, conforme a necessidade.
Como Cristina já sinalizou que pretende ficar
com o comando da oposição, trata-se de uma estratégia política arriscada: Milei
pode se isolar e a oposição peronista forjar uma aliança que vá além de suas
próprias forças. O presidente eleito da Argentina pode ter sido imprudente e
cometido um erro, mas esse erro tem a sua lógica.
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