Folha de S. Paulo
Capitão da extrema direita foi muito
tolerado até a carestia fazer estrago crítico na popularidade
Um fato notável dos anos Jair Bolsonaro é
que ele foi tolerado; que sua popularidade tenha
chegado a uma situação crítica em boa parte por motivos que teriam
prejudicado até um governante que não fosse tão incapaz, imbecil e cruel.
Isso dá o que pensar a respeito dos riscos
que o país corre daqui até a eleição e depois. Em condições menos azaradas,
haveria mais gente, na massa e ainda mais na elite, disposta a apoiar a
tirania.
Bolsonaro não foi nem ao menos processado. É ainda menor a chance de ser condenado. O criminoso mais contumaz da República, com exceção talvez de generais-ditadores, foi agasalhado pelo sistema político e pela maior parte das elites econômicas. Tem sido apenas toureado pelo Supremo.
Passados 77% de seu mandato, o celerado
ainda fica quase à vontade no cargo, vez e outra alertado de que um inquérito
pode ficar subitamente pronto ou ameaçar alguém do bando. Nada a ver com a via
rápida da deposição
de Dilma Rousseff e da prisão de
Lula da Silva.
Uma vantagem de Bolsonaro é que, em três
anos de mandato, sua popularidade não baixara além de 25%, limiar crítico de
impeachment. Mas o celerado também jamais foi popular.
Na média das pesquisas, teve avaliação
positiva maior do que negativa apenas nos cinco primeiros meses de governo e
em outros
cinco em 2020, quando a economia reabria, a inflação baixara e o auxílio
era grande. Apenas depois de agosto veio a ser tido como péssimo por 55%; nos
dois primeiros anos, a rejeição fora em média de 36%.
A partir de janeiro de 2021, o prestígio de
Bolsonaro passou a diminuir quase no mesmo ritmo em que a inflação superava os
salários. Decerto já tinha ficha suja. Sempre é possível especular que a
inflação tenha sido a gota d’água.
A maior parte da inflação pouco teve a ver
com Bolsonaro. Foi resultado de tempo ruim, que afetou agricultura e produção
de eletricidade, da crise mundial de energia, da escassez
de insumos industriais, dos preços da Petrobras e da desvalorização do
real, a maior do mundo na epidemia.
O real costuma levar tombos extraordinários
até pelas características dos mercados financeiros daqui. Mas a moeda
brasileira rolou ladeira abaixo por causa da dívida pública alta, talvez sem
limite depois do choque da epidemia.
A contribuição marginal de Bolsonaro veio
do fato de o governo não ter rumo econômico, de vestir uma fantasia palhaça
sinistra de reformas e criar tumultos (como comícios golpistas). A zorra
derradeira foram o 7
de Setembro golpista e a derrubada do teto de gastos de modo picareta
e inepto, que provocou disparada de juros. Mas o grosso do dinheiro tinha dado
o fora antes.
Enfim, o tumulto permanente e a ralé que
Bolsonaro nomeou para o governo devem ter alimentado a incerteza que solapou a
despiora econômica rápida que ocorria até o início de 2021.
Sim, a inflação ganhava fácil a corrida de
salários mirrados por causa também de problemas estruturais, do crescimento
cronicamente baixo, piorados pelo trauma de anos de depressão do PIB e
precarização do trabalho. Há agora quase tanta gente trabalhando quanto em
2019, mas ganhando menos, em empregos
tão improdutivos e inseguros quanto os do fundo da recessão de 2016.
Bolsonaro nem ao menos é pragmático, mas
líder de seita, déspota ensandecido. Faz questão de levar adiante seu plano
reacionário, mortífero e discriminatório mesmo que perca votos. É isso que a
maior parte da elite aceitou em troca de umas ditas "reformas" e de
colocar o povo na coleira (com ameaça de violência militar ou miliciana). A
inflação talvez tenha nos salvado. Os famintos e os mortos da peste serão
nossos mártires.
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