Posta a explicação, vemos que ela não
resolve a questão. Para resolvê-la, do ponto de vista do governo - o
interlocutor que raciocinando bem ou mal, é sempre quem nomeia - não se pode deixar
vago o espaço de Waguinho, diluindo sua identidade num caldo. Ele entrou mudo
no baile, mas não se dispõe a, sendo desconvidado, sair calado. A restrição torna
a troca complexa, gerando diferentes especulações sobre o desfecho ainda
ignorado da trama. O consórcio Lira/Elmar comerá outro peixe ou Waguinho, aceitando
a condição de peixe já frito, vai a outra panela para, na do Turismo, fazer-se
o ensopado. Numa ou noutra hipótese, nos estritos limites do Turismo, Waguinho
e o nada vago consórcio são concorrentes inconciliáveis. Neste ponto, vem à
baila e ao baile o ministério da Saúde – uma incômoda ilha de gestão técnico-científica
e profissional em contexto misto de polarização e acomodações políticas -, seja
como alternativa para sossegar um dos contendores, seja porque aquele “filé”,
por si só, já estaria seduzindo o olho gordo de Lira, segundo rezam outras
especulações, que o personagem alimenta. Sendo assim, o mais lógico e politicamente
mais barato seria dar o Turismo ao consórcio, de porteira fechada – incluindo (para
a alegria incidental de Waguinho) o desembarque do carioca e quase petista
Marcelo Freixo da Embratur - e alocar o azeitado peixe frito nalguma parte do
ministério da Saúde localizada no território fluminense, sem retirar do posto
de ministra a emblemática figura da Dra. Nísia Trindade.
Nesse suposto novo enredo, assentado na estrita
lógica da pequena política, há duas premissas discutíveis e uma delirante,
essa, a denunciar miopia onde se está supondo haver maestria pragmática. As discutíveis – cujo desmentido ou
confirmação pode ficar a cargo de fatos dos próximos dias ou horas – são que
Lira e seus consorciados se contentarão com o Turismo e que o supostamente
plenipotenciário presidente da Câmara leve a sério a hipótese do supostamente
rendido presidente da República ceder-lhe o comando do ministério da
Saúde. Dessa segunda premissa resulta
aquela que chamo delirante, qual seja, que no Brasil de hoje é possível tratar a
Saúde como um assunto exclusivo da pequena política. Se um desatino houver
nessa direção custará caríssimo a quem o cometer.
Fique claro que não se trata aqui de
estigmatizar, como nefastos, acordos políticos que em geral envolvam ocupação
de cargos governamentais. Isso é próprio das democracias. Mas também é próprio
de democracias respeitáveis o insulamento de áreas prioritárias para a garantia
de políticas de Estado. A dramática experiência recente que se teve no Brasil
com a saúde pública não deixa dúvidas de que ela é uma das principais áreas
para se praticar esse insulamento, não só burocrático, como democrático, posto
que amplamente consagrado como tese nas urnas no ano passado. Após a pandemia e
os desastres consecutivos do período Bolsonaro, as ideias de uma gestão
profissional da saúde pública e da orientação da política pela ciência ganharam
legitimidade amplamente majoritária na sociedade e no eleitorado, para muito
além do patamar polarizado de apoio eleitoral a Lula. Inclusive boa parte dos
eleitores do seu concorrente votou nele considerando injusto acusá-lo de
contrariar esse consenso.
Por tudo isso, como frisou Filemon Matos,
ex-deputado baiano e quadro histórico da esquerda democrática, tornou-se
impensável e inaceitável, para a opinião ilustrada e também para o senso comum,
manipulações políticas do tipo da que o noticiário e o colunismo político
especulam. Referia-se à oferta, que seria feita a Waguinho, de trocar o Turismo
pelo controle político-administrativo da rede hospitalar federal do Rio de
Janeiro. Seria a parte do ministério entregue para saciar os apetites dos
aliados fluminenses. Acredito, como Filemon, que a ministra não aceitará, ou
melhor, queremos crer que não. Se admitisse a possibilidade desse arranjo, conclui
ele, arriscar-se-ia a entregar aos poucos o que restar, ao mesmo Waguinho ou a
outros. Para o ministério da Saúde, não há jeito senão resistir.
A coisa nesse varejo em que o governo se
enredou não está mesmo bonita. Aparentemente a chance de Lula sair dessa
ratoeira estará em apostar no atacado, isto é, na amplitude do protesto contra
a estreiteza do processo. Ao dizer isso corro o risco de estar alimentando uma
boa-fé desavisada, que não é autorizada pela conduta errante do presidente entre
deveres do cargo e arroubos de político faccioso. Mas parece não haver outro
jeito senão tocar bumbo contra a insanidade e torcer. Ainda que sem tapar o sol
com a peneira. O processo estreito não inclui, neste episódio, só Arthur Lira e
seus consorciados, mas também o consórcio menor de Waguinho com ao menos parte
do petismo fluminense, que advoga interesses daquele, por se ver também incomodado
por ausência de controle político sobre o ministério.
Esse último aspecto requer que o argumento
aqui desenvolvido se ligue a uma discussão mais ampla, sobre relações atuais
entre o Executivo e o Legislativo e dos partidos políticos com ambos os
poderes.
O buraco é mais fundo
Nove entre dez analistas da política
brasileira constatam que as relações entre governo e congresso mudaram porque o
equilíbrio de poderes deslocou-se em favor do segundo. Nesse ponto o consenso para
e surgem controvérsias em torno de subtemas distintos, tais como causas do
processo e medidas para, conforme o ponto de vista, reverter um desequilíbrio
crítico, ou consolidar um novo patamar de equilíbrio que a crise estaria a
insinuar. Vamos por partes, começando pela controvérsia sobre causas.
Explicações várias transitam ao longo de
uma linha de tempo, cada qual delas situando a causa principal num ponto em que
localiza uma conjuntura crítica virtualmente fatal. Assim, há quem veja a atual
situação como decorrência direta da ascensão de Arthur Lira à presidência da
Câmara, em 2021, seguida de uma renúncia do Executivo a poderes governativos e
sua consequente transferência ao Legislativo, por parte do ex-presidente Jair
Bolsonaro, para evitar um impeachment.
Voltando um pouco mais atrás na linha do
tempo e por um caminho de argumentação lógica inverso ao anterior, o
desequilíbrio (ou novo equilíbrio) é visto por outros como fruto de estratégia
deliberada, posta em prática na Câmara desde o tempo de Rodrigo Maia, face a uma
janela de oportunidade aberta pelo impeachment de Dilma, encontrando no
presidente Michel Temer um ator consciente, cooperativo e realista e em Jair Bolsonaro
um canastrão afoito que se tornou útil. Uma variante dessa interpretação
assinala que o congresso, já se fortalecendo desde o governo Temer, respondeu
positivamente ao contexto trágico da pandemia, garantindo a proteção aos mais
vulneráveis e a governabilidade do país, vindo basicamente daí o seu maior
empoderamento, já sob Bolsonaro. Por essa linha, Arthur Lira é herdeiro espúrio
de Rodrigo Maia, beneficiário de um poder acumulado, que usa em causa própria.
Há quem retroceda ainda mais na linha do
tempo para apontar como conjuntura crítica e fatal a guerra fria, depois guerra
de fim de mundo, entre Dilma Rousseff e Eduardo Cunha, entre 2013 e 2015.
Dividem-se os intérpretes, nesse último caso, entre aqueles que “culpam” a inabilidade
da presidente ao tentar impedir, através de uma candidatura petista "puro
sangue", afinal fracassada, a reeleição de Cunha à presidência da Câmara e,
por outro lado, aqueles que enxergam ali o marco zero de uma operação reativa e,
logo a seguir, conspiratória da direita diante da hegemonia política do PT,
operação no bojo da qual o próprio Cunha,
seu detonador, foi deixado na estrada, tendo o comando passado à Operação Lava-Jato,
alvejando primeiro o PT e seu líder maior e, depois, o conjunto da elite
política. Nessa terra quase arrasada é que surtiria maior efeito, já sob
Bolsonaro, a estratégia reativa da elite política, iniciada por Rodrigo Maia, ainda
sob Temer. Por essa linha narrativa (tanto de quem condena o PT quanto de quem aponta
o papel central da Lava-jato), o Congresso não teria demonstrado
qualquer poder positivo de reconstrução institucional, mas de entabular uma reação
defensiva e corporativa do mundo político.
Indo mais ou menos pela senda histórica acima descrita e com acento
forte na Lava-Jato, o cientista político Fernando Limongi acaba de
publicar um livro (“Operação impeachment”) que tende a ser bastante
influente, pelo seu valor como pesquisa e pelo prestígio intelectual do autor.
Por fim, há os que retrocedem a 2013, vendo
nas manifestações do seu junho uma espécie de ovo de serpente dentro do qual o
extremismo de direita residia. Refutações empíricas dessa tese conspiratória
sempre existiram, inclusive no meio acadêmico, e agora, quando se completa a
primeira década daqueles acontecimentos, surgiram várias de ótima qualidade, em
artigos e entrevistas na imprensa, de variados graus de profundidade (Pablo Ortellado:
“Os dois legados de junho” – O Globo, 03.06.2023; Marcos Nobre: “Junho
de 2013 levou culpa pelos desastres do país”
- Folha de SP/Ilustríssima, 03.06.23; Luiz C. Azedo: “Dez anos depois os políticos deram
a volta por cima” - Correio Braziliense/Entrelinhas 09.06.23). Uma
entrevista, em especial (“Junho de 2013 foi início de novo ciclo na política
brasileira”) do professor e cientista político J.A. Moisés ao jornalista
Marcelo Godoy, publicada em 07.06.23 por O Estado de São Paulo, além de
tratar desse tema, avançou, na análise das relações entre poderes e da questão
partidária, contribuições reformistas para solução dos dilemas atuais do nosso
sistema político.
Chegamos ao subtema das medidas para
reversão/institucionalização do desequilíbrio/reequilíbrio das relações entre
poderes e desses com os partidos num país que, quanto a eleições, vai muito bem
obrigado, mas que apresenta sérios déficits de governação e de
responsividade de seu sistema político, em parte responsáveis pela avaliação
internacional do mesmo como uma democracia “eleitoral” e pela percepção
negativa que ele obtém por parte da sociedade e eleitorados nacionais. Aqui não
é possível discutir o subtema das soluções possíveis com uma profundidade
mínima, mas cabe dizer que em torno dele controvérsias não são menores nem
menos intensas que em torno das causas do mesmo processo.
Parte maior das análises considera estar havendo
um deslocamento disfuncional de poder em favor do Legislativo, a exigir
correção. Mas o mesmo fenômeno pode ser considerado sob outro ponto de vista, ou
seja, o de que se reverte, nos últimos anos, um desequilíbrio historicamente
dado em favor do Executivo, reversão que não é má, contudo, requer
institucionalização de balizas, para não extrapolar limites razoáveis, sendo a
fixação dos limites um tópico à parte na discussão, em si mesmo polêmico.
Entre as duas hipóteses, há intermediárias
que encaminham a discussão para tópicos como saber se ainda existe ou não
presidencialismo de coalizão, se ele pode ou não ser “normalizado” (por uma
conduta mais assertiva do Executivo), ou retomado num patamar menos decisionista
por uma atitude mais realista e até cooperativa do presidente em face do maior
protagonismo do outro poder, desde que se fixe meios do presidencialismo voltar
a funcionar como tal. Nessa segunda perspectiva colocou-se recentemente o
cientista político Sergio Abranches que, há quase três décadas, introduziu o
termo presidencialismo de coalizão no jargão da nossa ciência política e também
no debate não acadêmico.
Além dessas duas, há, entre as percepções
de desequilíbrio crítico e de reequilíbrio benigno, outras posições intermediárias
menos esperançosas quanto às chances de recuperação do presidencialismo de
coalizão. Falam em reforma abrangente por reconhecerem o empoderamento do
Congresso como algo mais permanente, com caráter anunciador de uma nova
estrutura política. Um fenômeno mais fundo do que uma expressão do “lirismo”
vigente na Câmara, pois mostra-se, sem caráter patológico, também no Senado. Por
essa linha fala-se, por exemplo, em semipresidencialismo e outras fórmulas mais
ou menos valorizadoras da hipótese de, em mais longo prazo, chegar-se a uma
versão de parlamentarismo. Nesse sentido é, a meu ver, muito persuasiva, em
vários pontos, a visão, já aqui mencionada, do professor José Álvaro Moisés.
Não há espaço para enumerá-los aqui. Esse debate institucional é crucial, mas o
que desejo agora, para finalizar, é propor uma reflexão de ordem política sobre
o timing das agendas.
A
meu ver, o ânimo reformista institucional, ainda quando firmado em boas razões,
deve ter o cuidado de não pretender abortar efeitos normalmente incrementais de
reformas moderadas que estão em curso no âmbito do sistema partidário. Essa
atenção passa por não abrir o flanco, na política real, para que certa dose de maximalismo
seja usada, por antirreformistas, como artificio retórico para detoná-la. Esse
cuidado traduz-se em não confundir a hipertrofia do poder pessoal de Lira -
fato contingente - com um possível desequilíbrio estrutural de poder em favor
do Legislativo, a ser normativamente corrigido por alguma fórmula, como a do
semipresidencialismo. Sim, mas talvez não imediatamente.
De certo modo já vivemos uma transição de
sistema, mas ainda distante de uma maturação. Ainda temos um presidencialismo
de coalizão que não é mais "aquele" e tanto pode vir a ser outro
sistema ou outra versão do mesmo. Isso depende menos de uma racionalidade
extrínseca ao que aí está e mais de influência e força relativas de atores que
aí estão. É razoável permitir que a transição se conclua com a decantação dos
seus aspectos "virtuosos" e "viciosos" para que possam ser
devidamente submetidos, no devido tempo, ao crivo de juízos políticos práticos.
O caráter do debate necessário no momento é menos normativo e mais voltado a
compreender circunstâncias oferecidas pela "pequena política" ao
desejado fortalecimento de linhas de ação de grande política. Por exemplo:
construção de alternativas factíveis à sucessão de Lira na Câmara e reforço da
liderança de Rodrigo Pacheco no Senado; sintonia entre esses movimentos e o da
construção da base governista no Congresso, com as implicações que isso pode
ter na agenda e na composição do governo; aposta no processo de empoderamento
das direções partidárias como elos potenciais entre governo (via ministérios) e
Congresso (via bancadas).
Uma reforma substantiva do sistema parece
ser agenda para os futuros governo e congresso que das serão eleitos em 2026,
já sob maior efeito das mudanças incrementais em curso no sistema partidário e
suas repercussões sobre processos eleitorais. Agora é transição e tendem a
prosperar iniciativas sintonizadas com esse espírito. Tempo mais de trote do que
de galope.
Penso que sob esse enquadramento – que
inclui a pequena política, mas não é orientado exclusivamente por ela – pode-se,
por exemplo, desativar armadilhas que no momento estão a ameaçar a saúde
pública e a saúde da política democrática no Brasil. Para além deste sério caso
particular, volto a uma tecla em que tenho batido há meses, nesta coluna:
Arthur Lira segue blefando (não tem força nem interesse de sabotar a agenda
econômica) porque Lula se recusa a definir rumo para as demais políticas do
governo através de uma aliança estratégica ampla. Arrisca o capital político
agora, de olho numa eleição distante.
A esse respeito, sugiro a leitura de uma entrevista
concedida pelo deputado Marcus Pereira, presidente do Republicanos a O Estado
de São Paulo, edição de 14 de junho. Seu partido formou um bloco na Câmara, com o
PSD e o MDB – dois partidos da base do governo - e Pereira está interpelando o
campo de Lira onde pode abrir divergência quanto à sua sucessão. É uma bola
sobrando na área que Lula se recusa a chutar, não se sabe se por resistência
própria, por receio de Lira, pressão do PT, ou se pelas três coisas juntas. Sem
com isso querer sugerir que o Planalto patrocine um desafiante, gestos
objetivos de permitir acesso de PSD e MDB (o Republicanos não quer entrar na
base, o que também positivo) assim como de outros aliados na esquerda, a um
plano decisório governamental até aqui restrito ao PT, bastariam para conter a
afluência de deputados desses partidos aos beija-mão do presidente da Casa. Quanto
mais Lula adiar uma aproximação real com um centro alternativo ao centrão (que
ademais não questiona sua prioridade ao social) permitindo que se consolide, no
mundo político, a percepção de que o Lula 3 é, basicamente, um governo do PT, mais
esse governo ficará refém dos movimentos de Lira.
Ainda que escape agora, a área da Saúde
pode ser uma das vítimas relevantes, na grande política, desse enredamento excessivo
do governo Lula na lógica inercial da pequena política. E não é irrelevante a
ameaça, pois, sem dúvida, não é pouco o poder do presidente da Câmara. Mas a sensação
de poder que ele desperta é maior do que aquele poder que emana de um mandato
que tem prazo certo para acabar. Se Lula e o conjunto do seu governo acertarem
ponteiros com um leque mais amplo de partidos e com as forças sistêmicas - tal
como fazem, com êxito, por exemplo, Fernando Haddad (com auxílio de Simone
Tebet), Geraldo Alckmin e José Mucio, nos seus respectivos quadrados - Lira
pensará duas vezes antes de desafiá-lo. Para deixar o atoleiro político em que se
meteu, o presidente só não terá apoio amplo também na sociedade caso queira governar
pela esquerda e buscar o poder plebiscitário de outrora. Seu governo até aqui é
um centauro com cabeça de Haddad e corpo de Gleisi Hoffman. Isso funciona?
*Cientista político e professor da UFBa.
Nenhum comentário:
Postar um comentário