domingo, 11 de outubro de 2020

O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais

A conversão e o compadrio – Opinião | Revista IstoÉ

Eis que Brasília assiste a uma nova tomada de poder. O Centrão, aquele bloco político disforme e corrosivo, avesso a práticas republicanas, já assumiu por completo as rédeas no Planalto. Para salvar as duas causas que julga essenciais — a proteção à família contra investigações por malfeitos notórios e a reeleição — Bolsonaro cercou-se do pior. Entregou-se à esbórnia craquenta do toma lá, dá cá, do compadrio fisiológico, da desfaçatez nos arranjos espúrios. E não imagine que fez isso de malgrado. Claro que não!

Quem o conhece de tempos imemoriáveis, sabe e não se deixa levar pelo verniz marqueteiro do Messias senhor das boas novas. Desde sempre quis o mandatário incorporar no governo convicções baixo clero acalentadas em toda a sua trajetória. Obviamente, elas nunca incluíram medidas liberalizantes, privatizações, reformas estruturais e as “baboseiras” de Estado enxuto. Não era da sua crença, natureza ou interesse pregar tantos vitupérios revolucionários. Ele ventilou como promessas durante a campanha? Claro que sim! Precisava arregimentar seguidores à causa.

Ineptos senhores do capital, sedentos por alternativas conservadoras que lhe garantissem lucro, caíram voluntariamente na lorota. Valeu a mentira. Sempre vale, em se tratando da tática prevalente no abecedário do capitão. Mas Bolsonaro tem unidade carnal com as chamadas conveniências paroquiais. Prefere levar vantagem em tudo, certo Gérson? Tome-se o exemplo da indicação desse desembargador Kássio Nunes Marques à cadeira no Supremo Tribunal — e nem vamos entrar no estupendo show de maquiagens do currículo fake do honorável indicado, que inclui cursos inexistentes, plágio de artigos e a turbinada de títulos como método de promoção (de novo? Indagariam os saudosos do episódio Decotelli, que ocupou a pasta da Educação por lapso de dias).

De que critérios se valeu o “mito”? Em suas próprias palavras, precisava ser alguém que tomasse cerveja ao seu lado nos finais de semana. Até tubaína valia. Afinal, na bolsa de valores do capitão, uma rodada de bebida no balcão do boteco substitui qualquer necessidade de qualificação técnica. O presidente também disse buscar alguém “leal as nossas causas”. E quais seriam elas? Um doce para quem adivinhar. Flávio Zero Um Bolsonaro encalacrado já levou papai-mandatário a pedir arrego ao então plenipotenciário do STF, Dias Toffoli.

Ter agora um nome de sua estrita confiança, indicado diretamente por ele, na Suprema Corte, seria mamão com açúcar. “Kássio Nunes já tomou muita tubaína comigo. A questão de amizade é importante, né? O convívio da gente”. A reveladora sinceridade do inquilino palaciano deixa uma mensagem inequívoca: para ele, no plano da Justiça, colocar amigos que atuem como defensores de seus interesses é algo fundamental. Diria: o que basta. Jair Bolsonaro confunde zelo à Constituição com proteção ao governo. Quer ministros magistrados subjugados, prestando-lhe vassalagem e gratidão pela benção da cadeira ocupada.

Equívoco rotundo almejar o Supremo submetido às vontades do Planalto, mas o mandatário não esconde o anseio, materializado na linha de escolha adotada — que, não por acaso, também conduziu à Procuradoria-Geral da República alguém em plena afinação com o ideário de desmantelo da Lava Jato e das sindicâncias anticorrupção. Onde entra o Centrão nisso tudo? A assinatura do bloco está em cada movimento, na seleção dos aspirantes aos postos e nas manobras de reengenharia do poder. O desembargador Kássio é próximo da “turma”, tem o seu aval e o apadrinhamento direto do capo da agremiação, Ciro Nogueira.

Tal e qual, o PGR Augusto Aras, que acaba de livrar o deputado da bancada, Arthur Lira, de investigações por corrupção passiva. Assunto devidamente arquivado. Para que escarafunchar enredos desagradáveis, não é mesmo? Na engrenagem da gestão bolsonarista, o Centrão está fazendo de tudo um pouco. Assumiu diretamente a liderança do governo na Câmara, aboletando na vaga um dos próceres da frente fisiológica, Ricardo Barros, visto, dia desses, retirando o ministro Paulo Guedes pelo braço de uma entrevista coletiva, por não gostar do que ele falava. Haja poder!

Tomado ao pé da letra, Jair Bolsonaro está seguindo, tim-tim por tim-tim, o script traçado pelo Centrão. Que, diga-se, sem falsos dilemas, é o seu também. Diverte-se, no momento, como “pinto no lixo”, para usar uma memorável alusão do mestre carnavalesco, Joãosinho Trinta. Afinal, consegue tudo que sempre sonhou numa mixórdia política que não lhe incomoda. Sempre achou que governar, na exata dimensão do ato, dá trabalho. Melhor, sobretudo, é entregar a tarefa aos profissionais, especialistas na demagogia rastaquera em troca do aparelhamento da máquina. Daí a relevância visível e crescente do Centrão, que inventou até as andanças do capitão pelo Norte/Nordeste para arrebanhar votos enquanto o País vai à breca.

Veio do antológico quadrilheiro Renan Calheiros a senha definitiva para a nova era de apoplexia pública do Planalto. Disse o magnânimo e impoluto representante da doutrinária agremiação do Centrão: “Bolsonaro deixa o grande legado para o Brasil que é o desmonte desse estado policialesco e já encadeou várias medidas: Coaf, a questão da Receita, nomeação do Aras, demissão de Moro e agora a indicação de Kássio… contra a situação que causou muitas vítimas nos últimos anos”. Realmente relevantes as mexidas no tabuleiro. Quem ganhou com elas? Todos sabem.

Não pairam dúvidas: Messias e o Centrão encarnaram a simbiose perfeita. Estão moldando o País a sua imagem e semelhança, dentro de um presidencialismo de cooptação e não de coalizão — como deveria ser, caso o caminho escolhido priorizasse uma plataforma programática. Na verdade, não há muito mais o que esperar de Bolsonaro, tamanha a inaptidão demonstrada para o exercício da Presidência. Passado quase a metade do mandato, é crível imaginar que dessa cartola não sai coelho. Nenhuma política concreta, efetiva e estrutural de fomento ao desenvolvimento e de prestação de serviços essenciais entrou no radar.

Nem Bolsonaro, nem o Centrão dão a menor pelota para mudanças na estrutura administrativa e fiscal. Está evidenciado. Não querem rever privilégios do funcionalismo, acabar com a burocracia ou mesmo ajustar a caótica estrutura de impostos que minam os esforços da iniciativa privada. As distorções seguirão onde estão, enquanto as contas públicas estouram e o risco de flerte descarado com a irresponsabilidade fiscal, via drible do teto de gastos, dá as caras a cada proposta. O mandatário baixo clero jamais encarnou, como idealizaram alguns, a “nova política”. Nem tentou.

Sancionou uma arquitetura de poder que trás, na essência, o latente fisiologismo, o desrespeito às instituições e a farsa como método, enquanto adorna lideranças da base, autarquias e estatais com os notáveis oportunistas de sempre, desalojando técnicos, especialistas e quadros de peso. No domínio de sua caneta “Bic”, o presidente tem feito todo tipo de concessão aos camaradas do bloco. Mandou às favas os escrúpulos de lisura fiscal e administrativa para mantê-los ao seu lado. Por conveniência até. Mesmo no Congresso, foi por meio de figuras da patota do Centrão — exaustivo contar quantas e quais aqui — que a desejada articulação parlamentar acabou efetivada.

Até o sonhado programa populista do “Renda Cidadã”, “Renda Brasil”, ou seja lá o nome a se dar a essa muleta palanqueira, teve como condutor-mor e mestre de cerimônia o hoje líder centrista, Ricardo Barros. No pântano de tantas alianças espúrias, o odor fedorento e putrefato dos esquemas paira no ar. Não há projeto consagrado pelas urnas em andamento. Inexistem esforços sérios e racionais para tirar o País do atoleiro. Apenas a ocupação sistemática, imoral e pusilânime da engrenagem estatal. Aqueles que ofereciam uma lealdade cega ao mandatário abram os olhos para o fiasco da causa. O Centrão dominou.

Salles precisa sair – Opinião Folha de S. Paulo

Bolsonaro deve mostrar que instinto de sobrevivência supera obsessão ideológica

O governo de Jair Bolsonaro enfrentará em semanas um bombardeio da opinião pública, doméstica e externa, no front ambiental. Em meio à proliferação de incêndios florestais, urge que indique de modo claro ao menos o início de uma nova orientação para o setor.

Aproxima-se a publicação, pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), do dado anual de desmatamento da Amazônia. Não se trata do retrato do presente, porque se encerrou em 31 de julho a coleta das imagens de satélite que mostrarão em detalhe onde ocorreu corte raso da floresta desde agosto de 2019.

No período anterior, 2018-19, a devastação cresceu 34% e alcançou 10.129 km², o equivalente a metade da área de Sergipe. Agora, projeta-se que a cifra poderá ultrapassar 13 mil km², expondo o governo federal a nova saraivada de críticas.

Não será boa notícia para uma administração impotente diante do fogo que consome um quarto do Pantanal. Até terça-feira (6) contavam-se 19.215 focos de queima na planície alagável, desde janeiro, maior número registrado pelo Inpe desde 1998 e o triplo do detectado no mesmo período de 2019.

Seria tolo, decerto, atribuir toda a culpa às políticas de Bolsonaro e de seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A estiagem deste ano no Pantanal é a maior em décadas, e a temperatura atmosférica sobe com frequência para a casa dos 40ºC, o que torna tarefa quase impossível controlar as chamas.

A década que se encerra é a mais quente já registrada no planeta, com seu corolário de ondas de calor e secas prolongadas. Incêndios florestais devastadores têm acontecido noutras partes do planeta em 2020, como Califórnia e Austrália; em anos recentes, também na Europa e na Sibéria.

Alguns proprietários pantaneiros foram identificados como iniciadores de queimadas não autorizadas, mas não se tem notícia de iniciativa criminosa como o “dia do fogo” na Amazônia em 2019.

A tempestade perfeita, ademais, surpreendeu o poder público em condição debilitada, com as limitações impostas pela pandemia e pela penúria orçamentária.

Seria despropositado, porém, concluir que apenas a falta de recursos impediu o combate a incêndios e derrubadas. Se a situação seria difícil para qualquer governante, torna-se dramática quando gerida por um presidente negacionista da crise do clima e um ministro empenhado no desmonte da área.

Recorde-se que Salles cometeu a proeza de desmantelar o acordo bilionário do Fundo Amazônia com Noruega e Alemanha, em nome da soberania supostamente ameaçada. Em verdade, o BNDES gerenciava a aplicação dos recursos em iniciativas de combate à devastação.

Um indicador da inoperância de sua pasta está no baixo número de autuações pelo Ibama, uma fixação do presidente. O órgão definha, assim como o ICMBio, encarregado das unidades de conservação.

Fiscais são transferidos como punição por agir com rigor ou ficam indisponíveis pelo risco da Covid; a destruição legal de máquinas de infratores termina desautorizada pelo presidente e pelo ministro. Salles preenche cargos de chefia das autarquias com policiais militares inexperientes na Amazônia.

Com tal retrospecto, o ministro se associa irremediavelmente ao presente desastre pantaneiro e amazônico. Ameaça o futuro dos biomas e o prestígio do país, que vê soçobrar na voga crescente de condenação o acordo da União Europeia com o Mercosul. Faz crescer o risco de boicote internacional a commodities brasileiras.

Disparou-se o alarme. Empresas de diferentes portes e ramos de atividade se engajam na defesa da Amazônia; os setores mais arejados do agronegócio articulam a rejeição às políticas antiambientais.

Bolsonaro e seu vice, o general Hamilton Mourão, insistem na tese de uma injusta campanha contra o Brasil, como repisou o presidente na ONU. Fazem crer que tudo se resume a uma batalha de narrativas, quando é de fatos atestados por satélites que se trata.

Seja por pragmatismo comercial e diplomático, seja para manter a sustentação política de seu governo, o presidente precisa fazer um gesto mais sensato do que enterrar centenas de milhões numa aventura militar inócua na Amazônia.

O primeiro passo deve ser a saída de Ricardo Salles. Manter auxiliar com tal reputação só servirá para inspirar desconfiança permanente sobre o governo —que, após o prudente apaziguamento com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, precisa demonstrar que seu instinto de sobrevivência supera as obsessões ideológicas.

O acordo UE-Mercosul na berlinda – Opinião | O Estado de S. Paulo

Política ambiental de Jair Bolsonaro expõe o Brasil e seus aliados no Mercosul a risco

O Parlamento Europeu praticamente rejeitou o acordo União Europeia (UE)-Mercosul. Em votação no dia 7, o plenário aprovou emenda em um relatório sobre a política comercial europeia, enfatizando que “o acordo não pode ser ratificado na sua forma atual”. Foram 345 votos a favor, 295 contra e 56 abstenções. O texto final retirou uma menção à política ambiental de Jair Bolsonaro, mas é evidente que esse é o “x” da questão. A emenda sinaliza o risco a que Bolsonaro está expondo o Brasil e seus aliados no Mercosul. Mas a atitude das lideranças europeias também põe em risco a credibilidade da União Europeia.

A irresponsabilidade de Bolsonaro é inaceitável sob qualquer ponto de vista, do ambiental, por óbvio, mas não menos do econômico. O antagonismo ideológico entre ambientalismo e capitalismo já foi inexoravelmente enterrado no passado. Hoje a pressão mais forte a favor da sustentabilidade vem do próprio capital, haja vista a agenda de instituições como o FMI, Banco Mundial ou o Fórum Econômico Mundial e, mais particularmente, as demandas de fundos trilionários por um combate enérgico aos desmatamentos.

Dito isso, não é admissível que políticas comerciais de Estado negociadas durante 20 anos possam ir pelos ares pelos desmandos de um governo de turno. 

Recentemente, o vice-presidente da Comissão Europeia, Valdis Dombrovskis, enfatizou em pronunciamento no Parlamento que é preciso “encontrar soluções duradouras para a Região Amazônica antes da ratificação do acordo”. Perfeitamente. Quais? As autoridades falam em metas concretas de desmatamento, mas não propõem nada concreto.

Entre os anos de 2002 e 2004, quando o acordo começava a ser negociado, a taxa de desmatamento na Amazônia era, em média, de mais de 25 mil km² ao ano. Já entre 2017 e 2019, em que pese a tendência de aumento, a média do desmatamento foi de 8 mil km².

O próprio acordo estabelece que as partes não reduzirão seus padrões ambientais para promover negócios ou atrair investimentos. O padrão do Brasil é alto. O País aprovou em 2012 um Código Florestal dos mais ambiciosos do mundo, que prevê, entre outras coisas, que os proprietários na Amazônia são obrigados a preservar 80% de sua propriedade às suas custas. De resto, o agronegócio tem batido recordes de produtividade em escala que supera em muito o aumento da área cultivada. O Brasil também tem uma das maiores matrizes de energia limpa do mundo.

Outra cláusula importante é o compromisso com o Acordo de Paris sobre o clima. O Brasil talvez não esteja fazendo mais do que a média dos outros signatários, mas, com todos os percalços, certamente não está fazendo menos.

Nada disso justifica o descaso de Bolsonaro com o meio ambiente, nem a incompetência de seus quadros, nem suas flagrantes mentiras sobre o estado da questão, nem o desassombro com que insulta autoridades globais que não são da sua laia ideológica, tampouco deslegitima as apreensões dos europeus com o destino da Amazônia.

Mas espera-se de futuros parceiros, que costuraram durante 20 anos a sua aliança, uma atitude mais cooperativa e propositiva. De resto, têm razão os Ministérios das Relações Exteriores e da Agricultura quando advertem que a não ratificação do acordo, ao reduzir o horizonte de investimentos e desenvolvimento sustentável para os povos amazônicos, pode agravar ainda mais os problemas ambientais da região.

Um acordo desta envergadura é obra de Estados, muito mais que de governos. O Brasil é maior que Bolsonaro, como prova o seu histórico ambiental nas últimas décadas. Mas isso não basta. Agora, os outros Poderes da República e a sociedade civil devem impor uma pressão máxima sem tréguas para que o governo apresente um plano efetivo para frear o desmatamento e reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 em comparação com os níveis de 2005. São duas exigências do acordo que serão cobradas à delegação diplomática prevista para ir à Europa em novembro. Mas espera-se dos europeus que também façam a sua parte. Mais propostas e menos ameaças será um bom começo. 

Bolsonaro sabia que não era só uma ‘gripezinha’ – Opinião | O Globo

Pandemia que já matou 150 mil chega perto do pior cenário traçado por Mandetta ao presidente

Apesar de minimizar publicamente a gravidade da pandemia de Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro sempre esteve ciente da tragédia que se desenhava em letras garrafais e que, em pouco mais de sete meses, nos trouxe à marca fatídica de 150 mil vidas perdidas — comparável ao número de vítimas da bomba atômica lançada sobre Hiroshima em 1945.

Bolsonaro foi alertado repetidas vezes para o que estava por vir, como relatou o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta no livro “Um paciente chamado Brasil”, narrativa dos bastidores da batalha contra o vírus enquanto comandava o ministério.

Numa reunião na Biblioteca do Palácio da Alvorada, em 28 de março, com a presença de quase todos os ministros, Mandettta conta ter levado ao presidente três cenários. No mais otimista, que ele próprio achava improvável, o novo coronavírus mataria 30 mil brasileiros. O intermediário previa entre 60 mil e 80 mil mortes. E o mais pessimista projetava 180 mil, caso o país não adotasse distanciamento social e padrões rígidos de higiene e proteção. “Apresentei os números na tela, mas fiz uma cópia impressa de tudo, que entreguei nas mãos do presidente, na frente de todos os ministros, para que ele nunca dissesse que não tinha conhecimento dos fatos”, diz Mandetta.

Àquela altura, o país registrava 3.904 infectados (hoje são 5 milhões) e 114 mortos pelo novo coronavírus. Que fez o presidente? Tudo o que não deveria ter feito, narra Mandetta: “Continuava indo ao encontro das pessoas, provocando ajuntamentos, dava declarações contra o distanciamento social. E foi depois da reunião na biblioteca do Alvorada que começou a ter esse tipo de atitude de forma mais sistemática”.

O isolamento social, essencial para conter a disseminação do vírus, sempre foi rechaçado por Bolsonaro. Mandetta conta que, para o presidente, a paralisação das atividades era um golpe dos governadores para inviabilizar seu governo e causar uma convulsão social. Temia que abrisse caminho à volta da esquerda ao poder, com apoio da China. “Era um delírio de múltiplas conspirações, que alimentava a tese de que o coronavírus fora produzido em laboratório, era uma arma biológica, e isso ainda ia ser comprovado.”

Nesse mundo apartado da Ciência, a cloroquina tornou-se uma obsessão. Segundo Mandetta, Bolsonaro quis até mudar a bula do remédio para incluir a Covid-19, apesar de vários estudos terem demonstrado que ele não tem eficácia contra a doença e pode contribuir para agravá-la. Diante da resistência dos técnicos, a ideia não prosperou. Divergências sobre a cloroquina foram o pivô da saída de Mandetta e de seu sucessor, Nelson Teich, do ministério.

Bolsonaro não é o único responsável pela tragédia provocada pelo novo coronavírus. O STF deu autonomia a governadores e prefeitos para que tomassem medidas de combate à Covid-19. De forma geral, eles também falharam — sem falar nos apanhados desviando recursos públicos para o combate à doença. Mas a responsabilidade de Bolsonaro, como chefe da nação, é incontornável. Bolsonaro tratou a mais devastadora pandemia em cem anos como uma “gripezinha”. É seu nome que ficará gravado nos livros de História.

Sete meses e inúmeros erros depois, a epidemia desacelera, com queda ou estabilidade na maior parte do país. Mesmo assim, o Brasil ainda registra mais de 600 mortes por dia. Um brasileiro morre de Covid-19 a cada dois minutos. Não se arredou pé do cadafalso. Apenas a vacina trará de volta algo parecido com a normalidade.

No auge da pandemia, ao responder a uma apoiadora que lhe pedira uma palavra às famílias enlutadas, Bolsonaro disse: “Lamento todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. Havia outros destinos. Se Bolsonaro não tivesse ignorado os alertas; se tivesse havido ação coordenada no combate à doença; se não desprezasse a Ciência, se tivesse testado maciçamente a população para identificar os infectados e isolá-los, a sina da maioria das 150 mil vítimas teria sido outra. No pior cenário, o destino que lhes restou foram as covas coletivas e os enterros solitários.

Congresso precisa incluir servidores atuais na reforma administrativa – Opinião | O Globo

Não haverá como acabar com os descalabros sem enfrentar as corporações do funcionalismo

Na agenda que apresentou ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia, a Frente Parlamentar da Reforma Administrativa sugeriu a inclusão dos atuais servidores no projeto encaminhado pelo governo ao Congresso. É uma medida fundamental para que a reforma tenha um mínimo de credibilidade. As corporações do funcionalismo não param de testar os limites legais dentro da própria burocracia estatal — e têm vencido.

Basta lembrar a promoção extravagante de 607 procuradores pela Advocacia-Geral da União (AGU), numa manobra para driblar a lei que congela os salários dos servidores até 2021. Se o trem da alegria não tivesse sido noticiado pela imprensa, teria chegado ao destino sem sobressalto, como tantos outros que passam despercebidos.

Do ponto de vista fiscal, pouco significa a AGU ter recuado, porque as condições para a repetição dessas promoções automáticas, sem avaliação de mérito, continuam intocadas. Antes da revelação, o próprio Tribunal de Contas da União (TCU) — encarregado de fiscalizar o caso — fez o mesmo com 39 servidores. Promoveu quatro funcionários e fez a “progressão de carreira” de 35 outros, todos auditores federais.

O Ministério Público de Contas pediu ao TCU liminar contra as benesses distribuídas na AGU, e o subprocurador Lucas Rocha Furtado tachou a benevolência de “inoportuna e indecorosa”. Teve de incluir os reajustes concedidos no próprio tribunal na mesma reclamação contra a AGU.

O que aconteceu na AGU é apenas um exemplo de como funcionam as coisas na gestão do funcionalismo. Casos pontuais alertam para o descalabro que é baseá-la numa legislação ultrapassada, contaminada por incontáveis alterações no Legislativo, feitas sempre de forma nada transparente, sob pressão do lobby influente das corporações. Não haverá como promover uma reforma decente sem enfrentá-las. É essencial que o Congresso inclua no texto também os atuais servidores.

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