O Estado de S. Paulo
O presidente do STF passou a ter poder de
soltar e prender quem bem entende em território nacional
O somatório de premissas verdadeiras nem
sempre conduz a uma conclusão válida. Este é o caso do artigo subscrito pelo
procurador-geral de Justiça do Rio Grande do Sul, Caso Kiss: condenação, prisão
e atuação do STF, publicado no início de janeiro.
As premissas do artigo podem ser assim
resumidas: as decisões do júri são soberanas, o pacote Anticrime introduziu a
possibilidade da prisão logo após a condenação no júri, e seria, neste caso,
uma afronta ao prestígio do Supremo Tribunal Federal (STF) submeter suas
decisões a escrutínio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
A soberania das decisões do tribunal do
júri decorre diretamente do princípio do double jeopardy do direito
anglo-saxão: que nada mais é do que a garantia de que ninguém será levado a
julgamento duas vezes pelo mesmo fato.
É uma garantia do réu, proteção de que, uma
vez absolvido, não poderá ser julgado novamente. Não vale para a acusação.
O leitor, no entanto, arriscaria um palpite
acerca de quem é o campeão dos recursos que anulam decisões do júri? Advogados
renomados? Defensorias públicas? Não. O campeão é o Ministério Público. Recorre
quase sempre. E muitas vezes ganha.
Causa estranheza o Ministério Público
invocar agora uma soberania popular do júri em relação à qual raramente aceita
se curvar.
Quanto ao “Pacote Anticrime”, tem razão o artigo ao dizer que a lei de 2019 criou a possibilidade de réus serem presos imediatamente após o júri, se a pena for igual ou superior a 15 anos. O respeitado articulista só esqueceu de informar que o STJ vem julgando sistematicamente pela inconstitucionalidade da regra, além de a própria lei prever a possibilidade de suspensão da prisão se, de plano, puder ser verificada a plausibilidade do recurso da defesa.
Foi exatamente o que ocorreu no caso da
boate Kiss.
O que realmente não encontra previsão legal
é a decisão do ministro Luiz Fux. Sim, pois a lei usada para este fim
claramente não se aplica a processos de natureza penal. Não cabe aqui sequer
interpretação. A lei é explícita. “Ah, mas tem um precedente do próprio STF em
caso semelhante.” Perfeitamente. Fux não inventou o erro. O que não significa
que esteja certo. Esta premissa só permite ir até aqui.
Restariam os argumentos de direito
internacional, como o de que a decisão do ministro Fux atende à orientação da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos “no que diz respeito ao combate à
impunidade”.
A impunidade, sempre ela, a justificar
qualquer demando... Será que a CIDH permite que os países subscritores do
tratado de direitos civis e políticos subvertam a regra do jogo em nome do
combate à impunidade?
O combate à impunidade é um dever do Estado
e deve ser alcançado com políticas públicas, equipando suas polícias, criando
mecanismos de investigação eficientes (no Brasil, 95% dos homicídios não vão a
julgamento porque a polícia não consegue sequer indicar um suspeito) e
permitindo julgamentos em tempo razoável.
Em nenhum tratado ou decisão de órgão
internacional está escrito que, quando um Estado não consegue combater a
impunidade por meio de medidas como as indicadas acima, está autorizado a
descumprir a lei para sair prendendo pessoas antes do que prevê as normas de
direito interno.
Tanto os pactos internacionais, a
Declaração Universal de Direitos do Homem, o Pacto de San Jose da Costa Rica,
como a própria Constituição Federal de 88 criam limites ao poder de punir e de
prender. Raramente criam limites tão vinculados à garantia das liberdades.
Ou seja, em um Estado Democrático de
Direito, nascido das cinzas e dos escombros produzidos por Estados autoritários
e arbitrários no tratamento dado às liberdades individuais, a preocupação é
muito maior com os freios ao poder de polícia do que com a possibilidade de
concessão de habeas corpus.
A ordem jurídica de qualquer país
democrático tem muito mais preocupação em garantir liberdades do que garantir
prisões.
É por isso que por meio do habeas corpus
uma defesa pode conseguir chegar no STF contra a decisão liminar de
desembargador de Corte estadual, algo que nunca se cogitou permitir, se o
objetivo for o inverso, ou seja, colocar alguém atrás das grades. E mesmo a
defesa de acusados só pode dar este salto de instâncias em hipóteses
excepcionalíssimas, já que uma súmula da Suprema Corte o proíbe.
Além de promover um salto de instância que
a própria Corte proíbe, a decisão do ministro Fux foi ainda mais além.
Simplesmente proibiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
(TJRS), o STJ e seus próprios pares no STF, de apreciarem a legalidade da
prisão.
No frigir dos ovos, o presidente do STF
passa a ter poder de soltar e prender quem bem entende em território nacional.
Nem nas piores ditaduras há tamanho poder concentrado nas mãos de um único
homem.
Num ponto, enfim, devemos concordar. A
decisão causará um enorme desprestígio ao Brasil perante a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos.
*SÃO ADVOGADOS
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