O Globo – Segundo Caderno, Domingo, 03 de agosto de 2014.
Vou falar dos black blocs. Não para atacá-los ou defendê-los, apesar de minha posição contra a violência.
Como hoje é domingo, pensei em outro caminho, chegar um pouco mais longe.
Os revolucionários do século passado eram chamados de nostálgicos do absoluto pelo escritor George Steiner.
Segundo ele, a sede do absoluto que marcava as religiões deslocou-se para a política. O céu foi substituído pelos amanhãs que cantam, pelo fim da exploração do homem pelo homem, por todas as utopias que os intelectuais pregavam.
Esse deslocamento da religião para a política foi observado pelos próprios marxistas, como Antonio Gramsci. O filósofo italiano questionava a frase constante entre os comunistas: perdemos uma batalha mas venceremos a guerra.
Gramsci chegou a arranhar esse tema ao ver um contrabando religioso na análise dos comunistas: como acreditar que chegaremos à vitória através de uma sucessão de derrotas? Esse tema não seria a transposição da ideia de alcançar os céus através do vale de lágrimas? Mas Gramsci não negava os céus, apenas questionava o roteiro.
Uma visão mais ampla do momento que alimentou utopias encontra-se em Isaiah Berlin, no livro “O sentido da realidade”. Ele aponta alguns marcos decisivos na história do pensamento. Um deles foi o surgimento do romantismo alemão, no fim do século XVIII. A partir dali, a essência do homem transferia-se da razão para outra fonte: a vontade. Foi um movimento que ofuscou o modelo do erudito, do homem que alcança a felicidade por meio da compreensão. Abriu-se o espaço para o herói trágico, que busca realizar a si próprio a qualquer custo, contra qualquer adversidade, não importam as consequências.
Pistas que os escritores do século passado nos deixaram já não iluminam todo o caminho. Houve grandes deslocamentos no princípio do século XXI. O terrorismo, por exemplo, mudou de caráter. Os terroristas do início do século XX adiaram o atentado à carruagem do arquiduque Franz Ferdinand porque havia crianças no veículo. O atentado contras as Torres Gêmeas, em Nova York, entre outros, mostrou que não se hesita mais diante da morte de crianças, sob o argumento de que o inimigo também bombardeia crianças.
A linha divisória entre movimentos de contestação é mais difícil de situar do que no terrorismo, que assumiu contornos de fanatismo religioso.
O traço mais nítido, hoje, é ausência de uma estratégia, de um lugar utópico para onde conduzir o mundo. Não há análises sociais, não há táticas, no sentido da escolha de setores a seduzir, neutralizar ou combater. Não há documentos nem um espaço de discussão conhecido.
Dizem alguns críticos de cinema que isto é a marca do pós-moderno. Alguns filmes de agora já não se preocupam com enredos e tramas, mas sim como uma sequência de ações. São apenas um amontoado de ações e ponto final.
Os black blocs soam para mim como um movimento pós-moderno. São apenas ações, não propõem um futuro, nem se dão ao luxo de explicar como e com quem chegarão a ele.
E as bandeiras vermelhas que tremulam ao seu lado, os deputados da esquerda da esquerda tradicional que pedem sua libertação? Não significam que, no fundo, são movidos pelas velhas utopias?
É possível estar perdido na mesma floresta por razões diferentes. A esquerda clássica apoia aquilo que espera, de alguma forma, controlar.
No estalinismo, a paixão pelo controle a levou à destruição do outro, como na Guerra Civil Espanhola, com a morte de tantos anarquistas.
Cem anos depois da I Guerra Mundial, vivemos em crise. No debate “Mutações: Fontes passionais da violência”, o amigo Adauto Novaes cita Paul Valéry, para quem o espírito seria aniquilado pela tecnologia. Era uma reflexão sobre a I Guerra.
Modestamente, acho que não foi apenas o espírito que sucumbiu à tecnologia, mas a cultura à diversão, a palavra à imagem, o enredo à ação irrefletida, as evidências às versões.
Por aqui, a paisagem depois da batalha, entre outras consequências, revela uma cena política desoladora, povoada por picaretas de gravata e mascarados incendiários.
Ainda bem que hoje é domingo e os domingos suavizam o peso do tempo sobre nossos ombros.
O poeta fabrica um elefante com pedaços de móveis, algodão, paina e doçura, para vê-lo arrebentado no final do dia. Podemos repetir como Drummond: amanhã, recomeçamos.
PS — Gosto de Caetano Veloso e mais do que isso: sou muito grato a ele. E não só por sua ajuda em campanhas difíceis, mas pelo fato de existir e compor maravilhosas canções que, entre outras coisas, me ajudaram a atravessar tantos anos de exílio. É uma honra substitui-lo e, ao mesmo tempo, uma perda: não posso mais ler sua coluna semanal.
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