STF
perpetua privilégios e contribui para a crise fiscal
Em
frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal, na Praça dos Três Poderes,
repousa a escultura “A Justiça”, de Alfredo Ceschiatti. “Repousa”, aliás, é uma
boa palavra para descrever o estado da obra do artista belo-horizontino:
afinal, são raras as representações artísticas em que a deusa da Justiça está
sentada. Mas este não é seu único detalhe simbólico.
Através
dos séculos, a deusa romana Iustitia aparece em pinturas e esculturas com três
componentes praticamente inseparáveis: a venda nos olhos (destacando a
impessoalidade), a balança (fazendo referência à isonomia no tratamento das
partes) e a espada (realçando a força para impor o direito sobre todos).
A escultura que simboliza o Judiciário brasileiro, porém, não possui balança - como se por lá não fosse necessário contrabalançar argumentos, sopesar direitos, medir consequências e equilibrar a teoria e a prática.
Há
quem justifique a falta do instrumento afirmando que a nossa Justiça foi
retratada após ter exercido o seu dever; logo, a balança já teria sido usada, e
uma vez proferida a decisão, bastaria ter no colo a espada, para ser utilizada
caso não a cumprissem. Ora, então não seria melhor que a Justiça estive como a
deusa grega Thêmis, de olhos bem abertos para fiscalizar a aplicação de seus
mandamentos?
Ceschiatti,
um dos artistas recomendados por Oscar Niemeyer para ornamentar a nova capital,
esculpiu “A Justiça” em 1961 num bloco monolítico de granito de 3,3 metros de
altura e com linhas elegantes e econômicas - características que há bastante
tempo passam longe do STF, rachado entre várias correntes e fomentando a
irresponsabilidade fiscal.
Duas
decisões recentes expõem como os ministros do Supremo Tribunal Federal fecham
os olhos para a grave crise econômica que o país atravessa, deixam de
equilibrar direitos e deveres e embainham a espada quando se trata de cortar os
privilégios da própria magistratura.
Em
1º de dezembro a ministra Rosa Weber deferiu uma liminar determinando que a
União deveria avalizar a um empréstimo de mais de US$ 400 milhões para
investimentos do governo do Estado do Espírito Santo. Essa operação havia sido
travada pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que veda a concessão de
garantias federais caso entes subnacionais estejam descumprindo os limites
prudenciais de gastos com pessoal. No caso do Espírito Santo, era justamente o
Poder Judiciário local quem estava gastando além da conta.
Alegando
violação ao princípio da intranscendência - em outras palavras, um Poder não
poderia ser punido por uma falha de outro - a ministra Rosa Weber esvaziou a
LRF, acrescentou mais um ônus ao sobrecarregado Tesouro Nacional e não impôs
nenhuma sanção ao Judiciário capixaba por inflar sua folha de pagamentos.
Decisões como essa, aliás, são bastante frequentes nas últimas décadas, e podem
ser apontadas como uma das causas para a baixa efetividade da LRF e pelo
descontrole orçamentário na maioria dos Estados e municípios.
Pior
ainda fez o plenário do STF na semana passada - não, eu não me refiro à decisão
sobre a reeleição nas presidências da Câmara e do Senado. Com a exceção
solitária do ministro Edson Fachin, que votou contra, a maioria dos ministros
considerou inconstitucional parte das Emendas Constitucionais nº 41/2003 e
47/2005 que estabelecia que os juízes estaduais deveriam ter seus vencimentos
limitados a 90,25% do que ganham os integrantes do STF.
Novamente,
o STF valeu-se de princípios abstratos - no caso, da isonomia e da unidade da
prestação judicial - para atropelar normas criadas para manter as contas
públicas em dia e evitar distorções. E assim, juízes de todo o país, até mesmo
os recém aprovados em concurso, estão definitivamente liberados a ganhar o
mesmo que um membro da Suprema Corte. E é bom não esquecer que certamente a
decisão terá efeito cascata sobre o Ministério Público e os Tribunais de Contas
Brasil afora.
Essa
última decisão tomada pelo STF partiu de duas ações diretas de
inconstitucionalidade (ADI) movidas, respectivamente, pela Associação dos
Magistrados Brasileiros (AMB) e pela Associação Nacional dos Magistrados
Estaduais (Anamages).
A
Constituição Brasileira de 1988 tornou-se uma das mais progressistas do mundo
ao permitir que não apenas entidades políticas (como os chefes do Executivo, do
Legislativo e do Ministério Público, além dos partidos políticos), mas até
mesmo confederações sindicais e entidades de classe pudessem provocar o STF
para, enquanto guardião da interpretação constitucional, se posicionar se uma
lei, em abstrato, fere ou não a Carta Magna do país.
Como
acontece com frequência por aqui, avanços logo se transformam em abusos. Ao
permitir que entidades privadas tivessem acesso privilegiado às ações mais
importantes de nosso sistema processual, o controle abstrato das normas
tornou-se fonte concreta de benesses. Não é à toa que, desde 1988, a AMB figura
como o grupo privado que mais acionou o Supremo para questionar a
constitucionalidade de leis - foram 151 vezes, boa parte delas relativa à
defesa dos interesses de seus associados. A Anamages, por sua vez, propôs
outras 45 ADIs.
No
porto de Ringkøbing, uma cidade com menos de 10 mil almas no centro da
Dinamarca, encontra-se a escultura de um homem esquálido carregando nos ombros
uma mulher bastante obesa. A mulher tem os olhos fechados e carrega nas mãos uma
balança desequilibrada - desnecessário dizer a quem ela faz alusão.
Feita
em bronze, com 3,5 metros de altura, “Sobrevivência do mais Gordo” (“Survival
of the Fattest”) é uma obra dos artistas dinamarqueses Jens Galschiøt e Lars
Calmar, inaugurada em 2002. Na sua base, há a seguinte inscrição: “Estou
sentada nas costas de um homem. Ele está afundando sob o fardo. Eu faria
qualquer coisa para ajudá-lo. Menos descer de suas costas”.
Nada
mais exemplificativo sobre o Poder Judiciário brasileiro e a atuação de sua
cúpula.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”
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