O Estado de S. Paulo
Para entender o poder no Brasil, não adianta nada olhar para os Estados Unidos. Vale mais olhar para a Argentina
Um velho editor de revistas, já falecido,
costumava dizer que, se você quer saber o que vai acontecer com o mercado
editorial no Brasil daqui a dez anos, basta olhar para o mercado dos Estados
Unidos agora. Seguindo sua máxima, tomou decisões acertadas – errou algumas
vezes, é verdade, mas acumulou um saldo para lá de positivo.
Quanto à política, o espelhamento diferido não dá certo. O que se passa na terra de Tio Sam hoje não se repetirá na Terra do Sol amanhã. Aqui, Deus e o diabo se engalfinham por outras vias. É fato que, de uns tempos para cá, a estupidez do trumpismo tem servido de trailer para a boçalidade bolsonarista, mas, neste caso, o que existe é mera imitação: os seguidores do presidente da República – este que aí ainda está, embora já não esteja – são apenas um plágio repugnante dos supremacistas brancos que invadiram o Capitólio, mais ou menos como as chanchadas da Atlântida eram uma paródia feliz do cinemão de Hollywood.
Isso posto, expliquemos. O mercado
editorial brasileiro, especialmente na segunda metade do século 20, seguiu o
modelo que dava certo em Nova York e adjacências: copiou o organograma das
empresas, as soluções gráficas e até os manuais de estilo. Donde, se você
precisa antecipar uma tendência ou outra do mercado editorial, vale a pena
buscar exemplos nos Estados Unidos. Já no universo da política, é tudo
diferente: a forma dos partidos de lá não se compara com a bagunça tropical,
isso sem falar nas regras eleitorais, nas convicções religiosas de fundo, nas
colorações do racismo, na cultura. Logo, para entender o poder no Brasil, não adianta
nada olhar para lá.
Vale mais olhar para a Argentina.
Calma, não vá se irritar. Não resolve nada
virar com raiva a página do jornal e mudar de assunto. Gostemos ou não, há mais
de Buenos Aires em Brasília do que sonha a nossa petulância colonizada. Os hermanos tiveram
peronismo lá, a gente teve getulismo aqui. Nós tivemos ditadura militar, eles
também. Kirchnerismo lá, lulismo aqui. Sim, todo mundo sabe que são coisas
distintas, por supuesto, mas, Madre de Dios, como são parecidas – são
parecidas, sobretudo, quando contrastam.
Isso não significa que, olhando a cena
política portenha, a gente vislumbre o que se vai dar conosco no futuro
próximo. O que existe entre os dois países é uma identidade crispada,
canhestra, que gera uma aderência geral por meio de traços que, isoladamente,
se repelem. É como se fôssemos rascunhos invertidos uns dos outros – rascunhos
que nunca chegaram a uma versão definitiva do que quer que fosse. Brasil e
Argentina se irmanam pelo que discrepa, pelos opostos; acima de tudo, irmanam-se
porque padecem de tormentos análogos (homólogos) que não se resolvem jamais.
Presentemente, muitos de nós, brasileños,
temos visto com gosto o filme Argentina, 1985 (disponível, por
enquanto, na Amazon Prime). Dirigido por Santiago Mitre e estrelado por Ricardo
Darín, o longa-metragem mostra o julgamento que, em 1985, condenou a cúpula das
Forças Armadas por graves violações dos direitos humanos durante a ditadura
(1976-1983). Crimes de sequestro, tortura, assassinato e ocultação (em massa)
de cadáveres foram expostos e comprovados no tribunal. Por mérito do acusador,
o promotor público Julio Strassera (Darín), a Justiça mandou para a cadeia
tiranos de alta patente, entre eles Rafael Videla. (Pouco tempo depois, em
1990, Videla foi posto em liberdade pelo presidente Menem, mas, em 1998, voltou
a cumprir sua prisão perpétua. Morreu encarcerado em 2013.)
O filme é uma beleza. Ganhou o Prêmio da
Crítica no Festival de Veneza e deve brilhar no Oscar do ano que vem. Com
narrativa linear, a ponto de ser didática, segue o que os cinéfilos chamariam
de “decupagem clássica”: tem começo, meio e fim, necessariamente nessa ordem.
Os figurinos, os cenários e até os automóveis restauram vivamente o visual do
ano em questão, tudo com naturalidade, sem afetações. Graças a uma produção
meticulosa e mesmo obsessiva, a gente volta quatro décadas no tempo – e
agradece.
Para o espectador brasileiro, porém, o
ponto alto não são os esmeros plásticos, mas o sentido político da obra. O que
dá liga é o contraste. Ao longo da sessão, a gente se pergunta sem parar: por
que lá, na Argentina, eles puseram os comandantes da tortura atrás das grades
e, aqui, a gente passou pano?
Certamente, há teorias diversas e
pertinentes. “É que na Argentina o ponto de equilíbrio é outro”, disse certa
vez um crítico literário de São Paulo. De fato, aqui existe uma tara
considerável por acochambrar o inconciliável, por anistiar o inanistiável. No
Brasil, parece que até o Estado, como se fosse pessoa física, é merecedor de
perdões, de indultos e de tapinhas nas costas. A impunidade impera como a única
receita de pacificação.
E agora? Qual a moral deste artigo aqui?
Qual o caminho mais acertado: punir ou esquecer? Desgraçadamente, tanto faz. O
pior de tudo é que dá na mesma. Os dois rascunhos, Brasil e Argentina, divergem
quanto aos roteiros para se igualar no desfecho: no final, dão igualmente
errado. Tudo termina mal, até quando recomeça.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Um comentário:
Ia bem (mais ou menos bem...).
Mas 'paquitou'...
Paquita do Lazaro Baez
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