O Estado de S. Paulo
Congresso avançou no projeto que equipara aborto a homicídio, o que é um retrocesso; governo federal ignora o debate
Há poucos dias, uma menina de 12 anos foi estuprada por um homem de 30 anos em Teresina. Ela está grávida. Os jornais chegaram a relatar que o homem “mantinha uma relação” com a vítima. De forma pouco sutil, emancipa-se erroneamente o poder de uma criança de compreender o mundo e as relações complexas que ele possibilita. Uma menina de 12 anos não possui a capacidade cognitiva adequada para distinguir uma violência.
Esse caso não é isolado. O Brasil é o 11.º no
ranking de abuso e exploração sexual infantil, segundo o “Out of the Shadows
Index”, calculado pela World Childhood Foundation. Segundo a Organização
Mundial da Saúde (OMS), no Brasil 320 crianças e adolescentes são explorados
sexualmente a cada 24 horas.
Os olhos da sociedade se voltam para duas
coisas: para a punição ao estuprador, que foi sentenciado a 30 anos de prisão,
e para a vida potencial do feto. A menina estuprada é totalmente negligenciada
– e poderá ficar ainda mais. Nesta semana, o Brasil retrocedeu ainda mais nesse
assunto. O Congresso avançou no projeto que equipara aborto a homicídio.
O debate técnico sobre aborto é
difícil. Progressistas caem na armadilha de debater sobre quando um feto pode
ser considerado uma vida. Mas, apesar de várias tentativas de métricas
objetivas sobre isso, o mistério da vida continua grande demais. Isso não
implica que o aborto seja um homicídio. A própria incerteza sobre esse fato
revela que interromper uma gravidez e matar uma pessoa não são fatos
comparáveis. O direito à vida é diferente do direito à vida que depende da
conexão com outro corpo.
Essa foi a ideia defendida por Judith Jarvis
Thomson, em 1971. Ela argumentou que, mesmo se concedermos que o feto tem
direito à vida, isso não implica que ele tem direito ao uso do corpo da mulher
para sobreviver. Judith propõe um exemplo lúdico. Suponhamos que acordamos
ligados de forma vital ao corpo de um violinista que está doente. Temos o
direito de fazer essa desconexão, pois nosso corpo não é o do violinista. Assim
como não somos obrigados a sustentar a vida do violinista, também não somos
obrigados a sustentar uma gravidez indesejada.
O exercício intelectual feito acima ainda desconsidera algo importante. Meninas de 12 anos são estupradas, engravidam e são obrigadas a cuidar do fruto da violência a que foram submetidas. As vidas dessas duas crianças, a que gestou e a gestada, estão marcadas pela desgraça. O governo federal ignora o debate. Pela direita ou pela esquerda, os direitos das mulheres seguem violados.
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