Podemos
estar escrevendo a crônica de um fim de linha preanunciado
“A
função intelectual exercita-se sempre por antecipação (sobre
o
que poderia acontecer) ou
com
atraso (sobre o que ocorreu);
raramente
sobre o que está
acontecendo,
por razões de ritmo, pois os eventos são sempre
mais
rápidos e prementes do que
as
reflexões sobre os mesmos”
Umberto
Eco
As
palavras de Eco retêm especial relevância e atualidade à luz do que está a
acontecer no mundo e no Brasil da pandemia. Estamos em meio ao mais severo
choque global dos últimos 75 anos. Os impactos, diretos e indiretos, da
covid-19 estarão conosco muito além deste dramático ano de 2020, e não ficarão
restritos a questões de saúde pública.
A
pandemia criou problemas econômicos e sociais, derivados de choques negativos
simultâneos da oferta e da demanda que se reforçaram mutuamente em infernal
círculo vicioso. Perderam-se dezenas de milhões de empregos, é inédita a
contração da atividade econômica, elevaram-se em escala global os níveis de
pobreza, vulnerabilidade e desigualdade.
“Quando
chegaremos ao pós-covid?” é a pergunta que se ouve com frequência. Não é,
lamentavelmente, pergunta muito apropriada. Não há “novo normal” no horizonte.
O curso da História nada tem de normal, sempre esteve pleno de peripécias,
instabilidades e surpresas. Quando medicamentos eficazes tiverem surgido,
vacinas aprovadas e aplicadas em bilhões de pessoas – mesmo então, e muito
além, estaremos a falar do “mundo pós-covid” para designar o que se tenha
seguido a 2020. Ano em que, além da pandemia, e por causa dela, se exacerbaram
tendências preexistentes.
Em
particular no que diz respeito ao crescente descontentamento com a
globalização, que a crise de 2008-2009 fez eclodir de forma contundente.
Descontentamento com os efeitos dos avanços tecnológicos sobre o mercado de
trabalho e o consequente agravamento da percepção de excessiva desigualdade na
distribuição de oportunidades. Essa tendência é duradoura e continuará a exigir
respostas econômicas e políticas dos governos e, paradoxalmente, inescapável
cooperação internacional. O mundo já é outro no pós-2020 – e o Brasil também.
Nesta
mesma página, o sempre sereno Fernando Gabeira publicou artigo intitulado Beco
sem saída (2/10), no qual registra que “o que o Brasil precisa (...) os
economistas do governo não conseguem oferecer”. Cabe talvez acrescentar: o que
o Brasil precisa o governo, na sua disfuncionalidade, não consegue oferecer – a
saber, articulação e coordenação não só dentro do Executivo, como também deste
com lideranças do Congresso Nacional, para fazer avançar a agenda de interesse
do País; com uma visão que não contemple, sobretudo, a próxima eleição, mas as
próximas gerações. Estamos, neste outubro de 2020, em rota absolutamente
insustentável quanto à nossa situação fiscal, da qual a maioria ainda não
parece ter-se dado conta. Podemos estar escrevendo a crônica de um fim de linha
preanunciado, como num coro de tragédias de antanho.
A
necessária correção de rumos exige enorme esforço – que envolve análise de
evidências, pensamentos e ações coordenadas e que será preciso empreender ao
longo dos próximos dois anos. A interação da política com a economia, que
sempre foi relevante, é particularmente importante em crises graves como a que
atravessamos. É preciso, com grande sentido de urgência, conectar o presente
com narrativa crível sobre o passado e, mais importante ainda, com sinalização
honesta sobre caminhos futuros. Há escolhas difíceis a fazer, tão sérias quanto
inescapáveis.
É
estreito, cada vez mais estreito, o corredor para opções e saídas. Exemplos
alentadores do que seria possível fazer para alargá-lo nos trouxe o debate
(6/10) que reuniu Paulo Hartung, Arminio Fraga e Marcelo Trindade, por ocasião
do lançamento do excelente livro de Trindade O Caminho do Centro: memórias de
uma aventura eleitoral. Imperdível conversa sobre o que aconteceu, o que
poderia acontecer e o que está acontecendo no Brasil de hoje.
As
palavras de Eco em epígrafe neste artigo vêm de um texto do livro Cinco
Escritos Morais, no qual o autor nota que a reflexão sobre os eventos não pode
servir de escape “ao dever intelectual de entender o próprio tempo e dele
participar melhor”. Segundo Eco, “mesmo quando escolhe espaços de silêncio, o exercício
da reflexão não exime de assumir responsabilidades individuais”. Na introdução
desse livro, Umberto Eco diz, a propósito de características comuns aos Cinco
Escritos: “Apesar da variedade, os temas são de caráter ético, ou seja,
referem-se àquilo que seria justo fazer, àquilo que não se deveria fazer e
àquilo que não se pode fazer em hipótese alguma”.
Os
sinais, posturas e exemplos emitidos pelas lideranças políticas de um país, em
particular por seus chefes de Estado ou de governo, são fundamentais nesse
sentido. Para o bem como para o mal, e disso não faltam exemplos no mundo de
hoje. Resta lembrar que apenas em democracias é possível ao eleitorado
corrigir, pela via pacífica, eventuais erros cometidos em escolhas passadas.
Sempre que haja um mínimo de reflexão e debate sobre o presente, sobre como a
ele chegamos e, obviamente, sobre o futuro.
*Economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC
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