O Globo
A versão de Darcy Ribeiro do povo
brasileiro corresponde a um novo modo de ver esse país e a gente que o constrói
Existem várias maneiras de se falar de um
país. Mas são poucos aqueles dos quais podemos falar falando de uma civilização
especial, uma civilização original que eles por acaso representam. Nosso país
começou a ser assim tratado com o Modernismo, um movimento antes de tudo
literário e artístico que marcou o jeito de pensarmos sobre nós mesmos.
Mário e Oswald de Andrade, assim como Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Jorge de Lima e alguns outros foram, a partir de 1922, marcos indiscutíveis de nossa história cultural. Eles apontaram para um outro modo de narrar nossa História, de ver nosso povo, de discutir seus valores. Como se estivéssemos construindo uma inédita civilização que serviria ao mundo num momento em que o mundo caminhava para se dividir entre formas igualmente autocráticas de pensá-lo. Nenhuma delas conveniente a nosso futuro de povo por nossa conta.
Em fevereiro de 2022, a partir portanto de
terça-feira, estaremos celebrando o primeiro centenário do nascimento dessa
experiência única. Única não apenas em referência à história de nossa cultura,
mas também como experimento de uma nação como a nossa em âmbito universal.
Infelizmente vivemos, nesse momento, uma experiência política que é a negação
desse sonho libertário, que é a negação dessa proposta de uma nova, igualitária
e moderna civilização. O triste tempo bolsonarista é incapaz de celebrar os
tempos mais felizes de criação.
Quem inaugurou essa reflexão, essa
revelação de um país desconhecido para o mundo inteiro foi o pernambucano
Gilberto Freyre, com “Casa-grande e senzala”. A Gilberto Freyre se seguiram
escritores da mesma cepa, ansiosos por entregar o que já sabiam do Brasil,
loucos por organizar suas ideias sobre nós. Podemos encerrar uma farta lista de
pensadores modernistas com nomes como Roberto da Matta e Darcy Ribeiro.
Cruel e absurdo mesmo é tomar conhecimento
do comportamento de jornalistas, colaboradores de um jornal como a Folha de S.
Paulo, de estarem apoiando restrições ao texto de Antonio Risério sobre o
“racismo reverso”, propondo censura ao que escreveu. Uma coisa é não concordar
com o que Risério diz, um direito de todos. Outra, a violência do desejo de
praticar censura sobre o que convém ou não convém publicar. O que não convém
publicar só pode ser o que não foi dito ou escrito, o que não foi pensado por
ninguém, o que não existe.
Sempre tive enorme admiração por Darcy
Ribeiro. Aprendi a amá-lo e respeitá-lo desde que o li e conheci. E depois,
quando convivi com ele por um curto espaço de tempo no exílio. No final dos
anos 1990, quando ele retornou muito doente para morrer no Brasil, eu e mais
dois colegas do antigo movimento estudantil, ligados agora ao cinema, fomos
visitá-lo em Maricá, onde ele vivia seus últimos dias.
Recebo hoje a bela homenagem que a
Prefeitura de Maricá lhe presta, publicando um belíssimo livro de 720 páginas,
“Darcy Ribeiro em Maricá, a utopia é aqui”, com curadoria de Gringo Cardia e
coordenação editorial de José Ronaldo Cunha e Bete Capinam. Um livro com textos
e imagens que Darcy certamente selecionaria. O autor de “O povo brasileiro” recebe
assim uma homenagem póstuma merecida.
Darcy Ribeiro é um daqueles autores fundamentais aqui citados. Sua versão técnica e afetiva do povo brasileiro corresponde a um novo modo de ver esse país e a gente que o constrói, sem se submeter aos critérios de pensadores que não sabem nada de nós. Um dia, poderemos olhar com orgulho para o que realmente somos como está no livro de Darcy: “Através de um persistente esforço de elaboração de sua própria imagem e consciência, como correspondentes a uma entidade étnico-cultural nova, é que surge e ganha corpo a brasilianidade”.
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