Valor Econômico
Os governos estão intervindo para resistir
à depreciação de suas moedas. Já assistimos a esse filme
A The Economist anuncia: “O dólar está
esmagando todos os parceiros. O greenback subiu 5,5% desde meados de agosto, em
parte porque o Fed está elevando as taxas, mas também porque os investidores
estão se afastando do risco... Os governos estão intervindo para resistir à
depreciação de suas moedas”.
Já assistimos a esse filme. Vamos começar tropeçando com a crise da dívida do Terceiro Mundo em 1982 - aquela que o sábio Walter Wriston, então presidente do Citi, garantia que não podia acontecer. Esse tropeção foi desferido pela elevação dos juros, decidida por Paul Volcker em 1979. O FMI e o governo Reagan salvaram os credores de maior porte. Deixaram a quebradeira para a periferia imprudente. O Brasil puxou a fila.
Em 1986, as Saving and Loans, outrora
circunscritas às hipotecas, aproveitaram a desregulamentação para curtir amor
em terra estranha, como o inesquecível Osmar Santos, um clássico da narração
esportiva, qualificava a situação do jogador pilhado em impedimento. As
associações de poupança e empréstimo lambuzaram-se na especulação com títulos
de alto risco. Quebraram. Foram socorridas pelo papai Estado.
Em 1987, o Federal Reserve impediu a
propagação do crash da Bolsa de Nova York com uma injeção generosa de liquidez.
O ‘program trading’ havia derramado nos mercados um caudal de ordens de venda,
aparentemente desencadeadas por declarações infelizes sobre o curso do dólar
pelo então secretário do Tesouro dos Estados Unidos, o arrogante e inoportuno
James Baker.
No Acordo do Louvre, também em 1987, os
Estados Unidos impuseram ao Japão a valorização do yen, a endaka. Sob pressão
de Tio Sam, o país entrou na farra da desregulamentação financeira. Saboreou
inicialmente as delícias de uma bolha imobiliária e outra no mercado de ações.
A curtição durou pouco. Em 1989, os preços dos imóveis e das ações despencaram
e deixaram os bancos japoneses encalacrados em créditos irrecuperáveis. O Bank
of Japan cortou os juros a zero. Não adiantou. Os japoneses curtiram dez anos
de estagnação.
Logo depois, os mercados castigaram a libra
valorizada com um ataque comandado pelo filósofo-especulador George Soros. Não
satisfeita, a turma da bufunfa, em 1993, cismou com a serpente monetária
europeia: castigou a lira italiana e a peseta espanhola.
Na sequência, nos idos de 1994, Alan
Greenspan surpreendeu o aquecido mercado global de bônus com uma elevação da
policy rate. O grosso das perdas atingiu, mais uma vez, um emergente
descuidado: no fim de 1994, o mundo presenciou atônito uma nova derrocada do
peso mexicano. Ação pronta do FMI e do Tesouro salvou os bancos americanos
carregados de Tesobonos (títulos do governo mexicano denominados em dólares). O
socorro de Tio Sam aos bancos de seu país impediu uma nova moratória no
território abaixo do Rio Grande.
Depois, uma sequência trágica: a crise
asiática iniciada na Tailândia, em 1997, contaminou os incautos. Em 1998, o
Brasil e a Rússia foram tragados no redemoinho da finança desregulada. Ainda em
1998, o hedge fund administrado pelos ganhadores do Prêmio Nobel Merton e
Scholes entrou na rota da quebra. Os sabidos apostaram na convergência entre os
preços dos bônus do governo dos EUA e papéis semelhantes do governo russo. Como
o movimento esperado de preços não se verificou, os cientistas fogueteiros,
acossados pelas chamadas de margem, tiveram de botar grana no negócio à medida
que os preços dos ativos se afastavam da direção imaginada pelos jogadores.
Para cumprir essa obrigação, os bacanas foram forçados a "buscar
liquidez" mediante a venda de ativos, provocando uma queda de seus preços.
O Fed teve de intervir, obrigando os bancos financiadores a sustentar a
liquidez dos especuladores, com o propósito de evitar uma crise sistêmica.
A euforia com as ações da nova economia das
dotcom dos anos 90 vai à breca em 2000, mas o maníaco soprador de bolhas, Alan
Greenspan, baixa rapidamente o juro básico. Com isso, dá curso à super-bolha de
ativos, agora sob o patrocínio dos empréstimos hipotecários e da sanha dos
consumidores. Joga às alturas os preços das residências.
No ciclo recente encerrado em 2008, o
circuito crédito-riqueza-consumo teve como “fundamento” a valorização dos
imóveis residenciais e terminou na superalavancagem dos novos instrumentos
financeiros. “Originados” na concessão de empréstimos hipotecários, os ativos,
filhotes da criatividade dos mercados, eram “carregados” pelos fundos e
bancos-sombra, avaliados pelas agências de classificação de risco e garantidos pelas
seguradoras de crédito. O maior peso da riqueza financeira na riqueza total foi
acompanhado pela concentração crescente da massa de ativos mobiliários sob
controle de poucos fundos mútuos, fundos de pensão e de hedge. Os
administradores desses fundos ganharam poder na definição de estratégias de
utilização da “poupança” e do crédito.
A abertura das contas de capital suscitou a
disseminação dos regimes de taxas flutuantes e o crescimento dos instrumentos
de hedge, diante da volatilidade das taxas de juro e câmbio. A “securitização”
dos empréstimos bancários alimentou os mercados secundários. O uso dos
derivativos impulsionou os contratos futuros de câmbio.
Isso, em vez de atenuar, ampliou as
flutuações de preços e os riscos de liquidez nos mercados financeiros. As
crises foram amplificadas pelas regras da marcação a mercado e pelas operações
alavancadas que contemplam chamadas de margem. As quedas dos preços são
acentuadas, porquanto aceleram as vendas dos ativos mais líquidos para cobrir
as perdas. Quanto mais cai, mais afunda.
No topo da pirâmide da distribuição da
riqueza e renda, os credores líquidos apropriam-se de frações cada vez mais
gordas da valorização dos ativos financeiros. Os vencedores e perdedores
dividem-se em duas categorias sociais: no topo os que, ao acumular capital
fictício, gozam de “tempo livre” e do “consumo de luxo”. Na rabeira os que se
tornam dependentes crônicos do endividamento, permanentemente ameaçados pelo
desemprego e, portanto, obrigados a competir desesperadamente pela sobrevivência.
*Luiz Gonzaga Belluzzo é
professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e professor emérito da
Universidade Federal de Goiás.
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