Valor Econômico
Para muitos, a emenda constitucional que
trata das terras de marinha e o Projeto de Lei nº 709/2023 usurpam direitos
sociais historicamente reconhecidos
Nas últimas semanas, duas propostas
legislativas, apresentadas em casas do Congresso Nacional, suscitaram
inquietações sociais e debates porque, para muitos, usurpam direitos sociais
historicamente reconhecidos.
Uma, que tem por objetivo declarado privar os que são beneficiados pela reforma agrária de direitos a ela vinculados. Os relativos a medidas de apoio à consolidação dos assentamentos, necessárias a que a reforma produza os efeitos sociais e econômicos a que ela se destina. A outra, a emenda constitucional que trata das terras de marinha e supostamente privatiza as praias brasileiras.
As duas propostas se situam na concepção de
ministro do governo Bolsonaro, expressa na reunião do ministério de 22 de abril
de 2020: aproveitar a distração da mídia e da população com a pandemia para
deixar a boiada passar por baixo das formalidades da lei, através do recurso às
normas infralegais e desburocratizar o trato da questão ambiental.
Variante desse disfarce, o Projeto de Lei nº
709/2023, apresentado na Câmara dos Deputados, bloqueia o acesso aos benefícios
legais aos que tenham invadido a terra para obtê-la.
O endereço confessado é o MST - Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra. Mas o serão também os proprietários de milhões
de hectares de terras que não conseguiram produzir documentação que legitimasse
o suposto direito quando chamados a fazê-lo pelo governo federal. Nada impede
que os movimentos sociais pleiteiem na Justiça que equivalente medida os
alcance, como os benefícios fiscais, favorecimento e financiamentos e outros
benefícios.
O regime militar separou propriedade da terra
e propriedade do capital, isto é, das construções, equipamentos, plantações, o
que é feito pelo trabalho. E o fez para desbloquear o desenvolvimento
capitalista no campo, como outros países o fizeram.
O Estatuto da Terra, de novembro de 1964,
estabeleceu os fundamentos institucionais da reforma agrária. Também sociais
porque episódio da revolução burguesa no Brasil. Um empresariado que desconhece
os fundamentos sociais de seus interesses de classe não percebe que ao opor-se
à reforma opõe-se a si mesmo e ao futuro do capitalismo entre nós. O mesmo
acontece com os membros do Congresso.
A Lei de Terras de 1850, em nosso direito
fundiário, ocupou o lugar que, até 1822, fora da Lei de Sesmarias de 1375
aplicada no Brasil a partir da primeira metade do século XVI. Por essa lei, a
Coroa, isto é, o Estado, tinha o domínio da terra e o fazendeiro tinha o
direito de uso enquanto tornasse produtivas as terras que lhe fossem
concedidas. Se não o fizesse, caíam elas em comisso, retornando à posse da
Coroa para redistribuição a outrem.
A Lei de Terras, de 1850, preservou direitos
e obrigações do regime sesmarial, como os relativos às terras comunais e ao que
se chama de terras de marinha. Sem o saber, o MST reaviva valores de posse e
uso da terra que procedem desse regime antigo.
Pela lei de 1850, o Estado, com ressalvas,
transferiu o domínio sobre a terra aos particulares, criando um direito de
propriedade baseado em posse e domínio. Com isso criou uma anomalia, a de
substituir o escravo, como fundamento dos empréstimos hipotecários, pela terra,
que não tinha propriamente valor.
Criou a questão agrária brasileira,
fundamento de conflitos que o regime militar quis resolver com várias medidas
limitantes do direito absoluto de propriedade.
A partir da Revolução de Outubro de 1930, já
no âmbito do processo de industrialização e de modernização da economia
brasileira, o Estado, paulatinamente, tomou medidas para reaver o domínio da
terra, de que abrira mão em 1850.
Fê-lo lentamente a partir do Código de Águas,
que separou o solo do subsolo, e portanto restringiu o direito de propriedade à
superfície. Mesmo aí, a retomada de domínio prosseguiu em relação, também, à
superfície no que se refere às florestas, aos territórios indígenas, aos
lugares da memória histórica. O proprietário não pode ser dono de bens
insuscetíveis de apropriação privada. Caso das terras comunais, expressamente
reconhecidos pela Lei de Terras.
Um último esforço nesse sentido foi o do
general Danilo Venturini, ministro de Assuntos Fundiários, em 1983, cujo
ministério produziu uma consolidação das leis agrárias do país, como referência
da precedência do trabalho, a posse útil, para agilizar a reforma agrária
mediante decisão de um juiz de comarca em favor do trabalhador.
As duas medidas, tanto a que bloqueia a
reforma agrária quanto a que desfigura o que são terras de marinha, revogam
mais de cem anos de esforços políticos do país para reinstaurar a soberania e o
domínio da nação sobre o seu território e o uso de suas terras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário