Projeto sobre lobby é apenas primeiro passo
O Globo
Texto aprovado pela Câmara traz avanços,
mas terá de ser aperfeiçoado no Senado
O projeto de regulamentação do lobby
aprovado pela Câmara não é uma obra acabada e precisará receber novas
contribuições dos senadores. O importante é não deixar passar a oportunidade de
estabelecer regras que tirem a atuação dos lobistas das sombras de Brasília.
Assim como tem sido essencial a Lei de
Acesso à Informação (LAI) para que a sociedade saiba de decisões do poder
público acobertadas sem justificativa pelo sigilo, também é preciso que se
saiba que interesses são defendidos em Brasília, por quem e a que custo.
A formalização da atividade de lobby poderia ter ocorrido há mais de 30 anos, quando o ainda senador pernambucano Marco Maciel, antes de ser vice do presidente Fernando Henrique Cardoso, defendia no Congresso o reconhecimento legal da atividade. Seu projeto foi aprovado em 1990 e enviado à Câmara, onde foi engavetado.
O projeto atual teve como base uma proposta
de 2007, apresentada pelo deputado Carlos Zarattini (PT-SP) e alterada pelo
relator, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), para atender a organizações
não governamentais que reclamaram da existência de penalidades para quem “atuar
de forma a constranger ou assediar participantes de eventos” ou “prejudicar ou
perturbar reuniões” — dispositivos que eram mesmo jabutis sem cabimento.
É um avanço a exigência do texto de que se
dê publicidade à agenda dos lobistas, a suas reuniões com representantes do
poder público, incluindo informações sobre os participantes. Mas o que foi
aprovado na Câmara não tem a mesma abrangência da legislação dos Estados
Unidos, onde a primeira lei sobre lobby entrou em vigor em 1946. Os americanos
exigem que o lobista gere arquivos sobre suas atividades e os mantenha abertos
à consulta de qualquer um. Se uma empresa registra alguém para defender seus
interesses, todos os demais empregados passam a estar subordinados à legislação
do lobby, principalmente na prestação de contas de seus atos. Também há uma lei
específica para lobistas estrangeiros.
No Brasil, pelo texto aprovado, os lobistas
serão registrados na Câmara, no Senado e nas instituições públicas em que
atuarão. Será proibido oferecerem bens e vantagens a qualquer agente público
com quem tenham contato. Abrem-se exceções para itens de baixo valor e à
“hospitalidade legítima” — despesas com transporte, alimentação e hospedagem
para cursos e eventos, pagas diretamente ao prestador do serviço e não ao
agente público. Quanto a punições, o servidor público pode ser exonerado, e o
lobista suspenso ou multado.
Mesmo que o Brasil seja um país
especializado em produzir leis e normas para nem sempre cumpri-las, é imperioso
enfrentar o desafio de regular o lobby, atividade que existe em qualquer
sociedade e precisa estar sujeita a regras de transparência que coíbam os
conflitos de interesse e o toma lá dá cá subterrâneo. Jogar luz na atuação do
lobista, recomenda a própria Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), é o melhor a fazer num regime democrático.
Aumento salarial do novo governador
paulista é péssimo exemplo para o país
O Globo
Reajuste desencadeará efeito-cascata na
elite do funcionalismo e encorajará outros estados a aumentar salários
Antes mesmo de assumir, o governador eleito
de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), apoiou a articulação na
Assembleia Legislativa para aumentar seu futuro salário em 50%, para R$ 34.500.
Se fosse uma ação isolada, já seria um desrespeito aos milhões de paulistas que
procuram empregos ou vivem há muito com os mesmos vencimentos. Mas é pior. A
decisão dos deputados estaduais paulistas desencadeia um efeito cascata, pois
eleva o teto salarial da elite do funcionalismo estadual.
Não por coincidência, o movimento em favor
da mudança foi encabeçado por auditores e policiais, interessados apenas no
crescimento dos valores dos próprios contracheques, sem levar em conta o
impacto bilionário nas contas públicas. Infelizmente, o exemplo paulista deverá
encorajar movimentos semelhantes noutros estados, e isso exigirá melhor
discernimento dos governadores reeleitos ou eleitos.
É verdade que os salários dos servidores
estaduais estão há muito sem reajuste, mas isso não quer dizer que todos
estejam em situação de penúria. Certamente não aqueles incomodados com o teto
anterior de R$ 23 mil em São Paulo. Caso estivesse interessado em cuidar dos
funcionários em situação de maior necessidade por causa da inflação alta,
Tarcísio teria concentrado seus esforços na melhoria dos salários de quem ganha
até R$ 4 mil. Preferiu sucumbir aos choramingos dos funcionários mais ricos. O
aumento para os demais ficou como promessa.
Além de socialmente injusta, a decisão de
privilegiar as carreiras de prestígio é injustificada do ponto de vista dos
recursos humanos. Não há notícia de uma debandada para a iniciativa privada,
nem de aumentos de produtividade que justificassem mudanças salariais. Os
vencimentos foram corroídos pela inflação, mas continuaram comparativamente
altos em relação aos da iniciativa privada.
Antes de mais governadores eleitos seguirem
o exemplo paulista, seria salutar uma reflexão. Vistos conjuntamente, estados e
municípios terminaram o ano passado com R$ 140 bilhões em caixa e R$ 78 bilhões
de superávit primário. Há 14 anos não se via resultado tão impressionante. Tal
situação permitiu a retomada de obras e a melhoria de uma série de serviços
públicos. O novo protagonismo dos governos estaduais foi uma marca dos últimos
tempos. Como se chegou a isso? Controlando a despesa com servidores, o
principal problema das finanças de estados e municípios.
Em 2020, quando o país vivia os primeiros meses da pandemia, a lei que criou o Auxílio Emergencial vedou aumentos salariais, progressões automáticas e a criação de gastos obrigatórios de caráter continuado. Em 2020, houve queda real de 7% nas despesas com pessoal. No ano seguinte, a redução foi de 5%. Os governadores empossados em janeiro têm uma decisão a tomar. Querem voltar a fazer romarias rumo a Brasília atrás de recursos enquanto atrasam salários e ficam sem verbas para hospitais, escolas e outros serviços? Ou preferem manter as finanças públicas em ordem?
Ambiente ruim
Folha de S. Paulo
Desmatamento cai 11%, mas Bolsonaro
consolida patamar anual acima de 11 mil km
Não há boa notícia no dado de desmatamento
anual na Amazônia anunciado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(Inpe) nesta quarta-feira (30), em que pese ter ocorrido diminuição da
taxa. Foram ao chão
11.568 km² de florestas, recuo de 11% sobre os 13.038 km² da estatística
anterior.
Consolidou-se o patamar de corte raso, na
porção brasileira da maior floresta tropical do mundo, acima de 10.000 km² ao
ano. As áreas devastadas vinham subindo paulatinamente no segundo governo de
Dilma Rousseff (PT) e no de Michel Temer (MDB), mas desde 2008 não se
alcançavam os cinco dígitos.
No péssimo ambiente legado por Jair
Bolsonaro (PL) e seu infame ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, deu-se o
retrocesso no momento em que a atmosfera do planeta Terra mais precisaria que o
desmate retrocedesse. A destruição dessa biomassa, afinal, é a maior fonte
brasileira de emissões de gases do efeito estufa.
O primeiro presidente pós-redemocratização
a não ser reeleito deixa em seu rastro um total de 45.586 km² de devastação no
período compreendido entre 2018-2019 e 2021-2022 (o cômputo do Inpe se faz de
agosto a julho de cada ano). Sua média anual foi de mais de 11 mil km², alta de
60% sobre o quadriênio anterior, de acordo com o Observatório do Clima.
Não surpreende que o governo federal mais
uma vez tenha recorrido à sonegação de informações às vésperas de uma COP (a de
número 27, no Egito, encerrada em 20 de novembro). A nota técnica do Inpe traz
a data de 3 do mês passado, mas o Planalto segurou o dado por quatro semanas,
como se isso pudesse diminuir-lhe a gravidade.
O atual titular da área, Joaquim Leite,
teve o desplante de dizer à Folha, na COP27, que não fazia ideia da taxa
do Inpe. Evasiva, possivelmente, ou um ministro desinformado, na melhor das
hipóteses.
Não que ele ou Bolsonaro parecessem
preocupados com a posição de párias internacionais. Tanto é que Leite deixou
a conferência egípcia no momento mais crucial da negociação,
reafirmando o descaso com a história de protagonismo do Brasil no esforço
planetário para conter o aquecimento global.
A cada ano que passa, a janela para conter
o pior da mudança climática se estreita, e cabe a cada país —mormente o Brasil,
que pode reduzir emissões ao mesmo tempo em que preserva seu patrimônio de
biodiversidade— contribuir para evitar eventos climáticos que já vão
desgraçando contingentes crescentes.
O governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que assume tendo a seu favor expectativas favoráveis da comunidade internacional, não deixará de enfrentar um desafio hercúleo também nesse caso.
Caldeirão chinês
Folha de S. Paulo
Política de Covid zero leva população do
país a lutar como nunca por liberdade
Os protestos que agora ocorrem na China
representam um
ingrediente novo no panorama geopolítico global. Trata-se de um
movimento amplo e generalizado contra o governo central e uma de suas políticas
definidoras: a estratégia Covid zero. Há, inclusive, clamor pela destituição do
todo-poderoso Xi Jinping e por liberdade política.
Até agora, a máquina repressora
chinesa contém os
protestos com prisões e abertura de inquéritos contra manifestantes,
e tudo leva a crer que o regime reforçará as medidas de vigilância e de censura
em vigor há décadas no país.
Não há dúvida de que a política de
lockdown, no início da pandemia, quando não havia vacinas, era uma boa
estratégia. A China conseguiu não apenas evitar altas taxas de mortalidade
vistas em países mais ricos como também sofreu menor impacto na economia.
Mas o perfil da pandemia mudou nos últimos
dois anos. As vacinas funcionam de modo eficaz, e o vírus evoluiu para formas
mais infecciosas que, entretanto, têm causado menos mortes. O problema é que o
governo de Pequim, como todo regime ditatorial, tem enorme dificuldade para
reconhecer erros e mudar rotas, caso necessário.
Os lockdowns, pelos custos psicológicos e
econômicos impostos à população, deixaram de ser a melhor receita. Porém o
gigante asiático não levou adiante os ajustes adotados por outras nações.
Para não dizer que Pequim age de modo
totalmente irracional, há particularidades da epidemia na região que ensejam
dúvidas. Com 1,4 bilhão de habitantes, o país vacinou bem, mas há falhas de
cobertura em algumas faixas demográficas sensíveis, como a dos idosos.
Além disso, dado o sucesso inicial da
estratégia, o vírus pouco circulou pelo país, o que, paradoxalmente, contribui
para que a população local tenha hoje menos imunidade do que a de nações onde
se registrou uma combinação de vacinação com infecção natural.
Quaisquer que sejam as dúvidas da liderança
chinesa, o fato é que não é possível viver em lockdown para sempre, como a
população demonstra nos protestos. Providências para substituir a Covid zero
por outras medidas já eram necessárias havia algum tempo.
Já a oposição percebeu que um amplo movimento de contestação ao regime não é um cenário tão irrealizável assim. A atual onda de desobediência civil mostra que a China não é mais imune a crises políticas. Isso pode mudar o jogo.
O BC deve honrar sua autonomia
O Estado de S. Paulo
Além de controlar a inflação, BC precisa
zelar pela estabilidade da economia e usar seu poder de comunicação para
gerenciar as expectativas do mercado, seja qual for o governo
As dúvidas acerca da política econômica que
vai nortear as ações de Lula da Silva se refletem nas cotações do dólar, nos
juros e nas ações das empresas negociadas em bolsa, mas o período de transição
entre um governo que ainda não se foi e outro que, todavia, não assumiu conta
com um importante ponto pacífico. É a primeira vez que o Banco Central (BC) não
é uma fonte de incertezas, algo nada trivial considerando nosso histórico
econômico e a bélica campanha presidencial.
O Banco Central obteve autonomia por meio
de uma lei complementar sancionada em fevereiro de 2021, debatida por dois anos
na Câmara e no Senado. Não foi a primeira tentativa de formalizar a
independência da autoridade monetária. A lei que criou o BC, de 1964, concedia
autonomia e mandatos fixos aos seus diretores, mas seus termos foram
abandonados já na ditadura militar. Nos últimos 30 anos, muitas iniciativas que
visavam ao resgate dessas condições foram apresentadas pelo Congresso, sem
sucesso.
A nova lei garantiu mandatos de quatro anos
ao presidente do BC e a seus diretores, em ciclos não coincidentes com a gestão
do presidente da República, reconhecendo o papel do Banco Central como
instituição de Estado e sua autoridade na busca de seu objetivo fundamental: o
controle da inflação. Nesse sentido, foi bastante simbólico que o BC tenha
iniciado a fase de aumento da Selic um mês após a sanção da lei – a título de
comparação, nos Estados Unidos, o Federal Reserve (Fed) o fez somente um ano
depois.
Também é digno de nota que a trajetória
ascendente da Selic tenha sido mantida até os atuais 13,75% ao ano, expondo o
descompasso entre a prudente política monetária do BC e a eleitoreira política
fiscal de Jair Bolsonaro. A inflação permanece fora da meta e enseja cautela,
mas é fato que desacelerou. O próprio presidente do BC, Roberto Campos Neto,
disse que o comportamento dos preços em nível mundial parece ter atingido um
pico e aparenta tendência de acomodação ou queda, embora em um nível alto.
Tal cenário abre espaço para que o BC possa
fazer jus à autonomia que conquistou e cumprir todos os seus objetivos, entre
eles o de zelar pela estabilidade e liquidez da economia, como reconhecem as
leis de 1964 e de 2021. O lembrete foi dado por José Roberto Afonso, economista
de formação ortodoxa e um dos pais do Plano Real. Em entrevista ao Estadão,
ele disse que a tensão do mercado em relação ao futuro governo não apenas pode,
como deve ser gerida pelo BC.
Segundo Afonso, o País dispõe de cerca de
R$ 2 trilhões para enfrentar a especulação de curtíssimo prazo em torno do
risco fiscal, considerando o volume de reservas cambiais e o colchão de
liquidez do Tesouro Nacional. Esse estoque seria suficiente para honrar
obrigações por quase um ano sem emitir novas dívidas, algo importante no
momento em que o mercado precifica uma taxa de juros de 15% no início de 2023.
Além das operações compromissadas e dos instrumentos cambiais que tem à mão,
Afonso sugeriu que o BC poderia fazer uso de seu enorme poder de comunicação
para acalmar os investidores, o que não se confunde com desafiá-los ou ignorar
os riscos fiscais.
“Se o mercado está nervoso, se isso vai
afetar a gestão da dívida, quem tem que resolver é o Ministério da Economia e o
Banco Central. Se há alguma tensão além do normal, cabe ao BC gerir o câmbio e
cabe à mesa da dívida do Tesouro administrar”, disse Afonso. “Eu confio que ele
(Roberto Campos Neto) vá atuar como presidente do BC”, disse o economista, sugerindo
que o BC, agora autônomo, atua conforme parâmetros que independem do governo
que indicou sua diretoria.
Como destacou Afonso, a tarefa de gerenciar
expectativas do mercado ainda não é de Lula da Silva ou de seu futuro ministro,
mas de um governo prestes a se encerrar e de um Banco Central que, pela
primeira vez, permanecerá além dele. Dado o debate que a entrevista de Afonso
gerou entre economistas nos últimos dias, e diante do contexto de uma autonomia
recém-conquistada, a atuação do BC ganha ainda mais atenção e relevância.
Orgulhosa incivilidade
O Estado de S. Paulo
Bolsonaristas se dizem defensores das
liberdades, mas insultos a Gilberto Gil no Catar comprovam a absoluta
incapacidade dos extremistas de viverem numa sociedade democrática
O cantor e compositor Gilberto Gil é famoso
por suas imensas virtudes artísticas, mas é também conhecido por ser
absolutamente incapaz de fazer mal a alguém. Isso não impediu que um
bolsonarista o importunasse e o ofendesse gratuitamente no Catar, onde o cantor
estava para torcer pela seleção brasileira na Copa do Mundo.
Esse episódio, como tantos outros nos
últimos tempos, comprova a absoluta incapacidade dos bolsonaristas radicais de
viverem numa sociedade democrática. Esses extremistas não conseguem ver o outro
como alguém cujas opiniões devem ao menos respeitar, e sim como inimigo que
deve ser hostilizado e, no limite, eliminado, como, aliás, provam os diversos
crimes políticos cometidos durante a recente campanha eleitoral.
Gilberto Gil é um patrimônio da cultura
nacional. Não é preciso ser fã de sua música para reconhecer seu valor, sejam
quais forem nossas convicções políticas. É perfeitamente possível gostar de Gil
sem concordar com suas ideias ou posicionamentos. Mas bolsonaristas radicais
não conseguem enxergar o mundo fora do cercadinho ideológico do qual são
prisioneiros voluntários. Nesse cercadinho, mesmo um homem gentil e cordato
como Gilberto Gil, aos 80 anos de idade, deve ser vilipendiado como um
criminoso apenas porque é eleitor do petista Lula da Silva. E não basta
humilhar: a cena do assédio deve ser gravada em celular e disseminada nas redes
sociais, para gozo de outros extremistas.
São justamente esses celerados os que hoje
se apresentam como campeões da defesa da democracia e da liberdade de
expressão. No país que eles idealizam, a julgar por suas atitudes, quem não
estiver alinhado incondicionalmente ao bolsonarismo deve procurar outro lugar
para morar – do contrário, sofrerá dia e noite a perseguição de camisas pardas
inconformados com a existência de gente que não pensa como eles. Isso
obviamente não é democracia, muito menos civilização.
Quem hostiliza pessoas públicas em
situações corriqueiras da vida social fere um pressuposto da vida democrática:
o direito à pluralidade de ideias e visões de mundo. Os agressores, e isso vale
também para quem aplaude esse tipo de espetáculo, partem da premissa de que
seria correto intimidar supostos adversários políticos a ponto de
constrangê-los a não sair de casa, sob o risco de sofrerem assédio e humilhação.
Tal princípio é totalmente equivocado, pois ninguém tem o direito de infernizar
a vida alheia − menos ainda se o motivo para isso for de ordem política ou
ideológica.
De novo, é preciso lembrar que a democracia
não só comporta vozes dissonantes, como extrai disso a sua força maior, isto é,
a capacidade de solucionar conflitos por meio do diálogo político − e não da
guerra. Por óbvio, há limites para quem se vale das liberdades democráticas com
o intuito de implodir a democracia. Mas, de resto, as diversas tendências e
expressões do pensamento devem, sim, ser toleradas e ter seu lugar assegurado
na sociedade, desde que respeitem a lei.
Não há nada, numa sociedade civilizada, que
ampare a humilhação pública de quem quer que seja. Logo, é completamente
descabido desrespeitar alguém, seja figura pública ou não, com base em sua
atuação ou preferência política. Agir dessa forma só contribui para calar vozes
e para reduzir o debate público a uma briga de torcidas. É curioso, e não deixa
de ser contraditório, que bolsonaristas extremados, cujos discursos exaltam o
direito à liberdade, protagonizem ou endossem cenas como as registradas no
Catar. Julgar-se autorizado a ofender e atazanar opositores em nome da
liberdade de expressão é prova de rematada ignorância cívica e de inegável
vocação autoritária.
Que ninguém se engane: a sociedade
brasileira só tem a perder com a falta de tolerância e com o desrespeito.
Discordâncias políticas são bem-vindas e ajudam o País a avançar. Divergir, no
entanto, mesmo quando se tem razão, não dá a ninguém o direito de ofender e
tentar calar quem pensa diferente. Cada milímetro de avanço da incivilidade no
Brasil é uma chance a menos para que o País resolva seus impasses e caminhe
rumo ao desenvolvimento social, político e econômico.
Regalia antirrepublicana
O Estado de S. Paulo
A volta do quinquênio para o Judiciário é
acintosa em si e também porque foi decidida pelos beneficiados
A defesa obstinada de privilégios
classistas, prática afrontosa à própria ideia de República, é um dos traços
distintivos de muitas associações representativas de membros do Poder
Judiciário e do Ministério Público.
Em março deste ano, voltou a tramitar no
Senado a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 63/2013, que restabelece o
pagamento do quinquênio, também chamado de adicional por tempo de serviço, a
juízes e promotores. O quinquênio é um aumento automático de 5% dos vencimentos
pagos a esses servidores a cada cinco anos de trabalho. A regalia fora extinta
para servidores do Poder Executivo em 1999 e para membros do Poder Judiciário e
do Ministério Público em 2005.
Como a PEC 63/2013 não foi apreciada pelos
senadores, e ainda não foi definida pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco
(PSD-MG), uma data para a votação, a Associação dos Juízes Federais (Ajufe),
com pressa, achou que era o caso de procurar o Conselho da Justiça Federal
(CJF) para garantir o pagamento do mimo antirrepublicano aos seus associados.
Composto por membros da própria Justiça
Federal – portanto, potenciais beneficiários da decisão –, o CJF, ora vejam,
acolheu o pedido da Ajufe e autorizou a volta do quinquênio. Prevaleceu a tese
da desembargadora Mônica Sifuentes, presidente do Tribunal Regional Federal da
6.ª Região (TRF-6), de que a regalia não poderia ter sido cancelada para juízes
que tivessem um alegado “direto adquirido” ao quinquênio antes da decisão do
Conselho Nacional de Justiça que acabou com este e outros privilégios da
magistratura.
O próprio CJF admite não ter uma estimativa
do impacto financeiro de sua decisão, o que é revelador de sua
irresponsabilidade no trato dos recursos dos contribuintes quando o que está
sobre a mesa é o interesse particular de uma casta de servidores públicos. Mas
um consultor legislativo do Senado, Luiz Alberto dos Santos, calculou, a pedido
do Estadão, que um juiz federal empossado em 1995, por exemplo, poderá
receber nada menos que R$ 2 milhões em quinquênios atrasados, corrigidos pela
inflação. É um descalabro.
Está tudo errado na decisão tomada pelo
CJF, desde a imoralidade do julgado, um inequívoco sinal de que parte dos
membros do Poder Judiciário vive alheia à realidade do País, até aspectos
formais relacionados à própria competência do colegiado administrativo para
esse tipo de decisão. O CJF, vale lembrar, é um órgão de supervisão
administrativa e orçamentária da Justiça Federal, com poderes correcionais
sobre atos dos servidores. Qualquer decisão fora disso, sobretudo a
autoconcessão de vantagens financeiras, é uma exorbitância.
Em um país com milhões de brasileiros desempregados e passando fome, gente que depende da caridade alheia para fazer uma refeição, já seria aberrante escrever na Constituição que uma elite de servidores tem direito a um benefício pecuniário apenas por ter permanecido na função a cada cinco anos. Muito pior quando essa decisão é tomada não por representantes da sociedade e da Federação, mas por representantes dos próprios beneficiários. Isso não pode prosperar.
Salários caíram muito e ensaiam recuperação
Valor Econômico
A melhoria do emprego está desacelerando,
como mostram taxas decrescentes de aumento da população ocupada
Os salários reais dos trabalhadores vêm
levando uma surra em relação ao que eram antes da pandemia. Isso não aconteceu
só no Brasil, mas também no G-20, que agrupa as nações mais ricas do mundo. Os
rendimentos no país caíram com a pandemia, como em quase todo lugar, porém
continuaram caindo quando a economia começou a se recuperar, a partir de meados
de 2020, o que foi mais raro, segundo relatório sobre salários globais
divulgado ontem pela Organização Internacional do Trabalho. O IBGE divulgou também
ontem que o rendimento médio habitual cresceu no trimestre encerrado em
outubro, como já tinha feito no trimestre encerrado em setembro. E mesmo assim,
continua abaixo do registrado no último trimestre de 2019.
A queda da participação dos salários no G-20,
empregador de 60% da mão de obra mundial, foi generalizada. Nunca isso tinha
acontecido antes na compilação da OIT, que começou em 2008. O encolhimento da
renda assalariada no grupo foi de 0,9%, na comparação entre o segundo trimestre
de 2022 e o último trimestre de 2019, antes da eclosão da covid-19. Na verdade,
a redução foi pior e atingiu -1,4% se for excluída a China, que já paga
salários médios mais altos. Outra proeza chinesa foi que o salário real médio
do país é hoje 2,6 vezes maior do que era em 2006. Apesar do recuo mais intenso
dos rendimentos nos países desenvolvidos, sua distância dos emergentes continua
grande: US$ 4 mil ante US$ 1.800.
No período entre o último trimestre de 2019
e o primeiro semestre de 2022, o salário real brasileiro caiu 18,2% e a massa
salarial real, 16%. Os motivos mais óbvios foram o enorme desemprego após a
pandemia, que atingiu mais os trabalhadores informais que os formais, e a
disparada da inflação. Chama a atenção que desta vez a redução dos vencimentos
tenha sido puxada mais pelos homens do que pelas mulheres.
Antes da pandemia, no quarto trimestre de
2019, o salário habitual real do trabalhador brasileiro era de R$ 2.790 e
agora, nos três meses encerrados em outubro, de R$ 2.754. A queda rápida do
desemprego, de 12,6% no terceiro trimestre de 2021 para 8,3% no trimestre móvel
findo em outubro, mostra aquecimento no mercado de trabalho, que começou
claramente a puxar para cima os salários a partir de meados do ano. Com isso,
no trimestre encerrado em setembro, a massa de rendimentos real cresceu 11,1%
sobre os mesmos meses de 2021, crescendo R$ 10 bilhões (de R$ 259 bilhões no
trimestre anterior para R$ 269,5 bilhões agora.
A recuperação dos salários corrobora outros
indicadores econômicos que apontam na direção de um PIB no terceiro trimestre
um pouco mais robusto do que indicavam as expectativas na primeira metade do
ano. Há desaceleração da economia, mas sua intensidade foi até certo ponto
postergada. A grande carga de juros aplicada pelo Banco Central para derrubar a
inflação ainda não produziu seus mais intensos efeitos e tem sido
contrarrestada pela forte quantidade de estímulos dados pelo governo Jair
Bolsonaro, em sua mal-sucedida tentativa de conseguir se reeleger.
Possivelmente, um desempenho mais fraco será a marca do último trimestre do ano
e a primeira queda das vendas da Black Friday pode ser um sinal claro disso.
No terceiro trimestre do calendário (os do
IBGE são móveis), os salário reais mostraram avanço maior fora do eixo Rio-São
Paulo. Cresceram mais no Centro-Oeste (6,8%), em Minas (5,6%), no Sul (5,1%) e
no Nordeste (4,4%) do que o dos trabalhadores fluminenses (0,9%) ou paulistas
(1,8%). A maior taxa de aumento, que deve ter melhorado em outubro, foi a do
Distrito Federal (8,4%), onde o grande empregador é o Estado. Segundo o IBGE, o
número de trabalhadores do setor público bateu recorde no trimestre findo em
outubro, com 12,3 milhões - 1,2 milhão de pessoas a mais que em igual período
de 2021.
A melhoria do emprego está desacelerando,
como mostram taxas decrescentes de aumento da população ocupada e os números do
Caged, que consideram apenas o trabalho formal. Há mais estímulos a caminho,
porém, com o novo governo. Na pior das hipóteses, haverá mais um furo do teto
para não só manter programas sociais como também para algum avanço modesto dos
investimentos. A política monetária e a fiscal seguirão caminhando em direções
diferentes, o que é errado, podendo produzir uma desaceleração não tão forte e
uma queda da inflação menor do que a adequada.
Um comentário:
"Também é digno de nota que a trajetória ascendente da Selic tenha sido mantida até os atuais 13,75% ao ano, expondo o descompasso entre a prudente política monetária do BC e a eleitoreira política fiscal de Jair Bolsonaro."
O genocida foi, inegavelmente, péssimo, mas o BC não cumpriu satisfatoriamente sua obrigação - sua independência, como em tudo neste desgoverno, foi fake. Daí a inflação acima da meta ("A inflação permanece fora da meta").
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