- O Globo
Foram tempos sombrios para a democracia. As oposições moderadas tiveram que lutar no alto de uma corda bamba
Não sei se será possível esquecer aquela sexta-feira 13, quando, há 50 anos, foi decretado o Ato Institucional nº 5. Em nove páginas, subscritas por 17 homens, nove militares e oito civis, meia dúzia de considerandos, 12 artigos, dez parágrafos e oito itens selaram — e aprisionaram — o destino da sociedade brasileira.
A ditadura começara há pouco mais de quatro anos, em abril de 1964, instaurada por um golpe civil-militar. Logo se evidenciaram as diferenças entre os vencedores. As lideranças políticas principais desejavam um golpe cirúrgico, violento, mas rápido. Capaz de expulsar da área as forças de esquerda, que assustavam com seus projetos de reformas de base. Depois, afastada a “canalha”, o calendário eleitoral seria retomado, com a realização das eleições previstas para o ano seguinte. Assim, no entanto, não o entenderam as Forças Armadas. Aglutinadas em torno de um projeto de modernização autoritária, resolveram manter sua preeminência, rompendo com a tradição de sustentar o poder, porém, sem exercer diretamente o governo. O caráter civil-militar do regime deveria ser preservado sob comando das corporações militares. Na boca do povo, os poderes da República agora eram outros: Exército, Marinha e Aeronáutica. Ou seja, entre 1964 e 1968, a frente heterogênea que articulara e apoiara o golpe, inclusive com amplas bases sociais, decantara-se. Nas fendas abertas, apareceram movimentos alternativos: alguns queriam reverter ao passado anterior ao golpe. Outros, visavam a futuros revolucionários.
Entretanto, parafraseando o poeta, havia uma ditadura no meio do caminho. O primeiro Ato Institucional, em abril de 1964, evidenciara o centro real de poder e seu caráter ditatorial. O segundo, em outubro de 1965, reiterara a violência, dissolvendo os partidos políticos, e anunciara sem meias palavras que a “revolução foi, é e continuará”. O terceiro, em fevereiro de 1966, estabeleceria as eleições indiretas. Depois, convocada pelo quarto Ato Institucional, viria um arremedo de Constituinte, trabalhando a toque de caixa e de clarins para armar um arcabouço jurídico autoritário.
Não bastou.
Os questionamentos multiplicavam-se, inclusive na própria base política do governo. A cacofonia incomodava. Estudantes nas ruas, artistas cutucando, políticos recalcitrantes. As maiorias permaneciam silenciosas. Todavia, já não havia marchas de apoio ao governo. Seria possível empreender as políticas da modernização autoritária naquele ambiente?
O governo disse não e deu um golpe dentro do golpe — o quinto ato foi arrasador, pela abrangência e pelo fato — assustador — de que não tinha prazo para terminar, como os anteriores.
Atribuição de poderes extraordinários ao ditador, dissolução dos parlamentos, suspensão de direitos e de garantias, todos e qualquer um sujeitos a cassações, demissões e arbitrariedades de todo tipo que viriam numa enxurrada. Sucederam-se em cerca de dez meses nada menos do que 12 atos institucionais, mais de um por mês. Cinco, entre fevereiro e agosto de 1969. Nesse mês, surpreendidos pela doença do general-presidente,os ministros militares deram mais um golpe: com o Ato Institucional n° 12, converteram-se em Junta Militar, derrubaram o vice-presidente e assumiram o poder. Até outubro, ainda viriam mais cinco. Em dois momentos, 5 de setembro e 16 de outubro, dois atos institucionais num mesmo dia. Até que se entronizasse um novo presidente-ditador “eleito” por um congresso encolhido e amedrontado, convocado por outro Ato Institucional, o de n° 16, de 14 de outubro de 1969.
Foram tempos sombrios para a democracia. As oposições moderadas tiveram que lutar no alto de uma corda bamba permanente. As radicais foram trucidadas pela adoção da tortura como política de Estado.
Dez longos anos se passaram para que fosse revogada a vigência destes atos. Outros tantos para que fosse aprovada uma nova Constituição. Mas suas profundas marcas, como as dos grilhões dos tempos escravistas, permanecerão por gerações.
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