domingo, 30 de janeiro de 2022

Dorrit Harazim: Memória, História

O Globo

George Orwell não ficara inteiramente satisfeito ao colocar um ponto final no manuscrito de “1984”. “O tema central é bom”, escreveu a seu agente literário em 1948, “mas a execução teria sido melhor se eu não estivesse às voltas com a tuberculose”. Foi internado num sanatório pouco depois da publicação do clássico, e morreu tísico aos 46 anos, consciente da importância do que escrevera. Na obra distópica, o protagonista Winston Smith aponta para o perigo maior daquele mundo totalitário descrito por Orwell, ultrapassando em horror a tortura e a morte: o Grande Irmão poderia se apossar do passado, da memória, da História. E decretar que este ou aquele evento jamais ocorrera.

No mundo não fictício de hoje não faltam candidatos a Grande Irmão — indivíduos, regimes, negacionistas doentios — tentados a se apossar do nosso passado para adequá-lo às próprias insânias. Só que, para poder reescrever a história dos mortos, esses agentes do esquecimento precisam conseguir cancelar a memória dos vivos. Nossa função é impedi-los. Daí a importância ardente de se homenagear, a cada 27 de janeiro, o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. É preciso relembrar, ano após ano, de geração em geração.

No brutal inverno europeu de janeiro de 1945, faltando poucos meses para a capitulação da Alemanha nazista frente às tropas Aliadas, o Exército Vermelho vindo da União Soviética avançara fundo Polônia adentro. Já haviam libertado Varsóvia e Cracóvia quando olheiros os informaram de que encontrariam algo escabroso a caminho de Oswiecim. Era Auschwitz. Ali encontraram 648 cadáveres, pilhas de cinzas que um dia tiveram formas humanas, e cerca de 7.500 esqueletos ainda com vida. Naquele 27 de janeiro, o Holocausto teve expostas suas primeiras entranhas.

Auschwitz, como se sabe, foi o maior conjunto de campos de concentração e de extermínio nazista. Englobava desde complexos grandes, como Birkenau, ou Auschwitz II, onde Josef Mengele exercitava seus experimentos médicos em crianças e adultos, até várias dúzias de instalações satélites, menores. Das cerca de 1,3 milhão de pessoas deportadas para Auschwitz, 1,1 milhão ali pereceram. Ao final do conflito, 6 milhões de judeus e perto de 5 milhões de outros grupos (portadores de deficiências, homossexuais, ciganos) haviam sido massacrados. Através da erradicação de judeus e outros “indesejáveis”, a “solução final” de Hitler visava a purificar a raça ariana. O mapa do genocídio nazista praticado em Buchenwald, Ebensee, Majdanek, Mauthausen, Wöbbelin, Ravensbrück, Treblinka, Dachau e outros está minuciosamente documentado. É imperioso que seja relembrado como parte da desumanidade de que somos capazes. Como disse a um jornal de Israel Szmul Icek, um dos 15% de sobreviventes judeus de Auschwitz, “nós não ganhamos. Mas pudemos ensinar nossos netos a entender o que aconteceu”.

Três meses depois de os soviéticos se assombrarem com os campos poloneses, foi a vez de as tropas americanas descobrirem que o pior da guerra não estava nos campos de combate. Para os recrutas da 45ª Divisão de Infantaria que entraram em Dachau em 26 de abril de 1945, o primeiro estranhamento foi o cheiro acre a empestear o ar daquela cidade bávara. Pensaram tratar-se de resíduos químicos. Engano. No interior de 40 vagões de trem imobilizados nos trilhos, apodreciam os cadáveres de três quartos dos três mil prisioneiros. Diante do avanço das tropas aliadas, haviam sido despachados pelo comando nazista de Buchenwald para Dachau, para ali serem cremados. Morreram antes, asfixiados e desidratados. À entrada do campo propriamente dito, havia pilhas de corpos nus e pele esticada ao extremo. Dentro do campo restavam perto de 30 mil almas ainda perambulantes.

Segundo narrativas históricas, quando quatro oficiais alemães emergiram das sombras de Dachau empunhando um lenço branco, o tenente William Walsh os obrigou a se debruçarem sobre uma pilha de corpos e os executou com a própria pistola . Dezessete outros alemães foram ali abatidos num descarrego coletivo de metralhadoras que durou 17 segundos. Nenhuma guerra é bela.

Coube ao general americano Dwight Eisenhower, comandante supremo das Forças Aliadas (e posteriormente 34º presidente dos Estados Unidos) a decisão de visitar um campo de concentração antes mesmo do final dos combates. Por via das dúvidas, fez-se acompanhar dos estrelados generais George Patton e Omar Bradley. “A evidência visual e o testemunho verbal de crueldade, inanição e bestialidade foram tão avassaladores que me senti mal...”, declarou depois. “Fiz a visita deliberadamente, para poder prestar testemunho de primeira mão caso algum dia, no futuro, surja uma corrente que queira classificar essas afirmações como mera ‘propaganda’.” A História e a memória agradecem.

 

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