sábado, 1 de dezembro de 2018

Opinião do dia: Fernando Henrique Cardoso

• Houve uma “direitização” do Brasil?

No espectro direita-esquerda, é claro que estas eleições foram mais para a direita. Antes, os partidos polares eram o PT e o PSDB, e quem fazia o meio de campo era o PMDB, que era o partido de Estado, das estruturas políticas. Na verdade, PT-¬PSDB foi uma polarização forçada. O PT dizia que a direita era o PSDB. Agora viu que não é. A sociedade mudou muito, e aqueles que se supunham progressistas não foram capazes de simbolizar algo que o povo aceitasse. Isso quer dizer que o país é conservador? Pode ser. A tendência dos países em geral é se conservar. Todo mundo fala em mudança, em evolução, mas as pessoas têm medo de mudar. Aqui, vão conservar o quê? Não está claro, porque o governo não existe ainda.
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Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República. Entrevista: ‘O centro radical’, Revista Veja, 30/11/2018.

Miguel Reale Júnior: Brasil acima de tudo

- O Estado de S.Paulo

A Nação estará a serviço de Deus e todos estarão a serviço de ambos, da Nação e de Deus

No centenário do fim da 1.ª Guerra Mundial, no mês passado, em Paris, o presidente francês, Emmanuel Macron, foi incisivo ao condenar o nacionalismo, por ser justamente o oposto ao patriotismo, a ponto de o trair. Mitterrand já dissera que o nacionalismo é a guerra. De Gaulle tem frase famosa distinguindo patriotismo de nacionalismo, valendo repetir seu ensinamento: “Patriotismo significa que o amor por seu próprio povo vem em primeiro; nacionalismo, todavia, consiste que o ódio aos demais povos vem em primeiro”.

Becker e Krumeich, dois autores, um francês e o outro alemão, em obra conjunta, La Grande Guerre – Une Histoire Franco-allemande, decifram o núcleo da 1.ª Guerra Mundial, que, a seu ver, foi uma guerra entre França e Alemanha, tendo por palco seus territórios e por vítimas principais, seus filhos. Originou-se ela em sentimentos de vingança, fruto de um nacionalismo irracional que nada tinha que ver com a vivência de valores de cada uma dessas nações. O nacionalismo foi a sua causa.

O patriotismo, enquanto compreensão do próprio modo de ser ao longo da História para afirmação de uma individualidade aberta ao diálogo com as demais pátrias, revela-se generoso. O nacionalismo, no entanto, fecha-se como uma religião laica, no dizer de Vargas Llosa, para em atos de fé encarar outras nações como inimigas.

Na contramão do presidente francês está o nosso presidente eleito, que se filia ao nacionalismo belicoso, à moda de Trump.

O slogan do presidente eleito, “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, não é apenas uma frase de efeito propagandístico. Revela-se, nesse dístico, uma contraposição inicial: o Brasil acima de todos vem a ser, sob o viés internacional, uma declaração de supremacia em face dos demais países, e o reconhecimento apenas de uma única outra força maior, superior, a de Deus.

A Nação estará a serviço de Deus e todos estarão a serviço de ambos, da Nação e de Deus. O que deveria ser um compromisso subjetivo a brotar da convicção íntima de cada qual se socializa na missão de engrandecer o Brasil para a glória de Deus. Desfaz-se o Estado laico.

João Domingos: O nó da Previdência

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro só sabe que seu projeto não será igual ao apresentado por Michel Temer

Um mês depois de sua eleição para a Presidência da República, e com quase todo o Ministério já definido, vê-se hoje que Jair Bolsonaro não preparou um projeto de reforma da Previdência durante sua campanha. E que, mesmo sabendo da necessidade de fazer tal reforma, um pré-requisito para buscar o equilíbrio fiscal, nada foi fechado ainda. Se antes Bolsonaro dizia que é preciso iniciar esse debate pela Previdência do setor público, agora ele acrescentou mais um detalhe. E nele o presidente eleito tem insistido: a reforma previdenciária de Michel Temer, cujo projeto está pronto para ser votado, na Câmara, não será a sua proposta.

Na opinião de Bolsonaro, ela “é agressiva para com o trabalhador”. Da forma como a reforma foi pensada, “ela não está justa”. E acrescentou, como fez ontem, durante entrevista em Cachoeira Paulista: “É preciso tomar cuidado. Não podemos querer salvar o Brasil matando o idoso”.

Bolsonaro não detalhou qual proposta apresentará. Mas reafirmou sua intenção de enviar um projeto de reforma da Previdência ao Congresso no primeiro ano de mandato.

Se não deu detalhes de como será sua reforma da Previdência, é porque o presidente eleito não sabe, mesmo, como ela será. O que ele sabe é como ela não será. Portanto, não será igual à de Temer.

Levando-se em conta que logo depois de se ver vencedor da disputa presidencial Bolsonaro disse que o ideal seria tentar aprovar ainda neste ano o projeto de reforma de Temer, “alguma coisa dele”, nas palavras do presidente eleito, algo aconteceu do segundo turno para cá. Tanto aconteceu que o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do próximo ocupante do Palácio do Planalto, disse nesta semana a investidores, em Nova York, que a reforma da Previdência talvez não seja aprovada.

Adriana Fernandes: Uma briga de cada vez

- O Estado de S.Paulo

Pode não ser uma boa estratégia entrar em tanta briga ao mesmo tempo

Com carta branca até agora do presidente eleito Jair Bolsonaro, o futuro ministro da Economia, Paulo Guedes, conseguiu montar o seu próprio “dream team” completamente alinhado às suas ideias e com uma capacidade de entrega que será testada logo nos primeiros meses. Precisa ser rápido na apresentação das medidas para garantir a confiança e o apoio necessários à aprovação das reformas no Congresso. Isso é certo.

Precisa também escolher as brigas a serem compradas sem prejuízo a outras que terão que ser enfrentadas mais à frente. Um erro primário seria querer ganhá-las todas de uma vez, tumultuando o jogo de pressões no Congresso, onde projetos essenciais terão que ser aprovados.

A proposta mais importante a ser encaminhada é reforma da Previdência. O plano de desindexação e desvinculação do Orçamento, confirmado por Guedes esta semana, não pode se sobrepor à proposta de mudança das regras de Previdência que será encaminhada em março, segundo indicações do futuro ministro.

É possível que Guedes, ao confirmar o plano de aperfeiçoamento do teto de gasto para incluir uma cláusula de “desarme” de todo tipo de indexação e vinculações que existe no Orçamento – inclusive salários e despesas de Previdência, saúde e educação –, queira, na prática, mostrar: vamos lá aprovar a reforma da Previdência. Sem ela, o cenário piora rapidamente.

Guedes quer reduzir as vinculações e reduzir indexação para tornar mais fácil cumprir a emenda do teto dos gastos. A questão é que mexer em indexação envolve, em alguns casos, mudança constitucional e interesses setoriais e corporativos muito mais amplos e dispersos. Por exemplo, pela Constituição está garantida a manutenção do valor real de todos os benefícios previdenciários. Mudar a Constituição nesse ponto pode ser uma tarefa até mais difícil do que aprovar a Previdência.

Demétrio Magnoli: Haddad, caso perdido

- Folha de S. Paulo

Petista retorna como sonâmbulo ao aposento de sempre e recoloca máscara de Lula

"Vocês repararam que o PSDB perdeu a quinta eleição seguida e a mídia conservadora jamais lhe pediu autocrítica?".

A indagação de Fernando Haddad, pelo Twitter, situa-se a meio caminho entre a alienação e a má-fé. A cobrança, que não se restringe à "mídia conservadora", relaciona-se às sucessivas vitórias eleitorais do PT, não à derrota recente.

A tão necessária revisão teria que incidir sobre a política econômica que elegeu Dilma duas vezes, às custas da maior recessão da nossa história, e à corrupção sistemática, que financiou três triunfos eleitorais. Mas, para fazê-la, seria preciso uma régua política estranha ao lulismo.

Haddad parecia a muitos, inclusive a mim, um potencial deflagrador da "refundação" do PT. Engano. Sua entrevista à Folha (26/11) prova que o discurso esboçado no segundo turno era teatro eleitoral.

O candidato, que engoliu a narrativa do "golpe do impeachment" por exatas três semanas, retorna como sonâmbulo ao aposento de sempre, recoloca a máscara de Lula e se exibe como líder do PT de Gleisi, Lindbergh et caterva.

Lula "teria ganhado a eleição", afirma o profeta Haddad, desafiando as evidências disponíveis. A operação de transferência de votos lulistas foi um sucesso, como atestam os resultados do primeiro turno.

Todos os indícios sugerem que, no segundo, o "moderado" Haddad obteve até mesmo os sufrágios de incontáveis eleitores refratários a votar em Lula. A profecia haddadiana não é um exercício de análise contrafactual, mas um truque retórico para a reinstalação da narrativa sectária.

Na entrevista, quando acusa o Judiciário e o Ministério Público de operarem sob "viés antidemocrático", Haddad retorna à lenda da conspiração universal contra o PT.

Julianna Sofia: Incipiente

- Folha de S. Paulo

PF de Temer abre inquérito contra Guedes, mas será a de Moro que precisará mostrar os resultados

No posto central de mentor econômico de um provável governo Jair Bolsonaro, Paulo Guedes telefonou para o então juiz Sergio Moro para uma sondagem. Era 23 de outubro, cinco dias antes do segundo turno das eleições, e o economista prospectava. Em menos de dez dias, o magistrado anunciaria largar a toga por um cargo no ministério do presidente recém-eleito.

Guedes não é um economista acima de qualquer suspeita. Seus negócios milionários com fundos de pensão de empresas estatais vêm sendo esmiuçados pelo Ministério Público Federal a partir de irregularidades apontadas por órgãos técnicos.

Num prazo de seis anos, o (futuro) superministro captou R$ 1 bilhão em dinheiro das aposentadorias dos trabalhadores do Banco Brasil, Petrobras, Caixa Econômica e Correios. No período, as entidades de previdência complementar eram administradas pelo PT e PMDB, legendas atacadas por chafurdarem em esquemas de corrupção.

Luís Francisco Carvalho Filho: O imperador e o presidente

- Folha de S. Paulo

Falta a Bolsonaro o tempero da cultura democrática

Não considero as fake news o problema atual da humanidade e não acredito que Hillary Clin- ton e Fernando Haddad perderam eleições para o populismo de direita por causa de informações falsas em redes sociais.

Disputas eleitorais são forjadas pela mentira. Candidatos conservadores e progressistas prometem o que não cumprem. Mentir mais não é necessariamente pior do que mentir menos. É cínico, mas ainda não se inventou nada melhor do que a rotatividade de poder que o regime democrático, sempre imperfeito, proporciona.

Historicamente, a disseminação de falsidades se intensifica com a aceleração tecnológica.

No império, o padrão de gravidade era a distribuição de impressos ou manuscritos por mais de 15 pessoas e o discurso em reuniões públicas. Além do sistema monárquico e da figura celestial do imperador, era preciso proteger "as verdades fundamentais da existência de Deus e da imortalidade da alma".

Com a república, a afixação de papéis ofensivos em "lugar frequentado" e, depois, o rádio e a TV multiplicaram os efeitos das inverdades. A Lei de Segurança Nacional de 1969 não tolerava nem guerra psicológica adversa nem divulgação de notícia falsa ou tendenciosa ou de fato verdadeiro truncado ou deturpado.

Com a internet, a boataria é instantânea. Que ninguém se iluda: não há como preservar o país da circulação de fatos sabidamente inverídicos e do impulsionamento de conteúdos nocivos.

Daniel Aarão Reis: O dia que durou dez anos

- O Globo

Foram tempos sombrios para a democracia. As oposições moderadas tiveram que lutar no alto de uma corda bamba

Não sei se será possível esquecer aquela sexta-feira 13, quando, há 50 anos, foi decretado o Ato Institucional nº 5. Em nove páginas, subscritas por 17 homens, nove militares e oito civis, meia dúzia de considerandos, 12 artigos, dez parágrafos e oito itens selaram — e aprisionaram — o destino da sociedade brasileira.

A ditadura começara há pouco mais de quatro anos, em abril de 1964, instaurada por um golpe civil-militar. Logo se evidenciaram as diferenças entre os vencedores. As lideranças políticas principais desejavam um golpe cirúrgico, violento, mas rápido. Capaz de expulsar da área as forças de esquerda, que assustavam com seus projetos de reformas de base. Depois, afastada a “canalha”, o calendário eleitoral seria retomado, com a realização das eleições previstas para o ano seguinte. Assim, no entanto, não o entenderam as Forças Armadas. Aglutinadas em torno de um projeto de modernização autoritária, resolveram manter sua preeminência, rompendo com a tradição de sustentar o poder, porém, sem exercer diretamente o governo. O caráter civil-militar do regime deveria ser preservado sob comando das corporações militares. Na boca do povo, os poderes da República agora eram outros: Exército, Marinha e Aeronáutica. Ou seja, entre 1964 e 1968, a frente heterogênea que articulara e apoiara o golpe, inclusive com amplas bases sociais, decantara-se. Nas fendas abertas, apareceram movimentos alternativos: alguns queriam reverter ao passado anterior ao golpe. Outros, visavam a futuros revolucionários.

Merval Pereira: Polêmica desnecessária

- O Globo

Continência é um tipo de ‘saudação’quando um militar encontra qualquer civil ou autoridade, e tem o significado de um ‘olá’

O complexo de vira-lata de que falava o grande escritor e dramaturgo Nelson Rodrigues nos ataca com freqüência, e sua mais recente representação é a “continência” do presidente eleito Jair Bolsonaro para John Bolton, o Conselheiro do presidente dos Estados Unidos Donald Trump.

A continência é um tipo de “saudação” quando um militar encontra qualquer civil ou autoridade, e tem o significado de um “olá”, um bom-dia, representando apenas a cortesia de um cumprimento. Bolsonaro, ainda na campanha, encontrou-se com o juiz Sérgio Moro por acaso, num aeroporto, e cumprimentou-o batendo continência.

Seu gesto não representou subserviência, assim como também o então chanceler brasileiro Celso Lafer não foi subserviente ao aceitar tirar os sapatos para uma vistoria de segurança em um aeroporto dos Estados Unidos, logo depois dos ataques terroristas de 2001.

Lafer, como explicou depois, foi apenas republicano, entendendo que, naquele momento específico, “havia uma legislação aplicável a todas as pessoas. Achei que era natural essa preocupação com segurança. Não criei problemas, assim como não criaram nesta mesma ocasião o ministro das Relações Exteriores da Rússia e a ministra do Chile”.

Não foi, porém, por isso que o governo brasileiro deixou de registrar a inconveniência política de exigir do chanceler uma vistoria igual à das demais pessoas. Sem “complexo de vira-lata” que justificasse um escândalo diplomático.

Míriam Leitão: Cenários e receita para o país crescer

- O Globo

Estudo do Ipea mostra que o Brasil tem potencial para crescer o PIB per capita em 50% em 12 anos. Mas será preciso aprovar muitas reformas

O país cresceu no terceiro trimestre e retomou o ponto em que estava em 2012. Esse é o tamanho do atraso provocado pelos erros de política econômica no governo Dilma. Ainda há um caminho a fazer para chegar ao ponto em que a economia estava quando despencou. Os serviços puxaram, o investimento cresceu, mas nada foi suficiente para imprimir um ritmo maior. Desde que parou de encolher, o PIB se expande em ritmo moroso.

Os números do terceiro trimestre vieram mais fracos do que o esperado pelo mercado. O crescimento acelerou na comparação com o segundo trimestre, de 0,2% para 0,8%, mas o que houve foi uma recuperação dos efeitos da greve do setor de transportes, que paralisou o país no mês de maio. Quando a comparação é feita com o mesmo trimestre de 2017, a alta foi de apenas 1,3%. No acumulado em 12 meses, subiu 1,4%. No começo do ano o país achou que cresceria 3%. Não vai dar.

O Ipea divulgou esta semana, no meu programa na Globonews, os cenários preparados para o país nos próximos 12 anos, até 2030. Bom para quem quer ver o Brasil avançar. “Cenários de longo prazo podem ser uma ferramenta importante para avaliação de custos, benefícios e riscos de alternativas”, alertam os economistas do Ipea.

Ruy Fabiano: O Rio é a síntese do Brasil

- Blog do Noblat | Veja

O Rio não é exceção; antes, é regra.

A prisão do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, em pleno exercício do cargo, reveste-se de profundo sentido simbólico.

Resume a política brasileira contemporânea, em que o Estado e suas instituições foram capturados pelo crime organizado. Ele está nos três Poderes. A Lava Jato, uma operação policial, tornou-se, por isso mesmo, estuário das esperanças nacionais. Fato inédito.

Além dos quatro últimos governadores – Garotinho, Rosinha, Sérgio Cabral e Pezão -, estão presos os três últimos presidentes da Assembleia Legislativa fluminense e todo o Tribunal de Contas do Estado (à exceção de uma ministra, nomeada ao tempo em que os outros embarcavam no camburão), além de procuradores e juízes.

O Rio não é exceção; antes, é regra. Nem é a cidade mais violenta do Brasil: no ranking nacional, é a 22ª.

Mas, como cidade-síntese da nacionalidade – foi capital em suas três fases históricas (colônia, império e república) -, é um retrato do país, que tem hoje um ex-presidente (Lula) preso e os dois que o sucederam (Dilma e Temer) já na condição de réus.

O presidente que, dentro de um mês, sai se empenha em conceder um indulto a amigos, políticos que incidiram no crime de corrupção – o mesmo de que é acusado -, com plena recepção do STF (que já contabilizou os seis votos necessários para aprová-lo).

A eleição de Jair Bolsonaro, um deputado que por quase três décadas integrou o chamado baixo clero da Câmara, decorre desse quadro moralmente devastado. Bolsonaro concentrou sua atuação parlamentar, sempre vista como irrelevante, quando não caricatural, na denúncia do crime e da corrupção generalizada.

Entrevista - É exagero dizer que Bolsonaro é golpista, diz Almino Affonso, cassado em 64

Ex-ministro do Trabalho de Goulart afirma que quadro é diferente do que levou ao regime militar

Ricardo Kotscho, Catia Seabra | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO- Prestes a completar 90 anos, o ex-deputado Almino Affonso afirma que a omissão dos grandes partidos, sobretudo PSDB e MDB, abriu um vazio político no Brasil. Dele, surgiu Jair Bolsonaro.

Ministro do Trabalho de João Goulart (1961-64), Almino não vê hoje cenário propício a um novo golpe de Estado.

Mas, ao lamentar a falta de líderes capazes de ocupar esse vazio e lembrar a Alemanha assolada após a 1ª Guerra, afirmou: “O Hitler ocupou”.

Ex-tucano e ex-emedebista, Almino faz um apelo para que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assuma uma atitude de estadista.

Almino afirma ainda que a concentração de poder nas mãos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva matou o debate interno no PT.

• Em 1961, o sr advertiu que a renúncia do então presidente, Jânio Quadros, fazia parte de um golpe de Estado. Para o sr., há hoje risco de um golpe, como afirmam integrantes da esquerda? 

Não chutei [à época]. É provado. Tem um livro, chama “História do Povo Brasileiro” [aponta a estante], escrito, muito tempo depois, por ele [Jânio] e por Afonso Arinos, em que ele confessa a renúncia como algo articulado para o golpe. Na tribuna, fiz por pura intuição.

A mensagem que ele manda ao país para justificar a atitude era uma contradição: o Exército está com ele, o povo está com ele, o empresariado está com ele… Tudo estava com ele. E o país era ingovernável?

• Hoje, existe um cenário propício? 

Vejo um quadro rigorosamente diferente. Tivemos naquele período a Guerra Fria. Tudo que não levava apoio ao EUA era presuntivamente prova de que apoiávamos a URSS. Essa visão influiu na opção militar. Mas houve causas de natureza social, inflação galopante, crise social aguda, desemprego, dívida externa.

De nossa parte, uma reforma agrária contestada por interesses contrariados. No Congresso, a maioria era favorável a manter a Constituição como estava, de modo que impedia uma reforma. São causas laterais que criaram um conflito da inviabilidade do governo Jango.

• E hoje? 

Hoje você tem um governo de uma liderança que, para setores da sociedade, é inaceitável e questionável. Mas daí dizer que dele resulta uma articulação golpista, acho que é uma visão exagerada.

Bolsonaro chega ao governo sem que tenha um programa minimamente apresentável. Ele foi eleito por essa maioria fascinante do ponto de vista numérico como um grande protesto nacional contra tudo. Não especificamente a favor dele.

É contra o desamparo, o desemprego, a corrupção, contra os partidos políticos que se deterioraram e foram se transformando em grupelhos. Ele tem o privilégio de ter uma maioria fascinante. Quem, antes dele, teve algo semelhante? Getúlio Vargas, no mandato de 1950. Fora isso, quem? Nem o Lula.

• Em 2002, Lula teve mais votos. 

Mas não com essa dimensão.

• O sr. acha que o povo deu um cheque em branco? 

Essa é a inquietação. Você tem um país ainda sem programa, a revolta é real e numa expectativa de que ele responda. E Bolsonaro tem pela frente muitas perguntas.

• O seu foi o 14º nome da lista de cassados no dia 9 de abril de 1964, pelo golpe deflagrado sob pretexto de salvar o Brasil do comunismo. Aos 89 anos, o sr. ainda se considera um perigoso comunista? 

Não vejo correlação entre o passado e hoje. Não vejo a presença comunista no país sendo objeto de um debate. Menos ainda de um risco qualquer.

• O sr. mesmo já disse que em 1964 não havia esse risco.

Não havia o risco comunista de verdade. Mas houve uma programação acusatória, com a grande imprensa inclusive, e influiu muito na decisão dos militares. Se pegar todos os manifestos dos principais líderes militares no dia do golpe, os quatro generais, todos dizem que estão salvando o país do comunismo.

• Mas esse discurso voltou. Quem faz oposição ao Bolsonaro é chamado de comunista, vermelho. Essa ameaça estava no discurso de campanha do presidente eleito.

Quem são os comunistas hoje nessa acusação implícita ou explícita? Seria o PT? O PT não tem nada de comunista. Lula nunca foi comunista. Haddad é nada comunista. Não vejo nenhuma organização comunista que justifique esse tipo de argumentação.

• O sr. atribui o golpe ao contexto da Guerra Fria. Hoje quais são os interesses geopolíticos em jogo nessa guinada de poder no Brasil? O mundo está caminhando para a direita? 

O mundo está tendo uma projeção à direita crescente. O quanto isso se articulará em organizações à maneira do nazismo e do fascismo me parece, neste instante, muito distante.

Mas há algo que pode associar-se. Termina a Primeira Guerra Mundial. Você tinha a Alemanha arrasada, humilhada. Nesse imenso vazio, surge uma liderança que gradualmente incorpora esse protesto. Foi criando o Hitler. Esse potencial me inquieta. Não estou dizendo que ele está configurado. Mas há algo de semelhante.

O clima e a soberania do País: Editorial | O Estado de S. Paulo

Em dezembro de 2015, todos os 195 países membros da ONU chegaram a um acordo legalmente vinculante a respeito da proteção do meio ambiente. Resultado de longas negociações, que culminaram na 21.ª Conferência das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (COP-21), o Acordo de Paris representou o compromisso de limitar o aumento médio da temperatura da Terra a 1,5°C até 2100. Em vez de se sujeitar a metas predeterminadas, cada país se comprometeu a elaborar uma estratégia de redução das emissões de carbono, dentro do objetivo comum de reduzir o aumento da temperatura global.

Tendo contribuído ativamente nas tratativas do Acordo de Paris, o Brasil assinou oficialmente o documento em 22 de abril de 2016. Cumprindo os trâmites institucionais, o acordo sobre o clima foi aprovado pelo Congresso Nacional em agosto do mesmo ano, por meio do Decreto Legislativo 140/2016. O Acordo de Paris, a seguir, tornou-se norma vigente do ordenamento jurídico brasileiro, por decreto presidencial.

Dada a importância do tema, é no mínimo imprudente que o presidente eleito Jair Bolsonaro diga que o Brasil deverá abandonar o Acordo de Paris, como se a participação do País no esforço para limitar o aumento médio da temperatura global fosse uma questão pessoal de quem ocupa, no momento, a Presidência da República.

O assunto veio à tona após o Brasil anunciar a retirada de sua candidatura para sediar a COP-25, a ser realizada em 2019. O Brasil representava a América Latina e havia sido escolhido pela região para receber o evento. Num primeiro momento, o governo brasileiro informou que a mudança de planos era motivada por questões orçamentárias. No entanto, logo em seguida, o presidente eleito esclareceu que “houve participação minha nessa decisão”.

Indulto impõe reflexão sobre criminalidade: Editorial | O Globo

Perdão decretado por Temer deve ser avaliado pela ótica do descontrole da corrupção

O que já aconteceu outras vezes no Supremo — um pedido de vista, agora do ministro Luiz Fux — congelou um julgamento já decidido por maioria de votos sobre um tema polêmico.

É o caso rumoroso do decreto de indulto de Natal assinado pelo presidente Michel Temer em fins de 2017, que provocou rápida reação contrária da procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ao relaxar critérios usuais em indultos concedidos pelo chefe do Executivo federal, Temer passou a ser acusado de usar uma prerrogativa presidencial para ajudar condenados pela Lava-Jato.

À época, a ministra Cármen Lúcia, então presidente do STF, responsável pelo plantão de fim de ano do tribunal, acolheu o pedido de liminar de Dodge. O ministro Luís Roberto Barroso foi sorteado relator do processo e deu, na quarta-feira, um forte voto contra os termos do indulto. Mas, por maioria, mesmo com o julgamento não finalizado, já está derrotado por seis a dois, faltando apenas três ministros a votar. O resultado só será promulgado depois da devolução do processo por Fux, sendo que até lá ministros podem mudar de posição.

O limite do perdão: Editorial | Folha de S. Paulo

STF forma maioria para reafirmar prerrogativas do Executivo

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal concluiu nesta semana que a definição de regras para concessão de perdão a condenados faz parte das prerrogativas garantidas pela Constituição brasileira ao presidente da República.

Segundo eles, não cabe ao Poder Judiciário interferir nos critérios que forem estabelecidos pelo chefe do Executivo, mesmo que lhe pareçam benevolentes demais.

A questão foi debatida pela corte em razão da controvérsia criada por um decreto publicado pelo presidente Michel Temer no fim de 2017, quando o emedebista achou conveniente afrouxar —em demasia, diga-se— os requisitos para o tradicional indulto natalino.

O texto permitia a libertação de pessoas que tivessem cumprido apenas um quinto da pena e abria caminho para que condenados por crimes de colarinho branco, como corrupção e lavagem de dinheiro, voltassem às ruas mais cedo.

Espaço de militares no governo Bolsonaro será o maior desde a redemocratização

Membros com origem nas Forças Armadas ocupam sete pastas do futuro Ministério de Bolsonaro, o que equivale a 35%

Igor Mello | O Globo

RIO — O Ministério do futuro governo de Jair Bolsonaro tem a maior parcela de membros com origem nas Forças Armadas desde a redemocratização. À frente de sete pastas, os oficiais da reserva já ocupam 35% do primeiro escalão — até agora com 20 nomes anunciados.

O GLOBO compilou, com base em informações do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC-FGV) e de seu acervo, a composição inicial dos ministérios de todos os presidentes desde 1964.

Entre os ministros do governo Bolsonaro, fizeram carreira no Exército os generais Augusto Heleno (GSI), Fernando Azevedo e Silva (Defesa) e Carlos Alberto dos Santos Cruz (Secretaria de Governo), assim como Wagner Rosário (CGU), que é capitão da reserva, e Tarcísio Freitas, engenheiro na corporação por 16 anos. O representante da Marinha no governo é o almirante de esquadra Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Junior (Minas e Energia), enquanto o tenente-coronel Marcos Pontes (Ciência e Tecnologia) é oriundo da Aeronáutica.

Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro chegou a declarar que metade dos ministérios seriam ocupados por militares. Gustavo Bebianno, futuro titular Secretaria-Geral da Presidência, afirmou ao GLOBO em outubro que a equipe do presidente eleito teria “quatro ou cinco militares”.

Militares que atuaram no Haiti ganham destaque no governo Bolsonaro

Quatro ex-comandantes das tropas foram chamados pelo presidente eleito; um quinto oficial irá para o STF

Joelmir Tavares | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - O Haiti não é aqui, mas ter passado pelo país da América Central chefiando as tropas da Minustah (a missão de paz da ONU que atuou de 2004 a 2017) parece ter se tornado um trunfo para generais da reserva que vislumbram uma vaga no governo de Jair Bolsonaro (PSL).

A lista de ex-comandantes da operação anunciados para compor o governo já conta com três oficiais, e um quarto teve a presença confirmada informalmente.

Mais do que uma coincidência, a ascensão de nomes que participaram da missão no Haiti tem sido vista externamente como um sinal de valorização de militares com carreira sólida que adquiriram capacidade de gestão e de resolução de conflitos.

O presidente eleito colocou no GSI (Gabinete de Segurança Institucional) Augusto Heleno, primeiro comandante da Minustah (entre 2004 e 2005); levou para a Secretaria de Governo Carlos Alberto dos Santos Cruz (que esteve no Haiti de 2007 a 2009); e indicou para o comando do Exército Edson Leal Pujol (líder da força de paz entre 2013 e 2014).

Floriano Peixoto Vieira Neto, que coordenou a missão entre 2009 e 2010, é cotado para assumir a gestão de contratos de publicidade do governo, na Secretaria-Geral da Presidência. Bolsonaro disse na terça-feira (27) que ele pode ir para o cargo, mas o martelo não foi batido.

Iniciada em 2004, quando a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide quase levou o Haiti a uma guerra civil, a intervenção da ONU foi chefiada pelo Brasil. A participação foi considerada bem-sucedida e teve peso no processo de estabilização política nacional, embora não tenha sido capaz de resolver todos os problemas locais.

Também foi essencial para diminuir o impacto de duas das maiores tragédias da história do país, o terremoto de 2010, que deixou 220 mil mortos e destruiu boa parte da capital Porto Príncipe, e o furacão Matthew, que matou mais de mil habitantes em 2016.

Dos 11 brasileiros que chefiaram as tropas ao longo dos 13 anos, cinco terão funções relevantes na República a partir dos próximos meses, se for incluído na conta o último comandante da ação em solo haitiano, Ajax Porto Pinheiro (2015 a 2017).

Após queixa, Bolsonaro abre diálogo com partidos

Mudança de estratégia tem como objetivo garantir apoio em votações no Congresso

Vera Rosa / Daniel Weterman | O Estado de S. Paulo

BRASÍLIA - O presidente eleito, Jair Bolsonaro, começou a se aproximar dos partidos para obter apoio no Congresso, contrariando a retórica de campanha. Após enfrentar protestos de aliados que até agora não foram contemplados com ministérios, Bolsonaro tenta compensar os insatisfeitos, prometendo indicações em secretarias e até no segundo escalão. A mudança de estratégia foi desenhada para enfrentar as pressões políticas por cargos.

A justificativa de Bolsonaro é a de que algumas concessões têm sido feitas em nome da “governabilidade”. Mesmo assim, ele mantém o discurso de que nenhum ministério será preenchido pelo modelo da “porteira fechada”, jargão usado para se referir à ocupação de todos os assentos de uma pasta pelo mesmo partido.

Na tentativa de quebrar resistências e acenar para seus antigos pares na Câmara, Bolsonaro vai se reunir com várias bancadas, a partir da próxima semana. Na terça-feira, por exemplo, ele conversará com deputados do MDB e do PRB no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), sede da equipe de transição, enquanto o futuro ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, estará com parlamentares do PSDB na Câmara. O encontro com o PR foi marcado para quarta.

Ao confirmar ontem a intenção de criar pontes com os partidos no Congresso, Bolsonaro disse que espera negociar saídas para as crises ética e econômica.

“Devemos sair dessa crise juntos (porque) o presidente sozinho não pode fazer nada”, afirmou ele. “Se nós dermos errado, todo mundo perde”, emendou, após visitar o Santuário da Canção Nova, em Cachoeira Paulista (SP), no Vale do Paraíba.

Com novas críticas aos governos de Cuba e da Venezuela, o presidente eleito repetiu que, se a sua gestão não der certo, “todos sabem quem voltará”, em uma referência ao PT.

Derrotados nas urnas ganham vaga no governo

Coluna do Estadão

Jair Bolsonaro escalou deputados derrotados nas eleições de outubro para ajudar na articulação política do seu governo. Leonardo Quintão (MDB-MG) e Carlos Manato (PSL-ES) serão secretários de Onyx Lorenzoni na Casa Civil, não terão status de ministros e receberão salários de R$ 16,5 mil. A tarefa deles será abrir diálogo com o Congresso. “Mas sem fazer o toma lá, dá cá”, diz Manato sobre a missão recebida. A bancada evangélica tentou emplacar Quintão como ministro das Minas e Energia, mas ele foi contemplado apenas com o cargo no 2.º escalão.

Em breve. Ficou acertado que Quintão e Manato só assumirão as vagas no governo em fevereiro, quando termina o mandato deles na Câmara dos Deputados.

Amigo secreto. O ex-senador Wellington Salgado (MDB-MG) fez a ponte entre Paulo Guedes e Renan Calheiros e viabilizou o jantar dos dois na última terça-feira, encontro revelado pela Coluna. Pupilo de Renan, Salgado é amigo do futuro ministro da Fazenda há mais de dez anos.

Conexão. Os dois se conheceram numa época em que o futuro ministro queria entender sobre o mercado de educação. O ex-senador é dono de universidade. Guedes se interessou pelo tema ao perceber que, após a crise financeira internacional, o mercado que se recuperou mais rapidamente foi o do ensino.

Tête-à-tête. Paulo Guedes se divide entre se aproximar do mundo de Brasília e manter vivos os laços com o setor financeiro. Na quinta, jantou com Eduardo Alcalay, presidente do Bank of America Merrill Lynch, e outros executivos do banco. Ficaram em sala reservada no Fasano do Rio até tarde da noite.

Saco sem fundo. O encontro que Jair Bolsonaro fará com as bancadas partidárias ainda não atende aos anseios dos partidos. Os presidentes das siglas reclamam de não terem sido convidados.

Ana Costa - "Salve a Mulatada Brasileira // Samba dos Ancestrais"

Vinicius de Moraes: Receita de Mulher

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então Que a mulher se socialize elegantemente em azul,
como na República Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como no âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos então
Nem se fala, que olhe com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável.
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mas que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os menbros que terminem como hastes, mas que haja um certo volume de coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhavel na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!).
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser frescas nas mãos, nos braços, no dorso, e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca inferior
A 37 graus centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferencia grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher de sempre a impressão de que se fechar os olhos
Ao abri-los ela não estará mais presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação imunerável.