Protecionismo americano levanta preocupação
O Globo
Em vez de repetir políticas que deram
errado no passado, Brasil deveria aproveitar as novas oportunidades
Em discurso recente, o conselheiro de
Segurança Nacional dos Estados
Unidos, Jake Sullivan, deixou clara uma inflexão estratégica na
política americana que deverá ter impacto no mundo todo, em especial no Brasil.
De modo previsível, destacou a disputa com a China como o maior desafio do
futuro próximo. A surpresa foi a forma transparente como apresentou a resposta
americana: uma guinada na política externa conduzida pelo país há décadas.
Em vez de insistir na premissa de que a integração econômica tornaria os países mais “responsáveis e abertos”, Sullivan usou o exemplo chinês para justificar uma reviravolta no conjunto de princípios outrora conhecido como Consenso de Washington. No lugar de livre mercado, abertura comercial e competição, fez uma defesa despudorada do retorno do protecionismo e da política industrial, dois fetiches do pensamento heterodoxo.
Por mais que a rivalidade política impeça
ambos de admitir, há nítida continuidade entre a política de Joe Biden e
a praticada no governo Donald Trump. A guerra comercial contra a China, e suas
barreiras à importação, apenas cedeu espaço a uma onda de subsídios estimada em
até US$ 100 bilhões ao ano na próxima década, mais que o dobro dos concedidos
antes da pandemia.
Disfarçados sob o previsível pretexto da “necessidade
estratégica”, eles somam US$ 465 bilhões para erguer fábricas de semicondutores
e investir na transição para energia limpa e chegam a quase US$ 1 trilhão
incluindo obras de infraestrutura. Na visão de Biden, a crise nas cadeias
globais de suprimento na pandemia e as consequências da guerra na Ucrânia no
mercado de energia são prévias de algo pior por vir — e o país precisa se
proteger dos riscos.
Nos riscos associados ao protecionismo,
poucos falam. Basta lembrar o caso brasileiro para entender o que costuma dar
errado. Os governos petistas enterraram quase US$ 26,4 bilhões no projeto de
uma indústria naval que, literalmente, naufragou. Os resultados de políticas de
proteção à indústria e subsídios por décadas e décadas resultaram em quase nada
relevante — e não faltou política industrial. Cada segmento protegido encarece
outros, forçados a comprar do favorecido. Quem paga a conta? O consumidor e a
economia, que perde produtividade e cresce menos. O ensimesmamento brasileiro
até hoje alija o país das cadeias globais na comparação com México, China,
Índia ou África do Sul.
Agora, o governo Luiz Inácio Lula da
Silva tem usado o exemplo americano como evidência de que é necessário
ressuscitar as políticas do passado. Mas não precisamos copiar os erros dos
americanos, e sim entender as oportunidades que surgiram. É uma lástima que, ao
reunir em janeiro 11 países da América Latina para os quais os Estados Unidos
querem atrair parte da produção industrial da China, o Brasil tenha ficado de
fora. Lula já era presidente, não dá para culpar o antecessor.
É pouco provável que o mundo volte a ser
tão protecionista como nos anos 1930 ou depois da Segunda Guerra. Em vez de
insistir em erros do passado, o governo Lula deveria abrir o país. A meta deve
ser elevar a produtividade das empresas locais com mais competição. É o momento
não de defender o que já deu errado tantas vezes, mas de aposentar o discurso
protecionista e preparar o Brasil para absorver investimentos que sairão da
China para países mais próximos dos Estados Unidos.
Inauguração da Norte-Sul demonstra
importância das ferrovias privadas
O Globo
Estrada de ferro essencial é concluída com
quase 40 anos de atraso, num país que ainda privilegia o caminhão
Símbolo de corrupção quando foi lançada no
governo José Sarney, em 1987, a Ferrovia Norte-Sul precisou do setor privado
para ser enfim concluída, conectando por trilhos os portos de Itaqui (MA) e
Santos (SP). Os novos trechos, operados pelo grupo Rumo, atendem a quatro
terminais construídos nos últimos dois anos para permitir o transporte de
produtos como soja, milho e açúcar. Ao cortar o país, a ferrovia permitirá
escoar com mais eficiência a produção agrícola de Minas Gerais, Goiás e outros
estados.
O atraso foi de quase 40 anos, e o custo
para o contribuinte chega perto de R$ 45 bilhões em valores corrigidos. Além da
corrupção desmascarada desde o início da obra, a Norte-Sul é um exemplo
perfeito dos males que acometem os investimentos brasileiros em infraestrutura.
A escolha torta por privilegiar as rodovias
transformou o Brasil num país dependente dos caminhões, situação que contrasta
com outras nações continentais. Na Rússia, as ferrovias representam 81% da
matriz de transportes. Os Estados Unidos têm a maior malha ferroviária do
mundo, com quase 300 mil quilômetros, 30 por mil quilômetros quadrados de
superfície (só a Índia tem maior densidade ferroviária).
O Brasil, enquanto isso, patina com 30 mil
quilômetros, apenas 3,6 por mil quilômetros quadrados de área — um retrocesso
em relação aos 38 mil quilômetros que tínhamos em 1960. Ao mesmo tempo, 93% do
minério de ferro e 49% dos produtos agrícolas exportados a granel chegam aos
portos por trilhos. Qual não seria o impacto na competitividade brasileira de
uma malha ferroviária mais robusta?
Tragicamente, os erros no setor se
sucederam. Depois da falência de ferrovias nos anos 1950, o governo Juscelino
Kubitschek — que sempre preferiu a indústria automotiva — criou uma estatal, a
Rede Ferroviária Federal S.A., reunindo empresas em estágio pré-falimentar. A
RFFSA padeceu dos males das estatais: virou cabide de empregos e foco de
desvios, sem capacidade de investimento, até começar a ser privatizada a partir
de 1996. A volta da iniciativa privada ao setor atraiu investimentos de R$ 142
bilhões. De 1997 para 2021, a carga transportada dobrou para 500 milhões de
toneladas.
No caso da Norte-Sul, foi preciso esperar
diversas tentativas, com licitações e relicitações, até a entrada definitiva do
capital privado em 2019. Fora os R$ 2,7 bilhões pagos no leilão pela concessão
do último trecho da ferrovia, investimentos de R$ 4 bilhões permitiram enfim
concluir a obra. Nas décadas de idas e vindas, quase todos os presidentes da
República promoveram inaugurações parciais, mas só na última sexta-feira ela
ficou pronta.
A conclusão da Norte-Sul precisa significar
a intenção brasileira de dar preferência às ferrovias no transporte de cargas
pesadas, principalmente para exportação. Sem a volta da iniciativa privada às
estradas de ferro, produtores estariam ainda na dependência de caminhões e de
estradas em condições precárias. A concessão da malha ferroviária à iniciativa
privada precisa ser um projeto de Estado, não de governos.
Fase da acomodação
Folha de S. Paulo
Nível razoável de popularidade de Lula
favorece empenho na agenda administrativa
A política numa democracia vivaz e
eficiente deveria produzir muito barulho em período eleitoral, mas pouco quando
a tarefa precípua do vencedor passa a ser a de materializar promessas de
campanha.
Os resultados da mais recente pesquisa
Datafolha sobre popularidade do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que logo
completará seis meses de mandato, propiciam certo nível de conforto para o presidente
petista dedicar-se cada vez mais aos temas administrativos e menos a rompantes
e bravatas.
Conforto, nestes tempos de extensa divisão
ideológica da sociedade, não significa que o mandatário vá nadar num oceano de
boa vontade popular, como ocorria no passado. Conseguir manter-se aprovado por
mais de um terço e rejeitado por menos que outro terço torna-se um feito
considerável.
Dos brasileiros em idade de votar, 37% julgam
ótima ou boa a gestão de Lula, e 27% a avaliam como ruim ou péssima.
Os números coletados até esta quarta (14) pelo instituto não diferem
estatisticamente dos apurados no final de março.
A estabilidade do quadro que vem desde a
campanha de 2022 perpassa também grandes estratos da pesquisa. Quanto mais
pobre o eleitor, mais satisfeito com a gestão. Evangélicos a criticam mais que
católicos. Mais da metade dos entrevistados se diz muito
inclinada ao petismo (29%) ou ao bolsonarismo (25%).
De mais tranquilizador para Lula, não há
sangria de popularidade a estancar. A inflação, sempre ameaçadora nesse
quesito, foi freada graças à tão atacada política restritiva do Banco Central.
A atividade da economia e o emprego também evoluem razoavelmente bem, depois de
terem surpreendido favoravelmente em 2022.
Houve mérito do presidente, que se
convenceu dos argumentos de seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e reduziu
o potencial de estrago de ideias acalentadas por lobistas e economistas ditos
heterodoxos que orbitam o PT.
O chefe do governo agora se mostra mais
empenhado em enfrentar a sua maior fraqueza, que repousa na baixa adesão de
parlamentares à situação no Congresso Nacional.
São sinais alvissareiros. A gestão parece
ter-se convencido de que precisa abandonar a demagogia e entrar numa fase de
relativa acomodação política —e de muito trabalho técnico e administrativo—
para tentar fazer avançar uma agenda de propostas que favoreça o
desenvolvimento do país.
Em terreno polarizado, medidas que melhorem
a vida da maioria da população constituem a única fórmula da sobrevivência
política.
Reforma para todos
Folha de S. Paulo
Ao Planalto compete esclarecer que a
mudança dos impostos interessa à maioria
A mudança do sistema de impostos é o
grande, talvez único, projeto de reforma econômica de Luiz Inácio Lula da Silva
(PT). Tendo em vista a relevância e a complexidade da empreitada, o presidente
deveria dedicar-lhe mais esforço político.
Aproximam-se semanas em que os conflitos do
debate tributário vão se tornar agudos. As diretrizes da reforma ganharão
substância em uma proposta de emenda constitucional e, de modo quase imediato,
devem ser delineadas ou definidas alíquotas e bases de cálculo no projeto da
lei que regulará, na prática, as mudanças.
As tentativas frustradas nas últimas
décadas serviram para amadurecer o entendimento do tema. O tempo sedimentou
ideias como a cobrança de impostos sobre mercadorias nos locais de consumo. Mas
há resistências e receios.
É certo que alguns setores serão mais
onerados em relação à situação atual. Estados e municípios perderão autonomia
devido à uniformização
de normas e unificação de ICMS e ISS. Alteram-se preços,
receitas, investimentos.
Os remanejamentos da carga tributária,
porém, são uma das consequências inevitáveis da reforma. Eventuais perdas
locais e, em menor medida, setoriais podem ter reparações provisórias e serão
compensadas, a longo prazo, por ganhos de eficiência econômica.
À medida que se aproximam os dias de
definições cruciais, interesses ou
receios particularistas ganham força. Parte dos governadores quer
limitar o alcance da mudança à esfera federal. Prefeitos se mobilizam para
manter o ISS. Serviços e agropecuária querem preservar o status quo. Se não se
opõem de fato ao projeto, barganham compensações maiores.
Sem esclarecimento, mobilização e
compromisso político, o texto que estabelece a imprescindível simplificação dos
tributos incidentes sobre a produção e o consumo pode acabar desfigurado.
Até aqui, a negociação está a cargo apenas
de uma secretaria do ministério da Fazenda e do relator da matéria no
Congresso. O Planalto terá de entrar em campo.
A missão, sem dúvida, pode causar desgaste
da imagem presidencial —haverá insatisfeitos. Mas cabe a Lula a difusão da
ideia de que a reforma é de interesse geral. Além do mais, dentro dos estreitos
limites das finanças federais, o governo tem de oferecer incentivos para a
adesão ao novo modelo.
A negociação necessariamente envolverá governadores, prefeitos e entidades empresariais. Aos líderes compete o esclarecimento público a respeito dos ganhos para a maioria silenciosa.
Milhões de eleitores buscam um candidatoO Estado de S. Paulo
Maioria dos eleitores à direita espera
alguém genuinamente conservador e liberal
É um fato gritante que a esquerda é menor
que Lula, ao menos eleitoralmente. Basta olhar o deserto de alternativas na
seara progressista. Lula (pessoalmente ou por interposta figura) disputa a
Presidência desde 1989. As dissidências foram trituradas pela máquina de
difamação petista. O desempenho do PT em eleições subnacionais não é sequer uma
sombra dos sucessos de Lula no Executivo federal. Para conquistar seu primeiro
mandato, ele apelou a um vice empresário e engoliu a seco as reformas
“neoliberais” de FHC. No poder, transigiu com a direita no Congresso. Quando
prevaleceram o voluntarismo e o dogmatismo petistas na gestão Dilma Rousseff, o
poste de Lula foi defenestrado. Em 2022, o marketing da “frente ampla”, mesmo
sendo uma manifesta impostura, foi crucial para angariar os votos que, por
estreitíssima margem, reconduziram Lula ao Planalto. Ainda assim, ele perdeu
nas classes média e alta e no Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Nada ilustra melhor
a estatura da esquerda hoje que as meras 130 cadeiras na Câmara conferidas pelo
eleitorado.
Mas se Lula é maior que a esquerda, Jair
Bolsonaro é muito menor que a direita, como mostra a desproporção entre os
votos dados a ele e à direita no Congresso. Uma pesquisa dos Institutos
Locomotiva e Ideia com os eleitores de Bolsonaro no segundo turno revelou que
só 18% acreditam que ele seja a única figura com força para representar a
direita. Já 54% dizem existir pessoas que podem ter força para representar a
direita sem o apoio de Bolsonaro. E isso sem contar os eleitores de direita e
de centro que, aterrorizados com um novo mandato do “capitão”, votaram em Lula
a contragosto.
Outro dado revelador é que bolsonaristas e
lulopetistas têm muito mais em comum do que gostariam de admitir. A menor
divergência se dá justamente na política econômica. Por exemplo, dos eleitores
de Lula e Bolsonaro, 54% e 40%, respectivamente, acreditam que o governo
deveria intervir na política monetária do Banco Central; e 58% e 37%, que
deveria ampliar a intervenção na economia para garantir o crescimento. Segundo
os pesquisadores, no eleitorado à direita é precisamente o enclave de
bolsonaristas radicais que mais favorece o intervencionismo e o estatismo tão
caros aos petistas. É uma versão peculiarmente tupiniquim da “teoria da
ferradura”, segundo a qual os extremos à esquerda e à direita, antes de estarem
em polos distantes de um continuum político linear, aproximam-se como as duas
pontas de uma ferradura.
Só há surpresa para os incautos. A eleição
de Lula não foi um triunfo da “democracia” contra a “autocracia”.
Duas palavras bastam para exprimir o apreço
do lulopetismo pela democracia: mensalão e petrolão. Quando seu
desenvolvimentismo foi implantado sem freios, o que se viu foi a pior recessão
da história recente do País. Podese apontar divergências ideológicas entre o
lulopetismo e o bolsonarismo, pode-se discutir qual é menos democrático, mas o
fato é que a disputa se deu entre dois projetos de poder populistas e
autoritários, ou, antes, entre as aversões a um e outro: ao fim, o
antibolsonarismo superou o antipetismo por mísero 1,8 ponto porcentual.
Mas o Brasil não está condenado a essa
dialética negativa e asfixiante. As manifestações multitudinárias pós2013, a
composição do Congresso e até pesquisas da Fundação Perseu Abramo, o braço
intelectual do PT, expõem o tamanho da insatisfação com a agenda petista.
Bolsonaro, por sua vez, usurpou nas campanhas eleitorais o ideário conservador
e liberal. Mas a pesquisa do Locomotiva revela que um contingente majoritário
da direita não comprou o engodo. São eleitores que sabem perfeitamente bem que
o autoritarismo de Bolsonaro violenta frontalmente valores caros aos
conservadores (como a estabilidade das instituições), aos liberais (como a
pluralidade política e a liberdade econômica) e a ambos (como a desconfiança do
poder centralizado). Não faltam pessoas e instituições, como este jornal,
engajadas na promoção desses valores. O que há, sim, para parafrasear uma peça
de Luigi Pirandello, são dezenas de milhões de eleitores à procura de um
candidato.
EUA e China buscam ‘estabilidade
estratégica’
O Estado de S. Paulo
Visita do secretário de Estado dos EUA à
China simboliza tentativa de encontrar mecanismos de cooperação em desafios
globais, competição econômica justa e convivência geopolítica
O secretário de Estado americano, Antony
Blinken, realizará a partir de hoje sua primeira visita a Pequim. Dias atrás,
encontraram-se em Viena o conselheiro de segurança dos EUA, Jake Sullivan, e o
chanceler chinês, Wang Yi. Na ocasião, a secretária do Tesouro americano, Janet
Yellen, advogou por um “engajamento construtivo” na economia e meio ambiente.
Blinken pode abrir as portas para uma visita de Yellen e autoridades comerciais
e ambientais. Em novembro, o presidente chinês, Xi Jinping, irá aos EUA para o
Fórum da Cooperação Econômica Ásia-Pacífico.
São sinais de que as partes da principal
relação bilateral do mundo estão buscando o que analistas chamam “estabilidade
estratégica”. Mas é sintomático que a visita de Blinken tenha sido adiada por
meses após um balão chinês ser abatido nos EUA, e que quase tenha sido adiada
de novo em razão de um acordo da China para estabelecer bases de inteligência
em Cuba. Esses incidentes revelam o quão longo e pedregoso será o caminho rumo
à desejada “estabilidade estratégica”.
Sua conquista depende de um tripé:
cooperação em desafios globais (como mudanças climáticas ou pandemias); trocas
e disputas econômicas justas; e convivência pacífica entre os sistemas
democrático e autocrático.
O primeiro ponto é mais simples. Pode haver
ruídos entre as expectativas de um país e as necessidades do outro em relação à
descarbonização ou à prevenção de patógenos. Mas em tese são interesses
convergentes.
O segundo aspecto é mais complicado. As
amplas relações econômicas entre EUA e China – a mais óbvia diferença em
relação à velha guerra fria – podem ser um facilitador, mas também um
complicador.
Como disse, em consonância com Yellen, a
presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, “o desacoplamento (da
economia da China) não é viável, desejável e sequer prático”. Yellen, contudo,
advertiu contra práticas comerciais chinesas “injustas”, e Von der Leyen
apontou que a China “virou a página da era de ‘reforma e abertura’ e se move
para uma nova era de ‘segurança e controle’”. São preocupações que indicam
interferências na esfera econômica do terceiro e mais delicado aspecto do
tripé: a rivalidade militar.
Autoridades traduzem o desafio de reduzir
essa interferência com expressões como “competição, não conflito”, ou deixar o
comércio aberto exceto por “um pequeno jardim e uma cerca alta”. Os EUA, por
exemplo, decretaram embargos em semicondutores e outras tecnologias
estratégicas. Mas a China ameaça retaliar contra essas manobras que considera
economicamente injustas.
Ainda mais arriscados que essa mistura
volátil de competição econômica e militar são os atritos estritamente
geopolíticos. A China busca expandir sua atuação em zonas tradicionais de
influência do Ocidente, como o Oriente Médio, ao mesmo tempo que os EUA
reforçam alianças no Pacífico. Isso sem falar da questão mais volátil de todas:
Taiwan. O risco é de um ciclo vicioso de ação e reação, no qual o que para uma
parte é visto como “dissuasão”, para a outra é “ameaça”.
A guerra fria deixou lições. Após a crise
dos mísseis de Cuba (1962), autoridades de EUA e URSS em múltiplos níveis
passaram a conversar com mais regularidade para reduzir riscos de conflitos
acidentais com exercícios militares e contraespionagem. Canais assim seriam
particularmente importantes para estabelecer parâmetros mútuos no emprego
militar da Inteligência Artificial.
“Creio ser possível criar uma ordem mundial
com base em regras que Europa, China e Índia possam compartilhar”, disse
recentemente Henry Kissinger. Vindas de quem vêm – um realista por excelência
que, além de ser, por sua inteligência e experiência, plausivelmente a maior
autoridade viva em relações internacionais, também arquitetou a reaproximação
entre EUA e China na guerra fria –, são palavras reconfortantes.
O ótimo é inimigo do bom. Décadas de
estranhamentos entre EUA e China são talvez o que de melhor se possa esperar.
Não é o melhor dos mundos. Mas, se ambos conseguirem evitar que o mundo seja
destruído por uma 3.ª Guerra Mundial, já será bom o suficiente.
Desmatamento como legado
O Estado de S. Paulo
Passivo ambiental de Bolsonaro é
simbolizado pela devastação no último ano de seu governo
O principal legado do governo de Jair
Bolsonaro na área ambiental foi o desmatamento de 6,6 milhões de hectares, dos
quais 99% com indícios de terem ocorrido na ilegalidade. A devastação
equivaleria à destruição total de uma vez e meia o território do Estado do Rio
de Janeiro. Os dados divulgados no último dia 12 pelo MapBiomas, em seu
Relatório Anual de Desmatamento (Rad 2022), jogam luz sobre o imenso desafio da
gestão de Lula da Silva de frear as motosserras e reverter esse cenário a bem
do interesse nacional e do compromisso assumido pelo Brasil de zerar o
desmatamento até 2030.
No último ano da administração Bolsonaro,
quando a máquina governamental operou com concessões e benefícios em favor de
sua reeleição, a leniência oficial abriu as porteiras para o desmatamento mais
acelerado. Foram destruídos 2,1 milhões de hectares – sobretudo, na Amazônia e
no Cerrado. Tratou-se de área 22,3% superior à desmatada em 2021 e de um terço
da devastação ocorrida em todo o mandato presidencial.
Tal passivo desqualificaria a ficha de
serviço de qualquer líder, mas não surpreende em se tratando do empenho de
Bolsonaro em deixar a “boiada passar”. Seu governo fez irresponsável vista
grossa aos apelos de setores organizados, empresariais e políticos do País em
favor da proteção aos biomas e à agenda econômica cada vez mais restritiva ao
comércio, ao acesso ao crédito e ao investimento para negócios maculados pelo
mau desempenho ambiental.
Desde seu início, o governo Lula da Silva
mostrase empenhado na reversão desse cenário, seja por convicções próprias
sobre o valor da biodiversidade brasileira, seja por ambições de liderança nas
negociações multilaterais sobre mudança climática, seja pelos potenciais
prejuízos econômicos decorrentes da inação. A reconstrução dos órgãos
ambientais de vigilância e controle, demolidos na gestão anterior, aponta seriedade
nesse novo rumo, assim como o combate ao garimpo ilegal e à grilagem em terras
indígenas.
As derrubadas, porém, prosseguem – e nem
sempre na legalidade. Dados deste mês do Deter, programa do Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (Inpe), apontam o desmatamento de 1.986 quilômetros
quadrados na Amazônia legal de janeiro a maio. Houve redução de 31%, na
comparação com igual período de 2022. No Cerrado, desbravado nas últimas
décadas pelo agronegócio, o quadro piorou. Foram ceifados 2.612 quilômetros quadrados,
35% a mais.
Há muito a ser feito para o Brasil chegar a 2030 com desmatamento zero – contraditoriamente, um compromisso firmado pelo governo que se empenhou na destruição ambiental. O esforço envolve a tarefa de convencer o segmento arcaico do agronegócio a parar a derrubada de árvores e investir em tecnologia para obter ganhos de produtividade, como faz o mais arrojado. Igualmente há o desafio do ataque aos garimpos ilegais e aos grileiros, hoje dominados por organizações criminosas. Não será fácil. Mas, a bem da sociedade brasileira, recuos não serão tolerados.
Justiça tributária é mais que necessária
Correio Braziliense
Está mais do que claro que, da forma como
está estruturado hoje, o regime tributário brasileiro é concentrador de renda.
São os desfavorecidos os que, proporcionalmente, pagam mais impostos
Com o novo arcabouço fiscal na reta final
de votação, Congresso e Executivo devem concentrar todos os esforços para levar
adiante a reforma tributária. Depois de 30 anos de vaivém, de debates profundos
e de ótimas propostas da Câmara e do Senado, enfim, o Brasil está pronto para
dar um importante salto para o futuro. Não há nenhum exagero em dizer que os ajustes
no injusto sistema de impostos levarão o país a um novo e sustentado ciclo de
crescimento econômico.
Todos os estudos apontam nesse sentido. O
potencial de crescimento do Brasil, hoje próximo de 2% ao ano, praticamente
poderá dobrar ao longo de uma década. Num país tão carente e atropelado por
políticas econômicas equivocadas por diversas vezes, será alvissareiro a
melhora do ambiente de negócios, o caminho mais adequado para a geração de
empregos e uma melhor distribuição de renda. A sociedade brasileira não pode
mais conviver com tantas desigualdades sociais.
Está mais do que claro que, da forma como
está estruturado hoje, o regime tributário brasileiro é concentrador de renda.
São os desfavorecidos os que, proporcionalmente, pagam mais impostos. As
camadas mais privilegiadas da população conseguem, por meio de brechas na lei,
passar longe das garras do Leão. Cálculos da Receita Federal apontam que os
mais pobres e os trabalhadores respondem por 75% dos recursos que, anualmente,
entram nos cofres do Tesouro Nacional. Isso ocorre porque a tributação pune o
consumo e a renda do trabalho.
Tal informação é fundamental para guiar as
discussões no Congresso, que não pode se render aos lobbies dos que sempre
foram privilegiados, que praticamente nunca pagaram impostos, mas têm forte entrada
entre os legisladores. A vez, agora, é dos trabalhadores, da classe média, dos
mais pobres. É essa ampla camada da sociedade que deve ser a grande beneficiada
pela reforma tributária. Não entender isso será um erro imperdoável do
Legislativo e do Executivo, pois, ao final, todos ganharão com o incremento da
produção e do consumo. Acabou o tempo de privilégios para poucos, muito poucos.
Desde que a discussão sobre a reforma
tributária esquentou, alguns setores vêm gritando que pagarão mais tributos. Na
verdade, o que se está propondo é um ajuste no sistema, a correção de
distorções. Há segmentos com alíquotas muito baixas, o que favorece os mais
ricos, e outros, como a indústria, supertaxados. Não por acaso, o Brasil viu,
nas últimas duas décadas, sobretudo, o desaparecimento de fábricas, o aumento
substancial do deficit comercial de produtos de alto valor agregado e a festa
dos concorrentes internacionais. A boa notícia é que será possível reverter
esse quadro por meio da reforma.
Historicamente, governos em primeiro ano de mandato costumam ter mais força para reunir apoio a projetos marcados por polêmicas. Os tempos atuais estão longe na normalidade. Mas, felizmente, a maioria dos que estão no poder têm compromissos com o bom senso. O Brasil está diante de uma oportunidade única de mudar de patamar, de dar a esperança de que, finalmente, depois de tantas promessas frustradas, o futuro está próximo. Ressalte-se, um futuro promissor, em que os menos favorecidos estarão no topo das prioridades e os mais ricos entenderão que passou da hora de cumprirem seus deveres, o mais simples deles, o de pagar o que devem de impostos. É justiça social.
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