A
polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva
A
pandemia “é uma coisa política”. A Covid-19 “não é tão grave”. As UTIs “não
correm risco de colapso”. As quarentenas “destinam-se a quebrar a economia”.
Você, como eu, ouve teorias da conspiração desse tipo quase todos os dias. São
bolsonaristas? Sim, mas não apenas. Ignorantes? Claro, mas também indivíduos
com diplomas universitários — e de instituições prestigiosas. Não se
(auto)engane: uma cisão cognitiva profunda atravessa a sociedade.
A extrema-direita não monopoliza as teorias da conspiração. O governo dos EUA sabia de antemão sobre os atentados do 11 de setembro (e talvez até tenha sido responsável por eles). Os EUA deflagraram a guerra na Síria para fortalecer Israel. Os judeus, donos do dinheiro, controlam Wall Street e dirigem a política americana no Oriente Médio. Sergio Moro perseguiu Lula, pois é agente do FBI ou do Departamento de Justiça dos EUA. 2 + 2 = 5: em certas circunstâncias, a esquerda compartilha a paixão pelo pensamento mágico.
A
aprovação de Bolsonaro cresceu ao longo da pandemia — e não só entre
beneficiários do auxílio emergencial. Na crise sanitária, dois Brasis
separaram-se um pouco mais. Numa ponta, situa-se a população que circula na economia
digitalizada e no funcionalismo público: os que conservaram seus empregos e
salários durante as quarentenas. Na outra, a população presa à economia
analógica ou presencial: os que enfrentam o desemprego, a perda de renda, a
falência de negócios, a dissolução de patrimônios. Esqueça a conversa
condescendente de que “estamos no mesmo barco”. Tente enxergar a paisagem do
ângulo desses últimos.
Os
“progressistas”, acampados na economia digitalizada, selecionaram seus
especialistas. Os mais aclamados, arautos de uma epidemiologia fundamentalista,
projetaram milhões de óbitos no Brasil, mesmo sob nossas precárias quarentenas.
Nessa linha, exercitando o pensamento mágico, exigiram rígidos lockdowns de
duração ilimitada. Como essa exposição do mais cru elitismo foi interpretada do
lado de lá, entre trabalhadores “essenciais” de transportes e supermercados,
donos de pequenos negócios comerciais, entregadores de aplicativos, ambulantes,
empregadas domésticas?
A
oferta de intelectuais e acadêmicos é elástica: todas as correntes políticas
têm um estoque deles. Surgiram, previsivelmente, os especialistas do
negacionismo. Primeiro, eles definiram a Covid como “gripezinha”. Depois,
engajaram-se na “guerra da cloroquina” e na denúncia da “vacina chinesa”. No
trajeto, apoiando-se nos dramáticos exageros e nas óbvias manipulações dos
especialistas aclamados, engajaram-se nas suas próprias manipulações
estatísticas, exibindo gráficos que comprovariam um absoluto fracasso de todas
as quarentenas. A “ciência” — isto é, um discurso cifrado acompanhado por
números —também pode ser posta a serviço de teorias da conspiração. Você tem
uma “prova científica”? Ok, eles também: 2 + 2 = 5.
Teorias
da conspiração sempre existiram, ainda que se espalhem mais rápido na era das
redes virtuais. A demanda por elas vem de baixo, especialmente em tempos de
crise, como resposta a difusas angústias sociais. Seu sucesso reflete a
fragilidade dos laços de confiança que conectam a massa da população à “elite
pensante”. A verdadeira novidade, fonte da força inédita que adquiriram, está
no papel desempenhado pelas lideranças políticas da direita populista. Quando,
como fazem Trump e Bolsonaro, o chefe de Estado torna-se porta-voz da
irracionalidade, rompe-se a barreira psicológica da vergonha, coagulam-se
crenças insanas e cada um ganha o direito de proclamá-las em público sem medo
da censura alheia.
A
polarização política saltou um degrau, convertendo-se em polarização cognitiva.
A “elite pensante” não se interroga sobre as raízes da difusão popular de
teorias da conspiração. Prefere a via fácil: dialoga exclusivamente com seus
pares, repete incansavelmente suas próprias verdades e, nariz cada vez mais
empinado, exibindo superioridade moral, faz troça dos “ignorantes”. Não
entendeu o óbvio: rindo deles, você reforça as crenças que imagina combater. 2
+ 2 = 5.
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