O Globo
George Orwell não ficara inteiramente
satisfeito ao colocar um ponto final no manuscrito de “1984”. “O tema central é
bom”, escreveu a seu agente literário em 1948, “mas a execução teria sido
melhor se eu não estivesse às voltas com a tuberculose”. Foi internado num
sanatório pouco depois da publicação do clássico, e morreu tísico aos 46 anos,
consciente da importância do que escrevera. Na obra distópica, o protagonista
Winston Smith aponta para o perigo maior daquele mundo totalitário descrito por
Orwell, ultrapassando em horror a tortura e a morte: o Grande Irmão poderia se
apossar do passado, da memória, da História. E decretar que este ou aquele
evento jamais ocorrera.
No mundo não fictício de hoje não faltam
candidatos a Grande Irmão — indivíduos, regimes, negacionistas doentios —
tentados a se apossar do nosso passado para adequá-lo às próprias insânias. Só
que, para poder reescrever a história dos mortos, esses agentes do esquecimento
precisam conseguir cancelar a memória dos vivos. Nossa função é impedi-los. Daí
a importância ardente de se homenagear, a cada 27 de janeiro, o Dia
Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. É preciso relembrar, ano
após ano, de geração em geração.
No brutal inverno europeu de janeiro de 1945, faltando poucos meses para a capitulação da Alemanha nazista frente às tropas Aliadas, o Exército Vermelho vindo da União Soviética avançara fundo Polônia adentro. Já haviam libertado Varsóvia e Cracóvia quando olheiros os informaram de que encontrariam algo escabroso a caminho de Oswiecim. Era Auschwitz. Ali encontraram 648 cadáveres, pilhas de cinzas que um dia tiveram formas humanas, e cerca de 7.500 esqueletos ainda com vida. Naquele 27 de janeiro, o Holocausto teve expostas suas primeiras entranhas.
Auschwitz, como se sabe, foi o maior
conjunto de campos de concentração e de extermínio nazista. Englobava desde
complexos grandes, como Birkenau, ou Auschwitz II, onde Josef Mengele exercitava
seus experimentos médicos em crianças e adultos, até várias dúzias de
instalações satélites, menores. Das cerca de 1,3 milhão de pessoas deportadas
para Auschwitz, 1,1 milhão ali pereceram. Ao final do conflito, 6 milhões de
judeus e perto de 5 milhões de outros grupos (portadores de deficiências,
homossexuais, ciganos) haviam sido massacrados. Através da erradicação de
judeus e outros “indesejáveis”, a “solução final” de Hitler visava a purificar
a raça ariana. O mapa do genocídio nazista praticado em Buchenwald, Ebensee,
Majdanek, Mauthausen, Wöbbelin, Ravensbrück, Treblinka, Dachau e outros está
minuciosamente documentado. É imperioso que seja relembrado como parte da
desumanidade de que somos capazes. Como disse a um jornal de Israel Szmul Icek,
um dos 15% de sobreviventes judeus de Auschwitz, “nós não ganhamos. Mas pudemos
ensinar nossos netos a entender o que aconteceu”.
Três meses depois de os soviéticos se
assombrarem com os campos poloneses, foi a vez de as tropas americanas
descobrirem que o pior da guerra não estava nos campos de combate. Para os
recrutas da 45ª Divisão de Infantaria que entraram em Dachau em 26 de abril de
1945, o primeiro estranhamento foi o cheiro acre a empestear o ar daquela
cidade bávara. Pensaram tratar-se de resíduos químicos. Engano. No interior de
40 vagões de trem imobilizados nos trilhos, apodreciam os cadáveres de três
quartos dos três mil prisioneiros. Diante do avanço das tropas aliadas, haviam
sido despachados pelo comando nazista de Buchenwald para Dachau, para ali serem
cremados. Morreram antes, asfixiados e desidratados. À entrada do campo
propriamente dito, havia pilhas de corpos nus e pele esticada ao extremo.
Dentro do campo restavam perto de 30 mil almas ainda perambulantes.
Segundo narrativas históricas, quando
quatro oficiais alemães emergiram das sombras de Dachau empunhando um lenço
branco, o tenente William Walsh os obrigou a se debruçarem sobre uma pilha de
corpos e os executou com a própria pistola . Dezessete outros alemães foram ali
abatidos num descarrego coletivo de metralhadoras que durou 17 segundos.
Nenhuma guerra é bela.
Coube ao general americano Dwight
Eisenhower, comandante supremo das Forças Aliadas (e posteriormente 34º
presidente dos Estados Unidos) a decisão de visitar um campo de concentração
antes mesmo do final dos combates. Por via das dúvidas, fez-se acompanhar dos
estrelados generais George Patton e Omar Bradley. “A evidência visual e o
testemunho verbal de crueldade, inanição e bestialidade foram tão avassaladores
que me senti mal...”, declarou depois. “Fiz a visita deliberadamente, para
poder prestar testemunho de primeira mão caso algum dia, no futuro, surja uma
corrente que queira classificar essas afirmações como mera ‘propaganda’.” A
História e a memória agradecem.
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