Por Eduardo Graça | Valor Econômico / Eu &Fim de Semana
"É preciso se preparar agora para a possibilidade de um colapso tão perigoso quanto o ocorrido nos anos 1920, 1930 e 1940", diz Snyder
NOVA YORK - Nos últimos 25 anos o historiador Timothy Snyder dedicou-se a aprender línguas e a ler documentos nas fontes originais para explicar algumas das maiores atrocidades políticas do século XX em áreas de esfera direta de influência da Alemanha nazista e da Rússia soviética. A eleição de Donald Trump a presidente dos EUA o fez pensar que os dois lados do Atlântico Norte não estavam tão distantes assim quando se tratava de riscos à democracia liberal e suas instituições.
Em "Sobre a Tirania" (Companhia das Letras, trad. Donaldson M. Garschagen, 168 págs., R$ 24,90), um dos acadêmicos de maior destaque da Universidade de Yale trata da deterioração do sistema democrático e estabelece uma comparação entre o cenário político-econômico-social da primeira metade do século XX, que viu a ascensão do fascismo, do nazismo e do comunismo, com a chegada ao poder, em âmbito local e nacional, de figuras autocráticas pela força do voto.
O livro de Snyder, de 47 anos, inspirou uma exposição, em cartaz no Espaço Cultural Conjunto Nacional, na avenida Paulista de São Paulo. São cartazes baseados em cada um dos capítulos da obra assinados por Kiko Farkas, Hélio de Almeida e Thiago Lacaz, entre outros artistas.
Valor: O livro é uma reação à eleição de Trump?
Timothy Snyder: Sim, mas não só. É também um retorno meu aos temas americanos. Estive debruçado por anos nos momentos mais sombrios da Europa. Alguns de meus professores viveram sob o nazismo e/ou o comunismo. E um punhado de alunos viveram o triste e paulatino caminho de retorno ao totalitarismo, especialmente na Europa Oriental dos últimos 15 anos. Decidi aplicar minha experiência oferecendo ideias para se prevenir um avanço totalitário do lado de cá do Atlântico.
Valor: Historiadores apontam um paralelo dos dias de hoje com o período do entre-guerras, com o aumento do sentimento nacionalista e o crescimento de partidos xenófobos. Eles estão certos?
Snyder: É impossível não enxergar as conexões entre os dois tempos históricos. Mas é importante lembrar que não estamos lidando com efeitos de uma inédita globalização da era contemporânea. Uma outra globalização ocorreu anteriormente, e isso é uma vantagem. Podemos estudar suas contradições para responder melhor a seus desafios, uma das premissas do livro. A primeira globalização, que ocorreu entre 1870 e 1940, ao menos no mundo ocidental, partindo do ponto de vista europeu, foi marcada pelo aumento da atividade comercial planetária e um inegável otimismo político-social. Mas foi uma experiência que fracassou, com a Primeira Guerra, a Grande Depressão e a Segunda Guerra.
Valor: Quais são as semelhanças?
Snyder: A segunda globalização, iniciada nos anos 1970, também teve, em sua ascensão, momentos de claro otimismo político-social, com as ideias do "fim da história", da ascensão do modelo de democracia liberal na Europa Oriental e na América Latina, na disseminação da ideia de que o capitalismo anda necessariamente de braços dados com a democracia. Nada tão diferente assim do que se pensou cem anos atrás. É preciso se preparar agora para a possibilidade de um colapso tão perigoso quanto o ocorrido nos anos 1920, 1930 e 1940.
Valor: Quais são os problemas da atual globalização que alimentam a narrativa de seus críticos mais ferozes?
Snyder: A maior delas, a desigualdade social, foi explicitada na crise financeira global [de 2008]. A possibilidade de corporações e indivíduos manterem capital em paraísos fiscais ou com abono de pagamento de impostos é a base da criação de uma casta de bilionários que dificultam a distribuição de riqueza pelos governos, fundamental para a estabilidade política. Mas outro problema é a falta de ideias palpáveis para novos modelos. Diferentemente do século passado, não há inevitabilidade de debacle político-social no desmoronar do modelo de globalização estabelecido desde os anos 1970. Há alternativas, mas não vejo advogados do novo possível, especialmente entre os mais jovens.
Valor: Nos EUA, mas também no Brasil pós-redemocratização, as instituições políticas são vistas como garantias a tiques tirânicos de governantes ou grupos de interesse. O senhor acredita na capacidade dos Três Poderes?
Snyder: Eles não são infalíveis, nem nos EUA nem no Brasil. Democracias fracassam o tempo todo. Começo meu livro pelos pais fundadores dos EUA por falarem sempre do quão frágil é este poder que emana do povo. Para eles, a ideia é oposta: a natureza humana faz com que tenhamos de estar sempre atentos. As instituições são comandadas por essas pessoas, com seus interesses, sujeitas a pressões que vêm de cima, dos ricos e dos governos, e de baixo, da opinião pública, e funcionam, regra geral, de forma bem menos justa e exata do que as idealizamos.
Valor: Não funcionam como deveriam?
Snyder: Quando celebramos as instituições democráticas bicentenárias dos EUA, esquecemos convenientemente de que as mulheres só foram votar no século passado e que os afro-americanos do Sul somente o fizeram nos últimos 50 anos. Essas instituições não foram capazes de prevenir a onda antidemocrática das últimas três décadas. Penso na supressão de direito de voto de minorias, no redesenho radical dos distritos eleitorais para beneficiar grupos específicos. O argumento da força das instituições é uma balela.
Valor: O senhor fala da importância de resistir. Como vê a resistência a medidas como o banimento de certos indivíduos de entrar no país por causa da origem de seus passaportes?
Snyder: No Brasil como aqui, o avanço do discurso totalitário se dá pelo voto, democraticamente. Nos EUA há o agravante de o sistema não ser completamente democrático: Trump venceu, embora não tivesse recebido a maioria dos votos. Mesmo assim, milhares de cidadãos americanos escolheram para presidente um senhor que se vê acima da lei e está interessado em modificar o sistema democrático. Não estou aqui tratando de valores de esquerda ou direita, mas do cuidado redobrado que o eleitor, mundo afora, precisa ter neste momento de reação radical à segunda globalização, ao eleger seus líderes. Há o risco de se escolher fãs da autocracia, pessoas como Trump, que se sentem mais à vontade na companhia de ditadores do que de seus concidadãos. O modelo Trump é fundado na cleptocracia, no nepotismo e em uma política externa alinhada com outros autocratas.
Valor: O que a vitória de Trump diz sobre o lugar da ética na sociedade americana?
Snyder: Trump só venceu porque chegamos ao ponto em que, na política, todos passaram a ser vistos como suspeitos. Os fatos não são mais importantes para a maioria da sociedade envolta na realidade do fantástico, no dia a dia do entretenimento. Em sociedades assim, quem tem o melhor controle do palco tende a alcançar o poder. Não percebemos o perigo. Um dos primeiros degraus na escada do totalitarismo é o descrédito dos fatos, o descompromisso com a verdade, a exclusão dos que pensam de modo diferente de quem está no governo.
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