Propostas para aborto e drogas ignoram realidade
O Globo
Textos da Câmara desprezam caráter de saúde
pública e conhecimento acumulado sobre ambas as questões
É preocupante que a Câmara tenha dado
celeridade a duas propostas que mereceriam mais discussão com a sociedade e
deveriam seguir todo o trâmite legislativo, com debates exaustivos em comissões
antes de irem a plenário. A primeira é o Projeto de Lei (PL) que equipara
o aborto depois
da 22ª semana de gravidez ao crime de homicídio. A segunda é a Proposta de
Emenda à Constituição (PEC) que criminaliza posse e porte de qualquer
quantidade de droga. As mudanças são inspiradas mais em convicções políticas,
ideológicas ou religiosas que no conhecimento acumulado sobre ambos os temas.
De acordo com o PL que trata do aborto, mesmo nos casos em que o procedimento é hoje legal — estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia do feto —, ele seria considerado homicídio depois da 22ª semana de gravidez. É verdade que o Código Penal não impõe limite de tempo nos casos previstos em lei e que abortos com gestação avançada suscitam uma discussão que mexe com convicções morais e religiosas profundas. Por isso mesmo, a questão merece debate exaustivo.
Numa situação-limite, a proposta puniria a
vítima de estupro com mais rigor que ao próprio estuprador. No caso de uma
mulher adulta que tenha sido estuprada e só conseguido abortar depois da 22ª
semana de gravidez, este poderia receber pena entre seis a dez anos de prisão,
enquanto a vítima poderia ser condenada a 20 anos. O PL não leva em
consideração que muitas vítimas de estupro retardam a interrupção da gravidez
não por vontade própria, mas pelas circunstâncias. Boa parte dos estupros de
crianças e adolescentes ocorre em casa. Por inocência, ignorância ou medo — em
geral, os estupradores são próximos das vítimas —, muitos agem tardiamente. Não
se podem ignorar também as dificuldades impostas ao aborto legal. Nesses casos,
os termos propostos no projeto se tornariam uma punição às vítimas.
Quanto à PEC das Drogas, ela não resolve a
maior deficiência da lei em vigor: distinguir usuário de traficante. Seus
defensores afirmam que a ideia não é prender usuários, mas certamente é o que
acontecerá se não houver critério objetivo definindo a quantidade de droga que
separa um do outro. O projeto avançou justamente quando o Supremo Tribunal
Federal discute parâmetros para sanar essa lacuna da lei. Deixar a avaliação a
critério da interpretação de policiais e juízes, como hoje, preserva uma
ambiguidade nociva.
A Lei Antidrogas, de 2006, teve efeito
contrário ao pretendido, levando ao encarceramento em massa de cidadãos
flagrados com pequenas quantidades. A ausência de parâmetros objetivos cria
distorções e injustiças. Jovens, negros e pobres são presos com mais
frequência. Põe-se na cadeia um enorme contingente que não deveria estar lá,
favorecendo organizações criminosas que obtêm nos presídios mão de obra para
suas atividades ilícitas.
O Congresso é o foro adequado para discutir
questões que despertam controvérsia, como drogas ou aborto. Mas não há motivo
para queimar etapas. O correto é seguir o trâmite das comissões, para que todos
os aspectos delas sejam analisados com serenidade e confrontados com o
conhecimento de ponta. Visões conflitantes sempre enriquecem o debate. Aborto e
drogas são, antes de tudo, problemas de saúde pública. Por isso a legislação a
respeito deveria ser debatida de forma madura, desvinculada de preconceitos.
Vitória de Milei no Congresso mantém viva
esperança de mudança
O Globo
Depois de concessões, presidente argentino
obtém poderes necessários a promover reformas urgentes
Passados seis meses desde que assumiu a
Presidência da Argentina, Javier Milei conquistou
sua maior vitória no Congresso. Por margem apertada, o Senado aprovou dois
pacotes de reformas considerados prioritários pelo governo. O principal deles é
a Lei de Bases, que confere ao Executivo poderes excepcionais nas áreas
administrativa, econômica, financeira e energética, com permissão para promover
privatizações e outras reformas. O segundo é um pacote fiscal, com permissão
para regularizar bens não declarados e um programa para incentivar
inadimplentes a zerar débitos com o governo. Ambos são essenciais para o plano
econômico de Milei, que preconiza um Estado menos presente e despesas que
caibam no Orçamento.
Há diferenças importantes entre os textos
inicialmente apresentados pelo Executivo e as versões aprovadas. Milei foi
eleito presidente com margem folgada, mas com presença minoritária no
Congresso. O consenso no Parlamento era seu principal desafio desde a posse.
Ainda no ano passado exagerou ao enviar ao Congresso o projeto da Lei de Bases
com 664 artigos e 351 páginas. De tão extenso, foi apelidado de “Lei Ônibus”.
Mesmo um partido com maioria teria dificuldade de aprovar projeto com tal
ambição. Mas a ousadia funcionou como estratégia. A lei aprovada, na essência,
lhe dá poderes suficientes para pôr em marcha as reformas.
Com a exceção de protestos nem sempre
pacíficos, de lá para cá o que se viu foi uma democracia em funcionamento.
Depois da primeira derrota em fevereiro, o governo e a oposição “dialoguista”
deram início a intensa negociação. Numa sessão no final de abril, foram
necessárias 21 horas de debates para que os deputados chegassem a um acordo. Os
partidários de Milei se viram obrigados a fazer inúmeras concessões, com
destaque para a diminuição das áreas dos poderes excepcionais. Quando chegou ao
Senado, o texto já tinha 232 artigos. A votação desta semana não foi diferente.
Durou mais de 18 horas e exigiu o voto de minerva da vice-presidente Victoria
Villarruel para aprovar a Lei de Bases com 29 modificações, entre elas a
retirada de certas estatais da lista de privatização.
O governo demonstrou contrariedade com
artigos derrotados, em particular um que alterava o imposto de renda. Mas o
saldo foi positivo para a Casa Rosada. Com menos de 15% das cadeiras do
Congresso, Milei ganhou novo fôlego. Isso não quer dizer que suas dores de
cabeça com o Parlamento acabaram nem que seu plano econômico terá sucesso. Na
semana passada, a Câmara aprovou um aumento de aposentadorias que, se for
adiante, custará 0,4% do PIB. A inflação, mesmo em desaceleração, continua
alta. A recessão é de grandes proporções, o câmbio está apreciado, e o governo
tem usado toda sorte de expediente para buscar equilíbrio nas contas. Em vários
níveis impera o caos administrativo, tal o amadorismo dos indicados. Mas Milei
tem a visão correta dos problemas que amaldiçoam seu país e representa uma
esperança. A mudança conta com apoio da maioria da população. A Argentina não
pode se dar ao luxo de novo fracasso.
Planalto precisa mudar rumo e conter gastos
Valor Econômico
Há medidas que, dentro das regras falhas do regime fiscal, podem produzir resultados melhores
Com a rejeição pelo Senado da MP que limita a
compensação dos créditos do PIS/Cofins, o Congresso deu o mais forte sinal de
que a receita do governo Lula para sustentar o regime fiscal - o aumento de
arrecadação - encontrou seu limite. É uma mensagem vital, talvez não plenamente
percebida pelo Planalto. No dia seguinte à devolução da MP pelo presidente do
Senado, Rodrigo Pacheco, em um ato raro do Legislativo, o presidente Lula
reiterou o mix de políticas inviável. Ele disse que o governo está comprometido
com a austeridade fiscal, que será garantida pelo aumento de arrecadação e
redução dos juros, ambos fora do controle do Planalto até agora. Sobre redução
de gastos, nenhuma palavra do presidente.
Em geral, a chance de o atual Congresso
aprovar mais gastos, como o fez na PEC da Transição (R$ 168 bilhões a mais em
despesas para o governo de Lula), é maior do que a de aceitar elevação de
impostos. O presidente Lula sabe disso, seus ministros mais importantes,
também, mas a conta da derrota da MP foi inteiramente atribuída ao ministro da
Fazenda, Fernando Haddad. Mais do que a vitória de uma ala sobre outra nas
brigas internas do PT e do Planalto, o resultado do episódio põe mais um prego
no caixão da credibilidade do governo como um todo.
Em um governo sério, a política do ministro
da Fazenda é a política do presidente. Quando o líder do governo no Senado,
Jaques Wagner (BA), diz que a rejeição da MP, derrota fragorosa para o
Planalto, merece o “aplauso” de Lula e que é preferível um fim trágico a uma
“tragédia sem fim” da proposta assinada pelo presidente da República, o governo
desmoraliza Haddad. O ministro da Casa Civil, Rui Costa, afirmou que não sabia
as consequências da MP, documento que tem de passar por suas mãos antes de
chegar às mãos do presidente e sobre o qual tem uma opinião quase decisiva.
Sérias dúvidas surgem: em nome de quem fala o ministro da Fazenda? O que de
fato quer o presidente?
O problema em questão é o mesmo desde que foi
aprovado o novo regime fiscal - as condições de sua sustentabilidade. As
desconfianças a respeito dela cresceram muito depois que a meta estabelecida
foi mudada antes mesmo de o sistema entrar em vigor. Consultorias e economista
fora do governo preveem que o déficit zero fixado para este ano não será
atingido, nem tampouco os objetivos dos anos seguintes. Haddad tem se esforçado
para criar meios de cumpri-las. Elas envolvem, pelas regras, um esforço enorme
de arrecadação, já que não há compromisso firme de corte de gastos.
Haddad obteve apoio do Congresso no ano
passado para fechar brechas no sistema tributário pelo qual passavam
privilégios injustificáveis. Não restam muitas mais agora e, no caso da MP do
PIS/Cofins, a pressão bem sucedida dos setores empresariais no Congresso
indicou que o aumento de impostos, sem o devido debate e em uma carga já bem
alta em comparação com a de países emergentes, passou do limite do razoável.
Não há outra saída para o governo senão cuidar das despesas.
Há um diagnóstico conhecido, correto e óbvio
sobre as deficiências do regime fiscal. Um deles é a vinculação de gastos de
saúde e educação às receitas, que conduzem a uma armadilha lógica. O arcabouço
privilegia o aumento das receitas, que elevam as despesas vinculadas acima do
próprio teto do sistema, de 0,6% a 2,5% acima da inflação. Com isso, as
despesas discricionárias (investimentos e custeio da máquina) tendem a zero,
ponto do qual estarão em 2027 ou antes.
Se as receitas são privilegiadas, não faz
sentido elevar gastos tributários, como ocorre. Em seu relatório sobre as
contas do governo Lula de 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) aponta que
houve aumento de R$ 68 bilhões em benefícios (total do ano: R$ 519 bilhões),
sem que fossem determinadas fontes financeiras de compensação.
Além disso, a reinstituída correção real do
salário mínimo, que indexa, entre outros, as aposentadorias e os benefícios
sociais, como abono salarial, seguro desemprego e Benefício de Prestação
Continuada, piorou as contas. Essa fórmula de correção, junto com a indexação
de saúde e educação, trouxe despesas adicionais no ano de R$ 80 bilhões,
quantia suficiente para atingir a meta de déficit zero, calcula Marcos Mendes,
pesquisador do Insper (Valor, ontem). Já a correção dos benefícios sociais pela
inflação, e não pelo mínimo, economizariam R$ 20 bilhões no ano, estima Felipe
Salto, economista-chefe da Warren Investimentos.
Há assim formas que, dentro das regras falhas do regime fiscal, podem produzir resultados melhores. A equipe econômica tentará de novo conter gastos propondo maneiras parecidas com as que estão sendo ou foram alinhadas fora do governo, como a desvinculação de benefícios sociais do mínimo e dos gastos de educação e saúde das receitas. A chance de que prosperem dependerá de decisão do presidente Lula, que tem preferido privilegiar a opinião de auxiliares mais próximos que têm conduzido o governo de fracasso em fracasso, e desprestigiar as da equipe de Haddad, que colecionou trunfos importantes. Há ainda tempo para mudar, antes que seja tarde.
FGTS ficou somente menos inadequado
Folha de S. Paulo
STF acerta ao determinar correção ao menos
pela inflação, mas mundo político ainda se apossa do dinheiro do trabalhador
Entre várias opções, decidiu com sensatez o
Supremo Tribunal Federal ao revisar os critérios de correção dos saldos nas
contas dos trabalhadores no Fundo de Garantia dor Tempo de Serviço (FGTS).
Por 7 votos a 4, a corte estabeleceu que os
valores acompanharão a TR mais 3% ao ano e o pagamento dos lucros do fundo,
como acontece hoje, mas doravante terão também a
garantia de reposição da inflação ao consumidor medida pelo IPCA.
Essa era a posição defendida pelo Executivo, em entendimento com centrais
sindicais.
Trata-se de um posicionamento racional, dada
a necessidade de assegurar a sustentabilidade de projetos financiados pelo FGTS
nas áreas de infraestrutura e moradia popular, que em geral têm custos abaixo
das taxas de mercado.
É o caso do Minha Casa
Minha Vida, que depende dos recursos do fundo para estratos de baixa
e média renda e contratou a construção de mais de 7
milhões de moradias nos últimos 15 anos.
Correções maiores dos depósitos implicariam
desequilíbrios atuariais ou necessidade de elevar os juros para tais projetos.
Também ficou definido que a mudança vale para a frente, não impactando os
saldos passados, algo acertado.
A decisão afeta cerca de 117 milhões de
contas no FGTS. Não faria sentido, dadas as restrições financeiras da União e
em prol da segurança econômica e jurídica, que fosse imposto um custo estimado
de R$ 756 bilhões em correções retroativas, segundo cálculos, não consensuais,
do Solidariedade, partido proponente da ação em 2014.
Resolvem-se assim o passado e o presente, mas
cumpre pensar no futuro —e, nesse sentido, o formato atual do FGTS se
mostra arcaico,
inadequado e prejudicial para os trabalhadores.
O fundo recolhe 8% do salário em contas
individuais, só acessíveis em situações específicas, como compra da casa
própria, demissão e outras previstas em lei.
Em essência, o mecanismo constitui uma
poupança compulsória que, embora de titularidade do trabalhador, é de acesso
restrito, além de remunerada com taxas aquém das que seriam obtidas em
aplicações financeiras seguras.
O melhor caminho imediato seria uma
modernização ampla do sistema, tornando o FGTS um instrumento de poupança sob
poder mais efetivo de seu titular, com rentabilidade menos distante dos padrões
de mercado.
Gradualmente, deve-se reduzir o peso do fundo
em políticas públicas. É melhor que subsídios eventuais venham do Tesouro,
discriminados de forma transparente no Orçamento. O mundo político brasileiro,
infelizmente, reluta em abrir mão do controle de um dinheiro que é dos
assalariados.
Autonomia e rapapés
Folha de S. Paulo
Se chefe do BC afastou-se do ataque de Lula,
deveria evitar cortejo de Tarcísio
A experiência brasileira com a autonomia
formal do Banco Central é
recente, e os padrões de conduta a serem seguidos sob tal condição ainda não
estão bem assentados. Isso dito, é evidente que o presidente do BC, Roberto
Campos Neto, tem se deixado bajular perigosamente por setores da
política.
O episódio mais recente foi a homenagem
recebida na Assembleia
Legislativa de São Paulo,
na segunda (10), seguida de
jantar oferecido pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) —com
a presença de empresários e políticos do calibre do ex-presidente Michel Temer (MDB) e de
Gilberto Kassab (PSD).
Menos de um mês antes, os mesmos Campos Neto
e Tarcísio foram os convidados mais ilustres de um jantar
organizado por Luciano Huck, apresentador da TV Globo que há anos
demonstra a intenção de participar direta ou indiretamente da disputa
presidencial.
É perfeitamente razoável, até desejável, que
um dirigente do BC tenha relações institucionais com autoridades de todos os
níveis de governo. Nesses dois casos, porém, o economista faria melhor em
preservar certo distanciamento.
O governador de São Paulo, todos sabem, é um
potencial candidato ao Planalto que busca manter um pé na canoa do bolsonarismo
e outro na da moderação. Não à toa, Campos Neto passou a ser visto como
possível candidato a ministro da Fazenda —de um postulante eventual em um
pleito presidencial distante, de nomes e resultados incertos.
A autonomia, com mandatos para o presidente e
os diretores, foi instituída em 2021 para proteger o BC de ingerências
políticas. A norma, correta, passou bem pelo seu primeiro teste de estresse —a
saraivada de ataques por
parte de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e liderados às bases da política
monetária.
Se soube distanciar-se com serenidade das diatribes de Lula, Campos Neto deveria fazer o mesmo com os rapapés de Tarcísio e outros. Mais discrição seria recomendável nos pouco mais de seis meses que lhe restam à frente do órgão, cuja credibilidade é fundamental para o sucesso do controle da inflação numa conjuntura que se tornou mais difícil.
Democracia não é bem isso
O Estado de S. Paulo
Câmara tem legitimidade não só para manter a
criminalização do aborto, como, se quiser, agravar a pena a ele cominada. Mas
deve ter a coragem de decidir seguindo o devido rito democrático
A Câmara aprovou o regime de urgência para um
projeto de lei, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que
equipara o aborto ao homicídio simples quando a gestação for interrompida a
partir da 22.ª semana. O Poder Legislativo tem legitimidade para, se quiser,
não só manter a tipificação penal do aborto, como, no caso do projeto em tela,
ainda agravar a pena cominada ao crime. Contudo, é de estarrecer todo genuíno
democrata, seja qual for a opinião que possa ter a respeito desse projeto de
lei, o rito de tramitação escolhido pela Casa – isto, sim, reprovável por seu
espírito claramente antidemocrático.
Convém sublinhar, à guisa de esclarecimento,
em quais casos cabe a tramitação de urgência. Prevista no artigo 153 do
Regimento Interno da Câmara, a urgência poderá ser requerida quando (i) se
tratar de matéria que envolva a defesa da sociedade democrática; (ii) tratar-se
de providência para atender a calamidade pública; (iii) visar à prorrogação de
prazos legais a se findarem, ou à adoção ou alteração de lei para aplicar-se em
época certa e próxima; ou (iv) pretender-se a apreciação da matéria na mesma sessão.
Decerto o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), os líderes dos partidos e o
autor do projeto de lei elucubraram alguma contorção interpretativa para fazer
a equiparação entre os crimes de aborto e homicídio simples caber numa dessas
hipóteses de urgência. Mas a matéria, por óbvio, urgente não é.
Dois objetivos correlatos estão evidentes
nesse ardil para atropelar o devido processo democrático de discussão de
questões de interesse da sociedade no Congresso Nacional. O primeiro deles é
acelerar a tramitação do projeto, ao custo da realização de debates mais
aprofundados sobre a pertinência ou não de agravar a pena imposta às mulheres
que decidem abortar – em particular àquelas autorizadas a fazê-lo nas três
hipóteses previstas para o chamado aborto legal. Quando tramitam em regime de
urgência, os projetos de lei não passam pelo crivo das comissões temáticas da
Câmara e do Senado, sendo apreciados diretamente pelo plenário de ambas as
Casas Legislativas. A qualidade do debate público, naturalmente, é comprometida
pela premência do tempo – o que é razoável quando se está diante daquelas
hipóteses enumeradas acima.
O debate sobre o aborto, entretanto, além de
não ser urgente – pois “urgente”, ao que parece, é a necessidade da Câmara de
se contrapor ao Supremo Tribunal Federal, que está em vias de julgar a
constitucionalidade de uma resolução do Conselho Federal de Medicina que proíbe
uma prática médica abortiva, mesmo nos casos de aborto legal –, deve ser
travado com transparência e, principalmente, coragem republicana. Nesse
sentido, só o fato de o requerimento de urgência ter sido aprovado em votação
simbólica, quando os deputados não são obrigados a se manifestar publicamente
sobre o que estão votando, já não se coaduna com o espírito democrático. Eis o
segundo objetivo: blindar os deputados de quaisquer ônus políticos.
Ora, que tenham coragem para defender na
tribuna as suas convicções sobre a equiparação entre o aborto e o homicídio
simples, apresentando argumentos e votando segundo suas consciências. A
democracia representativa funciona assim. E seja qual for a decisão da Câmara,
como representante do povo brasileiro, haverá de ser respeitada. O que é
descabido é a privação de um debate mais qualificado sobre um tema que é
particularmente sensível para grande parte dos cidadãos.
O espírito das leis editadas como “desafio” a
outros Poderes não é bom para o Legislativo nem muito menos para a democracia.
E fica claro que é esse o espírito que anima Sóstenes Cavalcante quando o
deputado diz querer “ver se ele (o presidente Lula da Silva) vai sancionar ou
vetar esse projeto sobre aborto”.
Uma lei não se presta à revanche. A
contaminação da legislatura pelo desejo de desforra nunca deu em bom lugar.
Justamente por sua sensibilidade, é preciso discutir o projeto de lei do
deputado fluminense com serenidade e, sobretudo, espírito público.
Novos problemas, velhas práticas no ensino
superior
O Estado de S. Paulo
Ante pressões de grevistas das instituições
federais de ensino, o governo adia soluções de longo prazo e responde com os
artifícios de sempre: mais obras e mais concessão de bolsas
Se a fé move montanhas, como diz o
ensinamento bíblico, dinheiro e obras movem popularidade, informa o evangelho
lulopetista. Só essa convicção explica tamanha obsessão do governo de responder
a crises e desafios complexos com obras e recursos, preferencialmente no
formato de concessão de bolsas e anúncios palanqueiros de novas instalações
físicas.
Foi o que se viu nesta semana, quando o
presidente Lula da Silva e o ministro da Educação, Camilo Santana, anunciaram
um novo pacote de investimentos: cerca de R$ 5,5 bilhões de recursos federais
integrarão o Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC) para a
consolidação de universidades federais, a criação de 10 novos campi e a
melhoria da infraestrutura de 31 hospitais universitários, com a criação de 8
novos hospitais. O governo também anunciou a ampliação do Programa Bolsa
Permanência (PBP), destinado a estudantes de baixa renda – tudo em meio à
extensão da greve de professores e servidores das instituições federais de
ensino, hoje divididos entre um sindicato que deseja encerrá-la e outro que, de
maneira inflexível, espera prolongá-la.
Eis o viço do governo: anúncios envolvendo
cifras bilionárias, abertura de novas vagas e concessão de bolsas costumam
estar entre as prioridades, sobretudo quando o governo, confrontado por
ausência de melhores soluções de médio e longo prazos, recorre ao atalho
habitual dos anúncios de impacto. Não há dúvida sobre as deficiências na
infraestrutura das universidades federais, onde são escassos os recursos para
manter a salubridade de salas de aula, bibliotecas e auditórios, assim como
ampliar e preservar a qualidade de laboratórios, refeitórios, moradias,
equipamentos de saúde e centros de convivência. E, assim como o recém-anunciado
Pé-de-Meia – bem-vindo programa de transferência de recursos para incentivar
estudantes a permanecer no ensino médio –, também é inquestionável a relevância
de bolsas para estudantes mais pobres seguirem nas instituições federais de
ensino.
Obras e recursos são relevantes, mas
insuficientes quando se permanece na superfície dos números. Há um método
recorrente, com o qual Lula reafirma sua crença inabalável no poder do ensino
superior e na sua aposta pela expansão, dando atenção desmedida à criação de
unidades e à expansão de vagas, enquanto dedica menos espaço e cuidado ao que é
mais complexo e invisível: o aprimoramento da gestão, o aperfeiçoamento dos
sistemas de avaliação e a resolução dos problemas de eficiência, incluindo
formas de contratação, qualidade da produção de pesquisa, modelos de
aproximação com o setor privado e modernização dos currículos e práticas
acadêmicas.
Se é verdade que as localidades dos novos
campi universitários foram escolhidas com base nos critérios de cobertura de
matrículas públicas, também é verdade que o governo ainda deve uma mudança de
rota na sua escala de prioridades. Primeiro, precisa perceber que graduação vai
muito além de um diploma, sendo necessário redefinir políticas públicas e
reformular processos pedagógicos para superar o problema da (má) qualidade da
educação superior. Segundo, convém reconhecer que, juntamente com mais recursos
e mais vagas, é preciso construir melhores políticas de incentivos e
desincentivos para o melhor uso do orçamento público. Terceiro, é hora de
iniciar uma inadiável revisão de prioridades, uma vez que o Brasil investe no
ensino superior com padrão de país rico e investe na educação básica no nível
de segunda classe – o inverso do que ensinam boas práticas apontadas pela
literatura especializada.
Acossado pela greve, no entanto, o governo
recorre aos artifícios de sempre. “Se vocês analisarem o conjunto da obra, vão
perceber que não há muita razão para essa greve estar durando o que está
durando, porque quem está perdendo não é o Lula, não é o reitor, são o Brasil e
os estudantes brasileiros”, disse Lula, em encontro com reitores. Ele tem
razão. Mas há de oferecer-lhe uma constatação adicional, que também desabona o
presidente: o Brasil perde duplamente, reprovado no teste das más escolhas,
seja por uma paralisação que prejudica os alunos e o País, seja pelos atalhos
demagógicos escolhidos pelo governo para atenuar as pressões dos grevistas.
Lula de mãos atadas
O Estado de S. Paulo
Indiciamento do sr. Juscelino Filho diz mais
sobre um governo fraco do que sobre o ministro
O indiciamento do ministro das Comunicações,
Juscelino Filho, atolado por suspeitas de malversação de recursos públicos no
Maranhão, diz mais sobre o governo Lula da Silva do que sobre seu auxiliar. E
não são poucas as enrascadas em que o político do União Brasil se meteu.
Após reportagens em série do Estadão revelarem
uma farra no uso do orçamento secreto na Companhia de Desenvolvimento dos Vales
do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) – a estatal do Centrão –, o leitor
deste jornal já conhece bem o histórico do sr. Juscelino.
Vale a pena lembrar alguns episódios nada
abonadores. Quando deputado, Juscelino destinou verba milionária para asfaltar
uma estrada que passa na frente de uma fazenda sua, em Vitorino Freire (MA).
Ele ainda omitiu do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) parte de seu patrimônio
e, já como ministro, recebeu diárias – ou seja, dinheiro público – para ir a um
leilão de cavalos de raça. Sua cidade natal, administrada pela irmã, firmou
contratos com empresas de amigos.
A lista é longa. Mas nada disso foi
suficiente para sacá-lo do cargo.
Diante de tantos indícios de irregularidades
no repasse de emendas parlamentares, a Polícia Federal (PF) deu início a uma
investigação. Segundo o indiciamento, o ministro é suspeito de corrupção,
lavagem de dinheiro e organização criminosa. Nada menos. O Estadão apurou
que o relatório final cita também falsidade ideológica, frustração de caráter
competitivo de licitação e violação de sigilo em licitação.
Tudo isso, porém, não parece grave o bastante
para Lula demitir sumariamente Juscelino Filho tão logo a PF o indiciou.
Alçado do baixo clero da Câmara, o ministro
representa um problema para o governo, não por sua notória desqualificação como
gestor público, mas por uma potencial rebelião no União Brasil em razão de sua
queda. O indiciamento ainda veio a calhar em uma semana em que o Congresso
andou bastante indócil com o governo Lula da Silva.
Segundo o líder do governo no Senado, Jaques
Wagner (PT-BA), o desfecho depende do presidente, o que é óbvio, e de um
posicionamento do União Brasil. Por ora, a legenda não soltou a mão do
correligionário, a quem manifestou “total apoio” alegando “uma possível atuação
direcionada e parcial na apuração”. Para o terceiro maior partido da Câmara,
investigações semelhantes no passado levaram a “condenações injustas”.
Em Genebra, onde participa de um evento da
Organização Internacional do Trabalho (OIT), Lula disse que “o fato de o cara
ser indiciado não significa que o cara cometeu um erro”. “Agora, eu preciso que
as pessoas provem que são inocentes”, afirmou.
O presidente até pode vir a demitir Juscelino Filho – hoje, amanhã ou sabe-se lá quando. Porém, esse imbróglio já se arrasta desde janeiro de 2023, logo após a posse para seu terceiro mandato. Seja qual for a decisão de Lula da Silva, o episódio só reforça que um governo fraco como o dele não pode se dar ao luxo de indispor qualquer partido de sua base rarefeita.
O desafio da subalimentação
Correio Braziliense
Cerca de 9 milhões de brasileiros estão na
situação de insegurança alimentar em um país de clima tropical e boa parte do
território com solo fértil
A fome no mundo e todos os problemas
subsequentes não deveriam ser mais uma questão a ser debatida. Nesta semana,
estão reunidos em Assunção, no Paraguai, ministros e autoridades de
desenvolvimento social do Mercosul com o objetivo de discutir políticas,
programas e estratégias voltadas para o desenvolvimento social e o combate à
pobreza.
O Mapa da Fome no mundo ainda é assustador,
e, caso as estatísticas permaneçam, os países-membros da Organização das Nações
Unidas (ONU) não conseguirão bater a meta, estabelecida em 2015, de zerar a
fome até 2030. O relatório revela que 111 países enfrentam situação crônica de
falta de alimentos, o que significa que o que essas populações consomem é
insuficiente para manter uma vida ativa e saudável. Fazem parte desse grupo
nações em que essa condição atinge mais de 2,5% de seus habitantes.
No Brasil, em 2022, o número de pessoas que
enfrentavam a insegurança alimentar e nutricional grave passou de 33 milhões, o
correspondente a mais de 15% da população brasileira. É verdade que, no último
ano, a situação melhorou, já que parte desse contingente — 24,4 milhões de
pessoas — deixou o grupo da insegurança alimentar, uma queda relevante de 73%,
e, aqui, estamos falando também de outros fatores, como renda, falta de acesso
à água, degradação dos solos, crises econômicas e de governança. Ainda assim,
cerca de 9 milhões de brasileiros estão nessa situação em um país de clima
tropical, sem furacões, vulcões, tsunamis e com um solo fértil (na maior parte
do território), em que é totalmente possível produzir o que se consome.
Iniciativas como a da Companhia Nacional de
Abastecimento (Conab), que promove leilões eletrônicos esporadicamente para
adquirir cestas de alimentos destinadas ao atendimento dos povos indígenas
Yanomami de Roraima e do Amazonas, são sempre muito bem-vindas, mas só chegam a
alimentar uma população inferior a 40 mil pessoas em situação de insegurança
alimentar e nutricional — quantidade pequena dada a dimensão populacional do
Brasil.
Fato é que faltam apenas seis anos para 2030,
cinco anos e meio para sermos mais exatos, e o Mapa da Fome completa 10 anos em
2025, com desafios ainda maiores se comparado à época de sua criação. Se antes
os quadros de fome eram mais significativos em determinadas regiões, como no
Nordeste, e em pequenos municípios, a verdade é que, na última década, chegou
aos centros urbanos das outras regiões brasileiras.
Especialistas da Organização das Nações
Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) falam, inclusive, não mais na
fome de não comer, mas na fome de comer mal. Com a pandemia e o aumento do
preço dos alimentos, consolidou-se a prática da substituição e, geralmente, de
um alimento de qualidade por um de má qualidade nutricional.
Para completar, não bastasse debatermos sobre insegurança alimentar no século 21, ainda assistimos a histórias nefastas envolvendo a fome, como a recente tragédia de um menininho privado de se alimentar e, quando o fazia, comia ração de cachorro. Morreu pela atitude de um padrasto covarde e assassino que achou que a criança "merecia" esse castigo.
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