O
general que confunde invernos e entraria em mais frias que Napoleão não se
lembrou de comprar seringas
Quando
William Shakespeare tomou sua vacina no histórico 8 de dezembro, confesso que o
invejei. A primeira coisa que me veio à cabeça foi abraçar, depois de tantos
meses, minha filha que vive longe daqui. Imaginei imediatamente quantos abraços
e beijos estão congelados a 70 graus negativos, esperando o momento da vacina.
Mas
aqui, caro Shakespeare, a vacina ainda é sonho de uma noite de verão. Gostaria
também de voltar à estrada, passar longos dias no mato, voltar ao escurecer,
com os curiangos voando diante do para-brisa, as primeiras luzes se acendendo
na periferia da pequena cidade.
Aqui,
William, somos reféns de um governo obscurantista, que não só negou a Covid-19,
como o governo britânico no início, mas, ao contrário dele, nunca mudou de
posição.
Não
vou te cansar com detalhes biográficos. Para quem conheceu Hamlet, o nome Bolsonaro
e seus dramas acabariam aborrecendo pela vulgaridade.
O
fato é que ele acredita mais num remédio do que na vacina contra o coronavírus.
Primeiro, importou da Índia insumos para hidroxicloroquina, e ela encalhou nos
laboratórios do Exército. Depois, ao lado um astronauta, investiu milhões em
pesquisa sobre um vermífugo chamado Anitta. Fracasso.
Ele
escolheu um general para comandar essa guerra. É um especialista em logística
que deixa milhões de testes contra Covid-19 adormecidos num galpão de São Paulo.
Esse general talvez fosse um personagem. Ele acha que o inverno brasileiro do Nordeste coincide com o europeu. E promete comprar vacinas se houver demanda, como se nenhum de nós sonhasse com o seu 8 de dezembro, William.
A
única preocupação do homem que preside o país é que a vacina não seja
obrigatória. Mas como poderia ser, se levaremos mais de um ano para vacinar
todo mundo? Como tornar obrigatório algo que não está disponível. A liberdade
será preservada.
Vejo
nas redes sociais que seus seguidores temem que a vacina, sobretudo as que
trabalham com RNA, possam mudar o código genético. Temem a vacina que você
tomou, a da Pfizer, como se depois dela William Shakespeare deixasse de
escrever e se tornasse lenhador na cidade de Warwick.
O
Brasil talvez seja o único país onde as vacinas têm um peso ideológico. As
chinesas são preteridas pelo governo porque são chinesas, têm o olho apertado e
podem nos transformar numa multidão de fanáticos do comunismo invadindo as ruas
com o livrinho vermelho na mão.
O
general que confunde invernos e entraria em mais frias do que Napoleão não se
lembrou ainda de comprar as seringas e agulhas, dessas que foram usadas aí,
William, nessa terça-feira histórica.
Para
não dizer que tudo aqui é cinzento e sem esperança, registro que podemos ver o
terno e o vestido que o presidente e sua mulher usaram na posse, em 2019. Eles
estão expostos, a entrada é grátis, e foram inaugurados com pompa, discursos
sobre estilo e Jesus Cristo, ou como definir as medidas de um enviado dos céus.
Indiferente
a tudo, o vírus avança. Nada mais fácil do que enlouquecer um país antes de
destruí-lo.
O
governo vai amarrar ao máximo o processo de vacinação, simplesmente porque não
acredita nele. Em 1904 houve uma revolta contra a vacina. Será preciso uma outra
revolta, desta vez para que as vacinas sejam usadas o mais rápido possível.
Será
preciso lutar não só para a retomada econômica, mas para que nossas vidas
sentimentais sejam reatadas como antes. Isso é até secundário, se consideramos
o número de doentes e mortos que o atraso produz.
Contamos
com alguns governadores, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. Não se pode
dizer que sejam rápidos ou solícitos para entrar nessa luta. Mas são o que
temos. Se for necessário, que se faça uma pressão sobre todos. Pode chegar o
momento em que fique claro que não só o vírus, mas a elite burocrática e
política brasileira, é um obstáculo de vida ou morte.
Se
no combate contra um vírus há tanta hesitação, imagino em casos mais graves
como numa guerra. O Exército, que na origem era aliado da ciência, produz um
general obscurantista como Pazuello, o presidente que foi escolhido por milhões
dedica-se a expor numa vitrine iluminada um terno escuro e o vestido que a
mulher usou na posse.
Nem
todos os que se sentem mumificados podem entrar num museu. Há critérios: é
preciso tempo e história, até para um lugar no museu de horrores.
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