• Reeleição atrasa surgimento de novos líderes
- Valor Econômico
Duas grandes emendas constitucionais da década de 1990 mudaram nossa política: a coincidência da eleição do presidente com a do Congresso, e a reeleição para os cargos executivos. Falei da coincidência de mandatos na última coluna; hoje trato da reeleição que, por sinal, os candidatos de oposição querem abolir. Opus-me a ela quando foi proposta, em 1997. A primeira razão é que ela ia contra uma forte tradição latino-americana, que a proibia a fim de limitar o personalismo e o caudilhismo. A segunda era que uma mudança tão grande em nossa cultura política, a meu ver, deveria exigir que o povo fosse ouvido, por exemplo, em plebiscito. E em terceiro lugar, considerei incorreto beneficiar quem já estava no cargo de presidente ou governador. Mas hoje ela já foi testada em quatro eleições consecutivas e está indo para a quinta. Dá para discutir se é boa ou má.
Começo pelo que me parece ser seu principal defeito (adiante, direi de suas qualidades). Não, não é que quem está no poder o manipule para se perpetuar. Tivemos exemplos, em São Paulo-Estado, de Quércia fazendo de tudo para eleger como sucessor um desconhecido, e em São Paulo-Cidade, de Maluf fazendo o mesmo com outra pessoa que poucos sabiam quem era. Então, não me parece haver maiores diferenças entre usar a máquina para se reeleger - ou para eleger uma criatura desconhecida. O problema é usar a máquina, não é para quem ela é usada.
O maior defeito da reeleição é: ela cria um abismo dentro do partido. Quem se reelege deixa de ser um primeiro entre iguais. Torna-se um primeiro, muito acima dos outros. Imaginemos que a reeleição não tivesse sido aprovada, em 1997. No ano seguinte, o PSDB teria eleito o sucessor de Fernando Henrique Cardoso, o qual teria sido ou José Serra ou Tasso Jereissati. FHC seria hoje o primeiro dos presidentes tucanos, isto é, um entre dois, talvez três, não a figura mítica do único presidente que seu partido deu, até hoje, ao Brasil. E em 2006, na sucessão de Lula, o PT disporia de poucos candidatos, depois da razia do mensalão - mas digamos que Tarso Genro ou outro nome se elegesse. Em quatro anos, Lula não teria construído a mística em torno de si que o fez deixar o cargo não só como o presidente mais bem avaliado da história do Brasil democrático, mas como um líder insuperável, pelo menos no seu partido. Também no PT, a distância entre um líder e outro seria menor do que hoje é.
Nos Estados, a coisa varia. Em São Paulo, há anos que se alternam no governo Serra e Alckmin; mas é quase certo que, sem reeleição, o PSDB tivesse guindado mais um outro nome tucano ao Palácio dos Bandeirantes. Em Minas Gerais, Aécio Neves não teria cumprido dois mandatos sucessivos, nem Eduardo Campos em Pernambuco, nem Sergio Cabral no Rio. Em suma, teríamos maior diversidade de líderes. Ora, esses dirigentes políticos que se destacam muito acabam controlando a máquina partidária - nacional, estadual ou local - e dificultando mudanças de linha dentro do próprio partido; e além disso passam a ter um apelo popular bem maior que seus colegas. (Dos nomes mencionados, parece-me que FHC foi o único a não controlar a máquina partidária depois de deixar o cargo, talvez apenas por não o desejar).
Renova-se menos a liderança. Ocorre uma escassez de líderes. Isso é preocupante. Voltando a São Paulo, hoje é difícil imaginar quem sucederá a Alckmin, no Estado - falo de 2018, supondo sua reeleição este ano. Alguém precisaria crescer e se destacar, mas quem? Como? Terá que se tornar conhecido em dois ou três anos. A rigor, são muitas as opções, o que quer dizer: nenhuma até agora despontou. Talvez o futuro líder seja mais manufaturado do que resultado de méritos autênticos, de uma efetiva preferência das bases partidárias ou de uma mensagem que tenha para a sociedade. Da mesma forma, para 2018 - o ano que hoje me parece ser o da próxima eleição realmente importante para a Presidência - não se antevê nenhum nome além dos quatro hoje em cena (incluo Marina Silva, além de Dilma Rousseff, Aécio e Eduardo).
Mas a reeleição tem seus aspectos positivos. Antes de mais nada, tira-nos da hipocrisia que é acreditar que a máquina não esteja sendo usada quando se cria um candidato a partir do nada. Claro que é utilizada, sim. E a razão principal: a reeleição dá continuidade a uma ação de governo, se estiver sendo bem sucedida, mas a interrompe, se tiver perdido o apoio popular, que é o grande metro numa democracia. Num primeiro mandato se consome muito tempo acertando-se os ponteiros, preenchendo-se cargos, definindo-se políticas. Se o governante continua mais quatro anos, o segundo mandato é - ou deve ser - mais tranquilo. Em outras palavras, o segundo mandato pode até cansar todo mundo, governante eleito, cargos de confiança e povo, mas corre mais solto.
O segundo mandato também é hora de saber se a proposta se completou e/ou se esgotou, ou continua valendo. No Brasil, o segundo mandato de FHC foi mais turbulento e provavelmente menos bom do que o primeiro, enquanto com Lula foi o contrário. Certamente isso contribuiu para FHC não fazer seu sucessor, ao passo que Lula o fez. Mas isso não quer dizer que os últimos quatro anos do presidente tucano tenham sido maus. Significa provavelmente que ele completou o que tinha a fazer. Teria sido tão bom sem ele? Penso que não. Do ponto de vista do interessado - nós, o povo - ter dois presidentes sucessivos dessa qualidade foi um luxo. Sem a reeleição, esses 16 anos teriam sido menos bons.
O que, afinal de contas, vale mais, as vantagens ou os problemas da reeleição?
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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