- O Estado de S. Paulo
Eis que estamos numa situação paradoxal, em que a radicalização dos espíritos e a virulência da linguagem não decorrem das coisas efetivas, que por si sós poderiam ser favoráveis a uma ampla convergência em torno de reformas – decorrem, antes, de identidades deliberadamente construídas e da luta sem quartel por recursos e posições de poder.
Quase três décadas depois da vigência de um regime de liberdades e 12 anos após a ascensão ao poder central de um partido como o PT, movemo-nos, coletivamente, numa esfera pública que está longe de acolher, estimular e fortalecer o amor à diferença e o hábito de pensar a complexidade, promovendo o indivíduo democrático e reinventando a ação coletiva.
Querendo ou não, homens e mulheres “progressistas”, como se dizia quando o progresso era vivido como mito acima de discussão e como exclusiva “propriedade” da esquerda, somos agora forçados a fazer o inventário do singular período iniciado em 2003. E isso num momento de exacerbação das divergências, em que parecem faltar ou são relativamente frágeis as vozes que pregam a reconciliação e a saída pactuada das crises.
Atores, individuais e coletivos, experimentam e avaliam as situações críticas num determinado contexto de ideias e valores. Se neste contexto predominam visões e modos de pensar apocalípticos, isso tende a deformar a realidade das coisas, gerando conflitos que se autorreferem e se retroalimentam de modo vicioso. Não importa muito a conexão torta das ideias com o mundo real: a capacidade delas de incidir negativamente sobre a convivência civil, dilacerando-a em grau maior ou menor, passa por cima da tortuosidade, tal é a força de fanatismos “teóricos” ou políticos.
Uma leitura persuasiva da saída do regime autoritário, capaz de reunir o consenso da maioria das forças políticas e culturais, há de considerar a absoluta centralidade da Constituição de 1988, verdadeiro marco de ruptura com a ordem autocrática e de refundação do País. Esta Constituição foi o ponto de convergência entre liberal-democratas, social-democratas e comunistas – entre estes últimos, os que diagnosticaram de modo tempestivo o caráter complexo e “ocidental” da formação social brasileira, acentuado inclusive nos 20 anos de regime ditatorial.
Segundo a letra e o espírito da nova Carta, deveríamos sair – para sempre! – do “Extremo Ocidente” em que a democracia era a tal plantinha tenra, de sobrevivência sempre ameaçada, ou um simples mal-entendido, para mencionar imagens correntes em nosso imaginário. Da parte de uma esquerda madura, consciente de suas responsabilidades, o diagnóstico “ocidental”, ao contrário do que supõe uma extrema direita ainda prisioneira de seus fantasmas, não implicava, e não implica, a mera recusa ao jogo do “tudo ou nada” nas situações de crise ou a solerte opção por uma guerra silenciosa que corroeria por dentro tradições e valores, até a hora final da “implantação do comunismo”.
No quadro de um pacto aproximadamente social-democrata, tal como o assinado em 1988, forças e personalidades da esquerda democrática reconhecem explicitamente a democracia política como conjunto de procedimentos e como valor em si. Os mecanismos de mudança social, generosamente contemplados no texto, supõem a adesão sem ambiguidade às regras do Estado de Direito: regras que o conjunto da cidadania, reunido em Assembleia Constituinte, livremente se deu após os anos sombrios de uma “legalidade” que não disfarçava o arbítrio.
Sintomático que personalidades de extração econômica liberal (legítima!), como o então senador Roberto Campos, se tenham dissociado daquele pacto, denunciando-o desde logo como floração anacrônica do nacional-desenvolvimentismo. Sintomático, ainda, que a nova esquerda petista, que então se preparava para voos mais altos, tenha votado contrariamente ao texto final, segundo a gramática do corporativismo sindical radicalizado que constitui desde sempre o nervo do discurso desta parte política e torna pelo menos problemática a nostalgia que alguns nutrem pelo “PT original”.
E mais, tratava-se de um radicalismo (auto)ilusório, que não seria exagerado definir como divorciado das tarefas de consolidação da democracia que a partir daí se apresentariam: novo tipo de crescimento, redistribuição de renda, regulação social do mercado, prestação de serviços públicos universais, a exemplo do SUS. Tarefas, entre outras, típicas de uma esquerda reformista e ocidental, comprometida com a construção de uma comunidade assentada na riqueza e na pluralidade de estilos e opções de vida de cada indivíduo. E tendo como pilar o regime democrático sans phrase.
Desenhou-se assim, precocemente, a fratura entre as duas possibilidades de social-democracia presentes em 1988, até chegar ao limite extremo das divergências agora gritantemente expostas nas ruas do País. Na década de 1990, os governos tucanos promoveram reformas num mundo que celebrava em triunfo as virtudes do mercado. Por vezes necessárias, quase sempre pouco populares, tais reformas invariavelmente pareciam cortar ou limitar direitos. Um prato feito para a artilharia pesada do pseudorradicalismo petista, ainda por cima crescentemente solidário com experiências, como a venezuelana, que mais uma vez desonram o conceito de socialismo, associando-o aos caudilhos endêmicos na parte “oriental” da política latino-americana.
Explicitado de outra forma, eis o paradoxo diante de nós: esta esquerda chegou à exaustão e daqui por diante só incendiará corações valentes e mentes sectárias. No entanto, nenhum país moderno pode permitir-se viver sem uma esquerda atualizada, capaz de contribuir para a elaboração de caminhos razoáveis para todos. Será preciso reconstruí-la do começo.
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Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
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