O Estado de S. Paulo
Para Sebastián Edwards, defensores da
economia de mercado se acomodaram com seu sucesso e perderam a batalha das
ideias
Entre 1980 e 2019, a economia chilena foi a
que mais cresceu na América Latina, enquanto a proporção de pessoas vivendo em
situação de pobreza baixou de 53% para 6%. Essa história de sucesso se explica
pelas políticas que Sebastián Edwards, em livro recente, chama de
“neoliberais”, entendidas não somente como a aposta nos benefícios da economia
de livre mercado, mas também pela convicção de que as regras competitivas devem
valer para outras áreas, como as de educação, saúde, habitação e previdência
social (The Chile Project: the story of the Chicago Boys and the downfall of
neoliberalism, Princeton, 2023).
Estas políticas foram introduzidas nos anos da ditadura militar de Augusto Pinochet, entre 1973 e 1990, e continuadas nos 20 anos seguintes em que o Chile foi governado democraticamente pela concertación de socialistas e democratas cristãos. Além de manter a economia de mercado, estes governos passaram também a investir nas áreas de saúde pública e educação, e foi a partir daí que a economia mais cresceu, a pobreza mais se reduziu e a qualidade da educação melhorou.
E, no entanto, a partir de 2016 a política
chilena se polarizou cada vez mais, com os governos de esquerda e direita de
Michelle Bachelet e Sebastián Piñera se alternando. Em 2019, o país foi
sacudido por violentas manifestações populares que resultaram num novo e jovem
presidente, Gabriel Boric, oriundo dos movimentos de protesto. Com ele foi
eleita uma assembleia constituinte que elaborou uma nova Constituição, que
prometia pôr fim ao neoliberalismo e implantar uma nova sociedade baseada na
garantia dos direitos sociais, economia social de mercado e Estado
plurinacional, com o reconhecimento da autonomia das populações indígenas. O
texto, no entanto, foi rechaçado pela maioria da população, num plebiscito, e
agora uma outra Constituição, muito mais conservadora, está sendo preparada,
com a chance de ser também desaprovada num plebiscito no próximo dia 17 de
dezembro.
A preocupação de Edwards, com este livro, foi
entender por que uma história inicial de sucesso redundou no aparente consenso
de que havia sido um fracasso, e o que se pode esperar para o futuro não
somente do Chile, mas de todos os países da região que, nos últimos tempos, têm
alternado entre governos de direita e esquerda, liberais (ou neoliberais) e
estatistas, sem que mostrem resultados consistentes.
As políticas pró-mercado dos Chicago Boys
tiveram o pecado original de terem sido implantadas à sombra de uma ditadura
sangrenta, mas a manutenção de muitas destas políticas pelos governos
democráticos nos anos posteriores indicava que deveria ser possível separar uma
coisa da outra.
Parte do problema foi que, ao lado dos
indicadores de sucesso, essas políticas tiveram ao menos dois resultados
negativos: a desigualdade, que continuou alta, e o sistema previdenciário de
capitalização, em que as aposentadorias dependem dos rendimentos de
investimentos privados de cada um ao longo da vida. Edwards mostra que os que
apoiavam essas políticas não acreditavam que a desigualdade seria um problema,
desde que a pobreza diminuísse, e não consideravam os profundos efeitos
negativos de uma sociedade econômica e socialmente dividida. E o fracasso do
sistema previdenciário – em que as pessoas chegavam à aposentadoria sem o
mínimo de condições para se manter – colocou a classe média, que aparentemente
se beneficiava do crescimento da economia, em situação de grande insegurança.
São problemas que poderiam, em princípio, ser
administrados com políticas mais adequadas de saúde, educação e proteção
social, que os diversos governos democráticos buscaram implantar. Mas Edwards
crê que o problema era mais profundo e tinha que ver com as grandes
desigualdades sociais e com a arrogância dos políticos e economistas que não
atentaram para os problemas e as tensões que vinham se acumulando. Ele não
acredita, como eu também não, que economias fortemente estatizadas e apoiadas
em movimentos sociais, como tentado por Salvador Allende no passado e por
outros governos de esquerda mais recentemente, consigam produzir melhores
resultados. Mas não é fácil chegar a um equilíbrio adequado entre incentivos de
mercado e políticas sociais, e os economistas não têm instrumentos para
entender e lidar com as desigualdades que ele chama de “horizontais”, de
natureza social e cultural, que vão muito além das diferenças de renda e
dividem tão profundamente a sociedade chilena e a de outros países da região.
Em última análise, diz ele, os defensores da
economia de mercado se acomodaram com seu sucesso e perderam a batalha das
ideias, incapazes que foram de defender seus resultados e lidar com os temas
emergentes da perda de identidade, insegurança e ressentimento que muitas vezes
são a outra cara do desenvolvimento capitalista.
Edwards não cita, mas seu livro faz lembrar
um livro clássico, A Grande Transformação, de Karl Polanyi, de 1944, que fala
sobre a fratura entre sociedade e economia trazida pelo capitalismo selvagem, à
qual ele atribui as guerras grandes que destroçaram a Europa. Vale a pena
reler.
*Sociólogo, é membro da Academia Brasileira de Ciências
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