sexta-feira, 14 de junho de 2024

Vera Magalhães - Mulheres na fogueira da sucessão de Lira

O Globo

Presidente da Câmara rasga a fantasia de defensor dos grandes temas que chegou a envergar e mergulha a Casa no pior do atraso

Arthur Lira passou 2023 fazendo retrofit de sua imagem: de rei do baixo clero — alcunha, aliás, que nunca fez jus à extensa carreira de cacique na Casa —, passou a atuar como avalista das grandes questões econômicas e acabou o ano incensado pelo mercado. À medida que se aproxima sua sucessão, no entanto, Lira se volta ao perfil de presidente do “sindicato dos deputados”, como ele mesmo designa o grupo amplo e heterogêneo que aglutinou em torno de si.

Ao ceder à pressão para aprovar a urgência na apreciação do Projeto de Lei 1.904, foi longe demais. Por mais que tente minimizar a gravidade do que a matéria propõe, na prática ele mergulhou a Casa no obscurantismo total e jogou as mulheres, sobretudo as mais vulneráveis, na fogueira.

Não há como atenuar uma proposta concebida para encarcerar mulheres e transformar vítimas de violência sexual em homicidas. Os argumentos que Lira usa não são objetivos. Não é possível dizer que o texto que valerá só disporá sobre um procedimento específico, a assistolia fetal.

O que a sociedade tem de concreto para analisar são os projetos como passam pelas diversas instâncias da Câmara. Lira usa o expediente surrado de apontar fake news da parte dos que o criticam, mas o próprio site da Câmara trazia a seguinte manchete: “Câmara aprova urgência para projeto que equipara aborto após 22 semanas a homicídio”

É disso que se trata, todo o resto é tergiversação de quem tenta justificar o injustificável: usar a vida e os direitos das mulheres como moeda de troca para atender a desígnios de bancadas que fazem da religião palanque político, distorcendo conceitos básicos do cristianismo, sejam católicos ou evangélicos os prosélitos interessados nessa matéria retrógrada.

Como justificar à luz da religião uma proposta que relativiza as mais sórdidas formas de violência contra mulheres e meninas e joga sobre as vítimas o peso da lei, mesmo se buscarem amparo nos casos de aborto legal? Esse projeto coloca o Brasil como pária global na discussão, num momento em que os países mais desenvolvidos, mesmo os de tradição católica, investem na descriminalização da mulher em casos de aborto.

Sim, é fato que não existe consenso na sociedade brasileira para avançar para além dos casos de aborto legal já previstos hoje. O Congresso tem de refletir a sociedade, mas não mergulhá-la nas trevas em virtude de lobbies influentes que enxergam na troca da guarda no Salão Verde uma oportunidade de passar a pior boiada possível, uma pauta cheia de interesses paroquiais que não atende às prioridades do país.

Lira gosta de se gabar de que nada na Câmara anda sem seu aval. Até aqui, também se vangloriava de não ter deixado prosperar sob seu comando nenhuma pauta de costumes que atendesse ao que chama de “dois extremos”, uma maneira bastante maniqueísta de juntar no mesmo balaio a agenda da extrema direita em temas como drogas e segurança e as reivindicações da esquerda progressista e identitária.

Agora que precisa manter coesa essa base, resolveu liberar geral. O projeto que anula delações de réus presos é outra excrescência dessa fase, além de tudo inócua para os fins a que se destina, uma vez que uma lei não pode retroagir nesses casos — e, portanto, o vale-tudo não poderá beneficiar Jair Bolsonaro, Domingos Brazão e outros investigados.

Assim, na reta final, Lira rasga a fantasia de defensor dos grandes temas que chegou a envergar e mergulha a Câmara no pior do atraso. Sob os olhos inertes de Lula, uma vez que este fim de feira só é possível porque o Executivo já não tem o menor controle sobre o andamento da pauta do Congresso — basta ver que o presidente delegou ao Senado encontrar uma saída para compensar as desonerações.

 

2 comentários:

Daniel disse...

Muito bom! Lira realmente mostra sua face verdadeira, apoiando a urgência para este projeto nojento que criminaliza vítimas e só é defendido por religiosos radicais e bolsonaristas.

ADEMAR AMANCIO disse...

O tema do aborto é complicado,quando o feto,ou embrião,começa a sentir dor?