Quatro ex-comandantes das tropas foram chamados pelo presidente eleito; um quinto oficial irá para o STF
Joelmir Tavares | Folha de S. Paulo
SÃO PAULO - O Haiti não é aqui, mas ter passado pelo país da América Central chefiando as tropas da Minustah (a missão de paz da ONU que atuou de 2004 a 2017) parece ter se tornado um trunfo para generais da reserva que vislumbram uma vaga no governo de Jair Bolsonaro (PSL).
A lista de ex-comandantes da operação anunciados para compor o governo já conta com três oficiais, e um quarto teve a presença confirmada informalmente.
Mais do que uma coincidência, a ascensão de nomes que participaram da missão no Haiti tem sido vista externamente como um sinal de valorização de militares com carreira sólida que adquiriram capacidade de gestão e de resolução de conflitos.
O presidente eleito colocou no GSI (Gabinete de Segurança Institucional) Augusto Heleno, primeiro comandante da Minustah (entre 2004 e 2005); levou para a Secretaria de Governo Carlos Alberto dos Santos Cruz (que esteve no Haiti de 2007 a 2009); e indicou para o comando do Exército Edson Leal Pujol (líder da força de paz entre 2013 e 2014).
Floriano Peixoto Vieira Neto, que coordenou a missão entre 2009 e 2010, é cotado para assumir a gestão de contratos de publicidade do governo, na Secretaria-Geral da Presidência. Bolsonaro disse na terça-feira (27) que ele pode ir para o cargo, mas o martelo não foi batido.
Iniciada em 2004, quando a deposição do presidente Jean-Bertrand Aristide quase levou o Haiti a uma guerra civil, a intervenção da ONU foi chefiada pelo Brasil. A participação foi considerada bem-sucedida e teve peso no processo de estabilização política nacional, embora não tenha sido capaz de resolver todos os problemas locais.
Também foi essencial para diminuir o impacto de duas das maiores tragédias da história do país, o terremoto de 2010, que deixou 220 mil mortos e destruiu boa parte da capital Porto Príncipe, e o furacão Matthew, que matou mais de mil habitantes em 2016.
Dos 11 brasileiros que chefiaram as tropas ao longo dos 13 anos, cinco terão funções relevantes na República a partir dos próximos meses, se for incluído na conta o último comandante da ação em solo haitiano, Ajax Porto Pinheiro (2015 a 2017).
Pinheiro será assessor especial do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Dias Toffoli —substituindo Fernando Azevedo e Silva, este escolhido como futuro ministro da Defesa.
Azevedo e Silva é mais um que atuou na missão no Haiti e terá posição de destaque no novo governo. O general da reserva foi chefe de operações do contingente brasileiro no país, entre 2004 e 2005.
Outro nessa categoria é o próximo ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas. Oficial do Exército de 1992 a 2008, ele trabalhou em Porto Príncipe entre 2005 e 2006, como chefe da seção técnica da Companhia Brasileira de Engenharia de Força de Paz.
EXPERIÊNCIA EM CONFLITOS
Como a passagem de todos eles pelo Haiti poderá contribuir no governo?
Na visão de dois professores de relações internacionais ouvidos pela Folha, os indicados levam para suas novas funções o conhecimento adquirido em áreas como infraestrutura e segurança pública, além da habilidade de mediar conflitos.
Para Rafael Villa, da USP, o general Heleno —que tem forte interlocução com o presidente eleito desde a campanha— atraiu outros profissionais que serviram na missão com o objetivo de explorar a bagagem deles.
"Ele faz parte do núcleo duro e está trazendo aquele grupo com o qual teve uma experiência importante no Haiti, para aproveitar essa experiência em funções de governo", diz. "Na área de infraestrutura, o Brasil desenvolveu uma expertise na Minustah."
O docente, no entanto, vê com ressalvas o papel designado para Santos Cruz, que, na Secretaria de Governo, terá como atribuição cuidar da articulação com o Congresso. "Destoa um pouco do histórico dele. Mas ele teve experiência em missões de paz no Haiti e no Congo e adquiriu bastante capacidade de negociação de conflitos."
Na opinião de Antonio Ramalho, professor da UnB, "a excelência profissional e a grande experiência" explicam a concentração no governo de oficiais que atuaram no Haiti. "São aspectos que já haviam pesado na escolha deles para assumirem as posições de comando na missão de paz", diz.
Ramalho afirma crer que "a vivência internacional contribuirá para o desempenho deles", somando vantagens como terem se habituado a situações de embate e desenvolvido a capacidade "de trabalhar em equipe e de entender os constrangimentos a que os interlocutores estão submetidos".
O ex-ministro Celso Amorim, que foi titular das pastas das Relações Exteriores entre 2003 e 2010, no governo Lula (PT), e da Defesa entre 2011 e 2015, no governo Dilma Rousseff (PT), diz ver também a competência e a disciplina como diferenciais positivos dos militares que atuaram no Haiti.
"Como ministro, eu tive contato com a maioria deles. Todos, de uma maneira ou de outra, se destacaram em suas funções. Os militares, num governo civil, como foi o da Dilma, o do Lula, ocuparam várias funções civis porque são muito eficientes naquilo que fazem. Têm disciplina, executam planos", afirma.
Segundo Amorim, que era o chanceler quando o país assumiu a operação, os militares mandados para a missão "eram sempre parte de uma elite, porque ali o Brasil não podia falhar".
"Santos Cruz, por exemplo, depois foi chamado pela ONU para ser consultor em missões de paz. E ele teve uma atuação muito boa como general. Agora, para relações parlamentares, se ele é bom ou não, não sei julgar", diz o ex-ministro petista sobre a futura tarefa do militar.
A possibilidade de que a ascensão dos ex-comandantes dê fôlego à implementação de políticas mais flexíveis para as forças de segurança no combate à criminalidade é vista com cautela pelos observadores. No Haiti, vigoraram instrumentos jurídicos que davam maior poder aos soldados no cumprimento de mandados e no confronto com civis.
"Acho que pode estar no pensamento desses militares trazer para o Brasil um pouco dessa experiência ou dar uma certa imunidade para oficiais ou soldados que participam desse tipo de operação. Mas a aplicação desse tipo de liberalidade se choca com a visão de direitos humanos. A sociedade reagiria", afirma Ramalho, da UnB.
Amorim vai na mesma linha: "Não sei se haverá alguma interferência [nessa área]. Acho que um militar da infraestrutura não tem a ver com isso".
"Tenho muitas diferenças com o governo eleito, principalmente na política externa, mas, curiosamente, as declarações mais sensatas e equilibradas que ouvi até agora vieram, em geral, dos militares que o compõem", acrescenta o ex-chanceler.
MILITARES QUE FORAM PARA O HAITI TERÃO FUNÇÕES DE DESTAQUE
Ex-comandantes das tropas internacionais da Minustah:
• Augusto Heleno (2004-2005) — Será ministro do GSI (Gabinete de Segurança Institucional)
• Carlos Alberto dos Santos Cruz (2007-2009) — Será ministro da Secretaria de Governo
• Floriano Peixoto Vieira Neto (2009-2010) — Deve ser responsável pelos contratos de publicidade do governo, na Secretaria-Geral da Presidência (não confirmado oficialmente)
• Edson Leal Pujol (2013-2014) — Será comandante do Exército Brasileiro
• Ajax Porto Pinheiro (2015-2017) — Será assessor especial do presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Dias Toffoli
•
Outros ex-chefes que atuaram na missão de paz:
• Fernando Azevedo e Silva (2004-2005) — Chefe de operações do contingente brasileiro no Haiti, será ministro da Defesa
• Tarcísio Gomes de Freitas (2005-2006) — Chefe da seção técnica da Companhia Brasileira de Engenharia de Força de Paz, será ministro da Infraestrutura
Nenhum comentário:
Postar um comentário