- Folha de S. Paulo
Especulação imobiliária informal e ação do crime ajudam a explicar tragédias
“Coloquei dois caminhões carregados com 32 toneladas na garagem para ver se o prédio aguentava, e aguentou. Por si só o prédio não cai. Só se for por um castigo divino”
O relato, de um pedreiro que construiu um prédio de cinco andares em um assentamento precário em Perus (zona norte de SP), registrado em uma reportagem da Veja SP (5/4/2019), explica parcialmente a tragédiaque ocorreu ontem na comunidade de Muzema, na zona oeste do Rio de Janeiro, onde dois prédios caíram matando duas pessoas e ferindo outras tantas.
A ação do crime organizado, como a milícia, que é hoje um investidor no mercado imobiliário ilegal das “comunidades”, explica o outro lado da questão.
A tragédia explicita, de forma dramática, a transformação acelerada das favelas das grandes metrópoles em um território de especulação imobiliária informal, aberto para um selvagem processo de produção de moradias, que objetiva apenas a obtenção de um ganho financeiro, distante do “estado de necessidade”, que justifica a tolerância em relação à favela.
O prédio construído em Perus, sem responsável técnico, sem projeto arquitetônico, sem cálculo estrutural e sem registro imobiliário, tem cinco apartamentos de 50 a 70 metros quadrados que são alugados por R$ 500 a R$ 700. Não se exige comprovação de renda nem fiador. Se não pagar o aluguel, o inquilino é ameaçado e retirado à força.
A Veja SP mostra inúmeros exemplos de prédios em favelas paulistanas, onde desabamentos semelhantes ao que ocorreu em Muzema podem ser aguardados.
Em muitos casos, os empreendedores não têm vínculos com o crime, mas a precariedade e a ausência de segurança construtiva é uma regra nesse tipo de “verticalização”, realiza sem fiscalização das prefeituras e dos conselhos de engenharia e arquitetura (Crea e CAU).
As favelas não são mais aquelas dos anos 1970, quando se iniciou o movimento por sua regularização, com o lema “terra para quem nela mora”. Inicialmente, famílias pobres, sem alternativas de habitação, ocupavam terrenos ociosos para construir barracos de madeira.
A medida que o assentamento se consolidava, com alguma infraestrutura, os barracos eram substituídos por casas de alvenaria, autoconstruídas de forma precária e, aos poucos, cresciam para atender a própria família ou para abrigar outros parentes que ficavam desabrigados.
O processo, amplamente conhecido, nas últimas décadas começou a ser substituído pela exploração imobiliária do “imóvel”. Como não existia mais espaço para construir no chão, lajes começaram a ser vendidas para terceiros edificarem um alojamento. Logo surgiram os “empreendedores” informais, que passam a ser exploradores de famílias pobres.
O mercado formal não se interessa por essas áreas, pois a irregularidade dos terrenos não permite a aprovação de projetos nem o registro da incorporação. Já para o crime organizado e para investidores que não conseguem justificar a origem de seu dinheiro, o território é altamente interessante e lucrativo.
Como a terra não é regularizada, os terrenos são baratos ou mesmo obtidos através de ações de intimidação realizados com violência. Mulheres que moram sozinhas com filhos pequenos são vítimas dessa intimidação e da apropriação violenta da posse de terrenos.
Programas paliativos das prefeituras estimulam ainda mais o mercado informal de aluguel. A prefeitura de São Paulo paga hoje o auxílio-aluguel de R$ 400 para mais de 30 mil famílias despejadas, que teriam direito a uma moradia definitiva que ela não consegue entregar. O valor só é suficiente para alugar uma moradia irregular.
O desabamento dos prédios no Rio de Janeiro, uma a mais nas cotidianas tragédias brasileiras, coloca a luz do dia a necessidade do poder público não só promover programas habitacionais para a baixa renda, como retomar parcelas significativas do território urbano que está tomado pelo crime organizado e por uma exploração imobiliária selvagem e ilegal.
Não será pela ação violenta das polícias que isso ocorrerá, mas através de um amplo programa social, capaz de atender a população mais vulnerável das metrópoles. A questão é se isso será possível em um momento em que a tese de Estado mínimo prevalece no país.
*Ex-secretário de Cultura de São Paulo (2015-2016, gestão Haddad), professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e professor visitante Fulbright na Universidade da Califórnia
Um comentário:
Acrescento a este panorama, a temeridade da aprovação do Projeto de Lei de Anistia que tramita na Câmara Municipal de São Paulo, desde 18 de março. Esta lei, que tem como base um discurso de trazer receita aos cofres públicos, e de eliminar a irregularidade dos imóveis na cidade, traz inúmeros questionamentos, uma vez que dentre as modalidades se tem a regularização automática de imóveis de até 150 m2, a regularização declaratória, além da tramitação digital dos documentos.
Se em alguns casos estiver apoiada na Lei 13.465/2017, a a nova lei de anistia suscitará a regularização de imoveis com condições precárias de salubridade, instaladas em lotes vulneráveis.
Há que se questionar e verificar quais os limites desta anistia que se pretende em São Paulo.
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