Durante o lockdown da China, no início deste ano, fotografias da Nasa mostravam a purificação do ar nas grandes cidades chinesas poupadas da emissão de poluentes, evidenciando a relação direta entre o nível de atividade econômica e a degradação do meio ambiente. Apesar da bela e inspiradora foto, o mundo torcia pela recuperação da economia chinesa, pelos negócios que gera e pelos milhões de empregos que dependem do crescimento econômico da China. Dados os atuais níveis de produção e consumo, a estrutura produtiva e o padrão tecnológico dominante, o aumento do PIB provoca uma elevação proporcional da pressão sobre o meio ambiente. A desejada recuperação da economia chinesa vai continuar degradando a natureza e emitindo gases de efeito estufa, embora o governo chinês esteja fazendo um esforço sério de recuperação e moderação das pressões antrópicas no país.
Os padrões produtivos e tecnológicos não
são constantes e estão mesmo atravessando, neste século, mudanças profundas
que, no geral, tendem a reduzir o impacto ambiental, ou pelo menos, conter a
marcha desesperada para o abismo. Ainda muito insuficiente, é verdade, mas está
em curso uma transição energética para novas fontes renováveis, inclusive na
China, emergindo novas alternativas de uma economia verde e atividades de baixo
carbono, acelerando inovações tecnológicas que amortecem as pressões antrópicas,
e aumentando a participação na estrutura produtiva do setor Serviços de baixo
impacto ambiental. Tudo isso reflete o aumento da consciência ambiental no
mundo e o debate técnico e político alimentado por diferentes proposições e
negociações.
Desde a década de 90, quando as Nações
Unidas lançaram a proposta de desenvolvimento sustentável e, mais recentemente,
com as pesquisas e o debate em torno das mudanças climáticas, vem crescendo a
preocupação mundial com a degradação do meio ambiente e, ao mesmo tempo, com a
pobreza e a exclusão social no planeta[1].
O conceito de desenvolvimento sustentável parte da compreensão de que o modelo
econômico atual está destruindo a natureza e de que são necessárias
reorientações profundas na produção, no consumo, na tecnologia. A proposta se
sustenta na correlação e busca do equilíbrio dos pilares equidade social, conservação ambiental e crescimento econômico, mesmo
sabendo que existem tensões entre eles e que, por último, dependem de escolhas
políticas.
Excetuando o troglodita que preside a maior
economia do mundo, que tem uma das mais altas emissões de gases de efeito
estufa, o mundo está tomando consciência da necessidade de reestruturação da
economia e geração de inovações tecnológicas que permitam evitar uma
catástrofe. O Acordo de Paris, com compromissos de quase todos os países do
mundo com metas de redução das emissões, não é modesto, embora ainda apenas
parcialmente efetivado. O cumprimento das metas de redução da emissão dos gases
de efeito estufa deve levar mais à redefinição da estrutura produtiva e
inovações tecnológicas, na direção de uma economia verde, que, propriamente, à
redução do PIB dos países de mais alta renda. Na União Europeia, vanguarda
mundial por uma economia limpa, mostra resultados excepcionais: entre 1990 e
2018, o PIB europeu cresceu 61%, enquanto as suas emissões de gases de efeito
estufa diminuíram em 23%.
O problema é político porque, em última
instância, as boas propostas, inclusive a ideia de desenvolvimento sustentável,
dependem da sua cristalização em decisões que se incorporam nas ações de
Estado. O mesmo cidadão que defende o meio ambiente não aceita mudar seu estilo
de vida, diferentes grupos de interesse não aceitam mudar os padrões de
produção e de consumo, impedindo decisões políticas transformadoras.
Recentemente, tem surgido na literatura um
outro conceito – decrescimento – pretendendo superar a proposta de
desenvolvimento sustentável, que destaca a impossibilidade de crescimento da
economia diante dos limites da natureza. De acordo com Elimar Nascimento,
decrescimento “consiste em nos libertarmos da ideologia do crescimento
contínuo, que funda a irracionalidade da degradação ambiental promovida pelo
modelo econômico vigente” [2].
Como está explícito no conceito (ou slogan?), trata-se de promover um
decrescimento do PIB-Produto Interno Bruto mundial, já que o “modelo econômico
vigente” é irracional e degrada o meio ambiente. A ideia de desenvolvimento
sustentável do decrescimento, ao contrário, não rejeita, em princípio, o
crescimento econômico, definindo, contudo, que este deve ser condicionado ao
propósito maior de equidade social e conservação do meio ambiente. Neste
sentido, aponta para uma mudança do “modelo vigente” e não para um
decrescimento da economia que caberia no modelo que parece inabalável. O
reducionismo do decrescimento parece dizer: “reduzam o crescimento que o
planeta aguenta este modelo predatório”.
Rigorosamente, não existe um determinismo
nem uma correlação rígida entre crescimento econômico e degradação ambiental. A
segunda lei da termodinâmica que define o processo de entropia (dissipação de
energia e desorganização da matéria), citada por Elimar, pode ser compensada em
sistemas complexos e não lineares, como o planeta e a biosfera, pelo que Edgard
Morin chamou de “tendência para a organização, para a complexidade crescente,
isto é, para a neguentropia”[3].
Ou, como diz Capra, “o universo vivo evolui da desordem para a ordem, em
direção a estados de complexidade crescentes”[4].
Claro que existem limites, mas nada que se possa considerar como um dado
definitivo, atemporal e irredutível, como define a lei da termodinâmica.
Entendendo o planeta como um ser vivo e
dinâmico, os “limites físicos” dependem de múltiplos fatores econômicos,
sociais, tecnológicos e políticos. Os limites do crescimento analisados pelo
Clube de Roma no final dos anos 60 (The
Limits to growth) eram bem diferentes dos atuais limites físicos da
natureza, mais amplos, em alguns aspectos, e até mais estreitos em outros,
considerando inclusive o que já foi degradado. Nada disso
significa que a natureza aguenta e se recupera de qualquer pressão antrópica.
Significa que o planejamento do desenvolvimento sustentável tem que compreender
o comportamento dinâmico da natureza e regular a economia, estimular a inovação
e organizar a sociedade para a conservação do meio ambiente, sem a qual, a
própria capacidade da economia entra em colapso.
A China tirou 800 milhões da pobreza por
conta de um acelerado crescimento econômico às custas de forte degradação
ambiental. O resultado social foi espetacular, mas o custo excessivamente elevado,
comprometendo a qualidade de vida dos chineses e mesmo a capacidade de
permanência da dinâmica econômica. A escolha política é questionável, mas não
se pode ignorar que o resultado foi possível apenas por conta do crescimento da
economia e, portanto, elevação da renda. Claro que nos países de alta renda não
existe “necessidade” de crescimento da renda para assegurar qualidade de vida e
mesmo equidade social. E, na verdade, a maioria desses países já tem taxas de
crescimento muito baixas por razões econômicas e demográficas. Entretanto, para
tirar dois bilhões de excluídos da pobreza no mundo com os atuais padrões de
produção, matriz energética, tecnologia dominante e nível de consumo será
previsível um dramático impacto de degradação da natureza. E como é eticamente
inaceitável que o mundo continue convivendo com tamanha exclusão, é necessário
perseguir um novo estilo de desenvolvimento que permita elevar a renda
(distribuindo, evidentemente, nos países de baixa renda) sem degradar o meio
ambiente e sem manter ou ampliar as desigualdades sociais. Para isso, é
necessário um Estado com capacidade de regulação da economia e com volume de
recursos suficientes para o provimento de serviços públicos de qualidade para a
população. E como a questão é global – tanto o meio ambiente quanto a
desigualdade de renda – é necessário intensificar as negociações entre as
nações e fortalecer as instituições multilaterais que lidam com a questão do
desenvolvimento sustentável.
O slogan de decrescimento (é assim que
definem, segundo Elimar) não agrega nada ao conceito de desenvolvimento
sustentável e ainda confunde a opinião pública, na medida em que tenta disputar
os espaços de debate de ideias com visão sustentada pela redução da economia.
Em um modelo de desenvolvimento com o Estado orientando a produção, estimulando
a inovação e influenciando nos padrões de consumo é possível haver crescimento
do PIB com equilíbrio social e sem degradação do meio ambiente. Vale lembrar,
por outro lado, que um Estado com poder regulador e com capacidade de
investimento no provimento de serviços públicos depende do desempenho da
economia para a elevação da receita pública.
Quando propõe “planejar um decrescimento
que nos conduza a outro estilo de vida”, o conceito de decrescimento parte do econômico
e assume, de partida, a redução da produção econômica e, claro, da renda, para
conduzir a outro estilo de vida. É reducionista e poderia levar ao contrário:
já que reduzimos a pressão antrópica pela redução do PIB, é possível conservar
o estilo de vida. O inverso é mais abrangente e transformador: definição de uma
estratégia de construção de outro modelo de desenvolvimento que seja capaz de
harmonizar equidade social (ideia que não aparece no conceito de decrescimento)
e crescimento econômico dentro dos limites da conservação ambiental.
Finalmente, de acordo ainda com Elimar, os
formuladores da ideia de decrescimento têm a “ousadia (…) de propor superar a
economia de mercado e o capitalismo”. Superar a economia de mercado significa,
em termos concretos, a estatização dos meios de produção, o planejamento
centralizado e o controle do Estado sobre a rede de comercialização. As
experiências “ousadas” de superação do mercado têm sido acompanhadas de
dramáticas consequências econômicas, sociais e, particularmente, ambientais,
como a degradação de enormes proporções do meio ambiente na União Soviética.
O mundo não precisa de novos conceitos,
menos ainda desta ideia reducionista de decrescimento, que confunde o debate e
a definição de políticas e acordos globais. O conceito de desenvolvimento ainda
é o grande referencial para construção do futuro, e ganha amplitude e
convencimento quando incorpora o compromisso com a sustentabilidade e articula
os objetivos de equidade social, conservação ambiental e crescimento econômico.
[1] Mesmo antes,
nos anos setenta do século passado, Ignacy Sachs defendia um novo modelo de
desenvolvimento que chamou de ecodesenvolvimento, que consistia na mesma busca
de uma economia contida pela capacidade de reprodução da natureza.
[2] A análise a
seguir está baseada na interpretação do conceito de decrescimento apresentada por
Elimar Nascimento no Ensaio “Algumas notas sobre a origem do Decrescimento”
publicado na Revista Será? de 2 de outubro de 2020.
[3] Morin,
Edgard. O paradigma perdido: a natureza humana,
3ª ed., Lisboa, Publicações Europa-América, s. d. (Biblioteca Universitária) –
citado em Buarque, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento
local sustentável – metodologia de planejamento. 3ª Edição, Editora
Garamond, Rio de Janeiro, 2006.
[4] Capra, F. A
teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos”, São Paulo:
Cultrix/Amana-key, 1996 – citado em Buarque, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento local
sustentável – metodologia de planejamento. 3ª Edição, Editora
Garamond, Rio de Janeiro, 2006.
*Sérgio C. Buarque, economista com mestrado em sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, sócio da Multivisão-Planejamento Estratégico e Prospecção de Cenários e da Factta-Consultoria, Estratégia e Competitividade. É sócio fundador da Factta Consultoria. Fundador e membro do Conselho Editorial da Revista Será? É membro do Movimento Ética e Democracia.
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