Valor Econômico
Uma sociedade complexa é mais bem atendida por um serviço público competente, profissional e neutro
Sociedades civilizadas dependem das instituições. Quanto mais complexa a sociedade, mais vital são essas instituições. Instituições proporcionam estabilidade, previsibilidade e segurança. Empresas, escolas, universidades e tribunais são instituições. No entanto, as instituições mais importantes são as do Estado. É por isso que a ofensiva de Donald Trump contra o que seus apoiadores de forma enganosa chamam de “o Estado profundo” é tão perigosa. Alguns deles acreditam que o Estado deveria ser servil aos caprichos do grande líder. Outros acham que deveria estar a serviço dos mais ricos. Ambos esses lados concordam que a capacidade do Estado de atender às necessidades do grande público é de pouca importância. Esses pontos de vista são perigosos. Prenunciam autocracia, plutocracia e disfunção.
Em uma importante série de artigos, “Valuing
the Deep State” (Valorizando o Estado profundo, em inglês), Francis Fukuyama,
de Stanford, examina por que a evisceração do Estado se mostrará tão
destrutiva. Fukuyama devotou grande parte dos últimos 20 anos para explicar que
“um Estado de alta capacidade, profissional e impessoal, é crucial para o
sucesso de qualquer sociedade”, inclusive, notavelmente, as democracias
modernas liberais. Esse ponto de vista é abominado por muitos americanos: eles
veem o Estado - ou simplesmente o “governo” - como o inimigo.
No entanto, qualquer um que tenha trabalhado
na área de desenvolvimento econômico, como eu, sabe que, sem um serviço público
neutro, competente e profissional, nada na sociedade realmente funciona. Quanto
mais complexa e refinada uma sociedade e economia moderna se torna, mais isso é
verdadeiro. Como Fukuyama observa acertadamente, o sucesso extraordinário das
economias do Leste da Ásia se deve em grande medida ao fato de que eles
entenderam como administrar esse Estado muito antes do que o Ocidente. Ainda mais
relevante, ele argumenta que uma “democracia bem-sucedida [...] precisa de um
Estado que seja restringido pelo Estado de Direito e pela prestação de contas
democrática”.
Nos EUA, a criação de um Estado como esse
começou em 1883, argumenta Fukuyama, com a Lei Pendleton, que criou a Comissão
de Serviço Civil e estabeleceu critérios baseados no mérito para as
contratações e as promoções no serviço federal. Isso é o que o governo Trump -
ou, como rotula o historiador Timothy Snyder, o “governo Mump”, para dar o
devido crédito ao papel singular desempenhado por Elon Musk - deseja derrubar.
Como explica Fukuyama, o sistema burocrático
dos EUA está longe de ser perfeito. O problema, porém, não é, como argumentam
os críticos de direita, o fato da delegação de decisões. Alguém imagina que
decisões técnicas sobre a segurança das aeronaves ou dos medicamentos, os
controles de poluentes perigosos ou a gestão do lixo nuclear deveria ser
decidida, em seus detalhes, por parlamentares? Obviamente, decisões desse tipo
precisam ser delegadas a especialistas qualificados. A noção de que, em vez
disso, elas deveriam ser decididas por pessoas cuja principal qualificação é a
lealdade cega ao grande chefe é absurda.
Você não torna um sistema complexo mais
“eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim,
aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos são a
intimidação e a substituição de servidores públicos genuínos por discípulos
A realidade é que essas “reformas” não têm
nada a ver com tornar o governo mais eficiente. O objetivo é, na verdade,
tornar “Mump” todo-poderoso. O jogo foi revelado pelo próprio J. D. Vance,
segundo o qual, se Trump voltasse a vencer a presidência em 2024, ele deveria
“demitir todos os burocratas de nível médio, todos os funcionários públicos do
Estado administrativo, substituí-los por nossa gente [...]”. “E quando os
tribunais te impedirem, apresente-se diante do país, como Andrew Jackson fez, e
diga: ‘O presidente da Suprema Corte de Justiça tomou sua decisão. Agora,
deixe-o [tentar] aplicá-la’”. Até aí, portanto, chegou a noção de que os EUA
são “um governo de leis, não de homens”. Isso é um golpe.
Esse esforço também não vai transformar as
contas públicas. No acumulado do ano fiscal de 2025 até agora, 78% dos gastos
federais foram feitos pela previdência social, saúde, defesa, segurança de
renda, benefícios para veteranos e juros líquidos. Musk diz que a Doge pode
economizar US$ 2 trilhões ao ano. Com gastos de 2024 na faixa de US$ 6,8
trilhões, isso parece absurdo.
Em suma, você não torna um sistema complexo
mais “eficiente” cortando-o de forma aleatória. No entanto, você pode, sim,
aterrorizar seus funcionários. Portanto, os verdadeiros objetivos, como Anne
Applebaum observa, são a intimidação e a substituição de servidores públicos
genuínos por discípulos. Os benefícios são claros: isso permitirá que os
responsáveis usem os poderes do governo para processar “inimigos”, intimidar
jornalistas, espalhar mentiras, ignorar a ciência e atacar governos estaduais e
municipais que saiam da linha, se necessário à força. E quanto ao Estado de
Direito? Vance já disse o que pensa dessa ideia. O objetivo, então, é
transformar os EUA em uma ditadura plebiscitária, na qual o detentor do poder é
rei. Essa revolução será compatível com eleições justas no futuro? É preciso
ter dúvidas quanto a disso.
Afinal, grande parte de tudo isso será
irreversível. Uma vez que a lealdade substitua a integridade e as mentiras
substituam a verdade, o caminho de volta será longo. Uma vez que você demita
servidores públicos competentes e honestos, com que facilidade você encontrará
pessoas similares no futuro? Os serviços de inteligência, os de dados e os de
análises científicas dos EUA eram referências mundiais. Quanto disso
sobreviverá? Um dos testes para o emprego será se alguém aceita a mentira de
que Trump venceu em 2020. Provavelmente, apenas concordarão os carreiristas e
os fanáticos do movimento “Maga” (Make America Great Again).
Se o tipo de Estado elogiado por Fukuyama for
substituído pelo que se pretende agora, é inevitável o surgimento de uma
mistura venenosa de incompetência, predação e corrupção. Entre as
características prejudiciais estará o que Daniel Kaufmann, pesquisador sênior
da organização sem fins lucrativos Results for Development, chama de “captura
do Estado” - a exploração do poder por aqueles que são capazes não apenas de
dobrar as regras, mas de criá-las, para seu próprio benefício. Para um país de
alta renda, os EUA já estão relativamente capturados. Isso, contudo, está
prestes a piorar, agora que as regras de proteção à independência dos
funcionários públicos estão por ser abolidas.
O que está acontecendo é destruição, não
reforma. Não importa o que tenham dito a eles, os americanos comuns não se
beneficiarão do caos. Mas sabemos quem vai se beneficiar. (Tradução de Sabino Ahumada)
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