Valor Econômico
O Rio Grande do Sul sempre se caracterizou
por uma forte reverência ao passado, mas o desastre climático de maio de 2024
condena o povo riograndense a viver, daqui para diante, em prol do longo prazo
O Rio Grande do Sul ainda vive sob o signo da
emergência. Vai demorar um tempo para que tudo seja limpo, o básico seja
reconstruído e que a vida volte ao normal, com aquela rotina de escola,
trabalho e lazer. Embora nem todos tenham sido atingidos do mesmo modo, há um
sentimento comum de perda e haverá um empobrecimento maior do que havia antes
da tragédia. Com tantas tarefas e problemas ali na esquina, fica difícil
vislumbrar o que será o futuro. Mas, para superar de maneira estrutural o
imenso desastre que ocorreu, a única saída é construir uma resposta de longo
prazo.
Evidentemente que as questões de curto prazo vão dominar, por alguns meses, a agenda gaúcha. Não só porque é preciso reconstituir a economia e a normalidade da vida cotidiana, mas também porque os primeiros passos são importantes para os demais. Uma medida básica é garantir renda às pessoas para que não haja um colapso econômico.
A infraestrutura mais basilar deve ser
reconstruída logo, para não inviabilizar todo o restante das atividades. E,
mais importante ainda, deve-se definir, o quanto antes, qual será o modelo mais
amplo de reconstrução, a ser implementado por um tempo bastante longo.
Em outras palavras, se mil passos começam no
primeiro, o início também tem de vislumbrar aonde se quer chegar. Neste
sentido, o planejamento da reconstrução vai passar basicamente por duas
questões. A primeira diz respeito aos fins, e a segunda, aos meios. Começando
pelas finalidades, elas dependem, antes de tudo, de um bom diagnóstico. Mesmo
se sabendo da pressa em querer resolver uma situação dramática, não se pode
colocar o carro na frente dos bois, o que em políticas públicas significa
determinar as soluções antes de identificar claramente e de forma precisa os
problemas.
O diagnóstico do desastre passa fortemente
pela análise da infraestrutura destruída, sejam as pontes, estradas e
mecanismos de contenção de enchentes, sejam as moradias, as empresas e
equipamentos públicos (com destaque para as escolas). A reconstrução, porém,
não é simplesmente para voltar ao ponto anterior. O principal diagnóstico é
que, como há grandes possibilidades nos próximos anos de novos desastres
climáticos, será necessário ter um novo modelo de ordenação espacial do Rio
Grande do Sul, que significará ter edificações e formas de organização urbana
capazes de lidar ou mitigar os efeitos da ação de fenômenos naturais.
Para além de uma nova forma de ordenar o
território, o respeito a normas ambientais mais rígidas do que as atuais se
tornará um imperativo para o Rio Grande do Sul. Esse diagnóstico é o coração da
mudança depois do desastre. Neste momento de desgraça e luto, talvez a grande
maioria já concorde com essa necessidade. Só que não custa lembrar como o
passar do tempo pode levar ao desejo de se voltar à realidade anterior, um
grande perigo que já aconteceu dezenas de vezes no Brasil após tragédias
naturais. O problema é que os gaúchos estão condenados a pensar, desde já, no
longo prazo.
Uma forma de consolidar um diagnóstico que
aponte para as imensas transformações que terão de ocorrer no modelo de
desenvolvimento gaúcho é trazer especialistas internacionais e ouvir os
estudiosos brasileiros. Eles devem mostrar as tragédias naturais ocorridas em
outros países e as medidas que foram tomadas, geralmente amplas e profundas,
para se evitar a recorrência ou ao menos para mitigar os efeitos. Tais
pesquisadores e gestores têm de apresentar os dados de forma bastante clara,
realçando todas as consequências de se tentar permanecer no antigo normal. Além
disso, a comunicação deve ser persuasiva e difundida a todos os grupos sociais,
num processo que certamente não terminará nos próximos meses. É como na questão
da vacinação: regularmente, será necessário ter campanhas públicas no Rio
Grande do Sul para lembrar que os caminhos de mudança serão percorridos por
muito tempo - novamente, a relevância do longo prazo.
A capacidade de os diagnósticos convencerem a
sociedade gaúcha depende também dos prognósticos apresentados. Isso vai exigir
a discussão com os atores sociais de um planejamento de ações, com objetivos
bem definidos e metas claras, apresentando as consequências de não se tomar
determinadas decisões. A temporalidade das medidas, com um calendário de curto,
médio e longo prazo, é outro elemento central aqui, tanto para que todos
reorganizem sua vida quanto para compreenderem a profundidade das mudanças. É
preciso, ademais, realçar que novos comportamentos terão de ser adotados, sem
que isso signifique necessariamente uma redução do bem-estar social. Até porque
não há nada pior do que os efeitos de desastres naturais.
É provável que, no balanço final dos
diagnósticos e prognósticos, se constate que a necessidade de transformação no
padrão de desenvolvimento riograndense já deveria ter sido notada antes. O Rio
Grande do Sul envelheceu, tem perdido população, vivido uma crise fiscal há
décadas, mas seu modelo econômico e social conservou-se sem grandes propostas
de inovação. Agora se sabe que sem uma âncora ambiental, que perpasse todas as
esferas da vida social, será impossível criar um novo paradigma. Está aí a
grande tarefa dos gaúchos: chegar efetivamente ao século XXI que suas elites e
eleitores teimavam em não encarar.
As finalidades definidas após o desastre
climático não serão alcançadas sem se construir os meios adequados. Entra aqui
um conceito-chave para o sucesso da reconstrução gaúcha: a governança
colaborativa. Ela tem como objetivo articular continuamente, de forma
institucionalizada e mirando o longo prazo, o processo de transformação
pós-tragédia. Colaboração, é bom que se diga, não significa ausência de
conflito. Trata-se, ao contrário, de um modelo que busca construir os consensos
possíveis, gerenciar de forma eficiente as divergências e convencer a todos que
o modus operandi colaborativo é o mais efetivo na garantia de uma solução
social ótima, que não é perfeita, mas que gera menos prejuízos a cada qual e
ganhos comuns mais consistentes e de longa duração.
Os pontos estratégicos da governança
colaborativa são a criação de arenas de discussão e deliberação, a montagem de
um processo decisório transparente e capaz de reduzir as rusgas inúteis e, como
corolário, a construção de uma cultura de confiança e colaboração entre atores
que têm muitas vezes interesses e visões de mundo diferentes. Com o tempo, é
possível descobrir pela prática colaborativa que há muitos caminhos possíveis
que são essenciais a todos, pois o desastre climático realçou o quanto os gaúchos,
mesmo com suas assimetrias de vários tipos, convivem na mesma embarcação
riograndense. E esse barco vai afundar se não encontrarem formas de cooperar,
especialmente com vistas a transformações de longo prazo.
Dois são os elos mais importantes desta
modelagem governativa. O primeiro relaciona-se com a Federação. É fundamental
construir um modo de colaboração institucionalizado entre a União, o estado e
os municípios riograndenses. No curto prazo, o governo federal tem sido muito
prestativo, muito mais do que foram outros em tragédias recentes - como o caso
do governo Bolsonaro, mestre em se eximir das responsabilidades coletivas. No
entanto, dadas as divergências políticas numa sociedade fortemente polarizada,
ao que se soma o contexto eleitoral de 2024, é imprescindível construir uma
solução que vislumbre decisões e formas de implementação para além dos mandatos
dos atuais governantes. Modelos de conselhos federativos e/ou autoridades
independentes são possíveis respostas, uma vez que são capazes de fortalecer a
cooperação e gerar um pacto por uma transformação que vai exigir anos de ação
federativa coordenada e muita generosidade colaborativa.
A colaboração terá ainda que guiar a relação
do setor público com a sociedade e os entes privados. Há setores políticos hoje
que jogam em prol do descrédito da política e dos governos, apostando que o
caos e o voluntarismo produzirão uma solução melhor a uma tragédia gigantesca.
Isso é pura ignorância ou uma forma populista de enganar os eleitores - aliás,
Bolsonaro foi desastroso no maior problema coletivo de seu mandato, que foram
as 700 mil mortes por covid-19. A reconstrução da Europa do pós-Guerra ou da
Holanda pós-desastres naturais exigiu um governo forte, competente e
entrelaçado com os atores sociais, por meio de muito diálogo baseado em
diagnósticos sólidos e implementação azeitada. Ressalte-se esse último ponto:
sem um modelo que fortaleça os mecanismos de implementação, os planos e a
legitimidade da reconstrução se perdem ao longo do caminho.
O Rio Grande do Sul sempre se caracterizou
por uma forte reverência ao passado. As histórias das guerras, os hinos, roupas
e festas veneravam a história para construir a identidade gaúcha. Nada contra
as tradições, que são importantes para encontrarmos nosso lugar no mundo. Mas o
desastre climático de maio de 2024 condena o povo riograndense a viver, daqui
para diante, em prol do longo prazo, que se torna a sua maior (ou única?) tábua
de salvação. Só um futuro planejado e constantemente debatido pode evitar o
retorno das tragédias de grandes proporções e recriar o Rio Grande do Sul do
século XXI, aprendendo com os erros para ter novas glórias, que unam colorados
e gremistas.
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