Valor Econômico
A natureza tem suas próprias leis e se
manifesta em função de fatores e causas que não são apenas naturais. Ela não é
conformista com a prepotência e os abusos do homem
Novas revelações, de interesse para vários
campos do conhecimento, são feitas à medida que as águas baixam no Rio Grande
do Sul, nos diferentes lugares em que inundaram e devastaram. Porém, vão ser
reconhecidas como revelações quando as diferentes ciências se interessarem por
elas e as interpretarem e explicarem cientificamente por que são revelações:
causas e consequências do que ocorreu.
As equipes de intervenção contam com os profissionais costumeiros e necessários, independentemente das peculiaridades do desastre e dos âmbitos da realidade natural e social atingidos. Mas nem todas as áreas do conhecimento científico e técnico, que poderiam e deveriam nelas estar, lá estão. De certo modo há muito de senso comum na sua formação e mobilização.
Da área de humanas, os psicólogos são
praticamente os únicos solicitados a atender as vítimas para o apoio de que
necessitam na emergência. Embora haja consequências sociais muito graves, na
repercussão pessoal, em eventos como esses, não tem havido, na devida extensão,
interesse pela contribuição e apoio que possam dar os demais especialistas.
Cito a importância de um profissional, Sérgio
Perazzo, falecido em 2023, médico e psicodramatista, que estudou, nas
enfermidades decorrentes de eventos assim, as consequências da morte inesperada
na vida de parentes e amigos do morto.
Suas pesquisas mostraram que passam a ter
problemas de saúde decorrentes do não sepultamento do morto “dentro” de quem
padece os efeitos da ausência. Os dos ritos inconscientes, também próprios do
luto, na observância da temporalidade da assimilação da ausência e do
preenchimento simbólico do vazio com base na cultura popular e na tradição que
dão sentido ao que de sentido carece.
Esse, certamente, é um dos problemas
desconhecidos que podem estar surgindo nos locais de enchentes e
escorregamentos. Não se trata apenas dos mortos não localizados e não
sepultados segundo as crenças e os costumes, como muitos lamentam.
Trata-se de que os sepultamentos, pela
drástica ruptura na vida coletiva, não estão sendo realizados também no
interior de cada uma das pessoas de uma rede de pertencimento, a morte e os
desaparecimentos como morte social.
As ciências sociais têm sido lentas na
definição dos desastres naturais como problema de investigação e de
fundamentação de providências de apoio e de assistência às vítimas.
Em primeiro lugar por sua definição como
sujeito social, como modo de situá-la na tragédia e de compreendê-la enquanto
autora possível e principal do encaminhamento das soluções de socorro. Mas
também como autora de ações possíveis de reforma social e política necessárias
para enfrentar as causas das ocorrências e de sua repetição.
O que aconteceu em mais de uma ocasião no Rio
Grande do Sul, em período recente, com crescente gravidade, não é manifestação
de “capricho” dos rios. A natureza tem suas próprias leis e se manifesta em
função de fatores e causas que, cada vez mais, não são apenas naturais.
A natureza não é conformista com a
prepotência e os abusos do homem. Ela não reconhece a precedência da motivação
antissocial das vantagens pessoais em relação ao que ela é e possibilita.
Por trás dos desastres há vontades e/ou
omissões humanas. Aqui, a sociedade está cada vez mais sujeita ao poder de
individualidades movidas por interesses políticos e econômicos antissociais,
completamente despreparadas para prever e evitar essas ocorrências e até
desinteressadas na suposição de que a probabilidade de um desastre é mínima.
Quando se trata de vidas humanas a única probabilidade aceitável é zero.
Cada vez mais se usa a justificativa amoral
de que o desastre foi uma fatalidade. Essa mentalidade mostra que a banalização
da vida, no Brasil, vem se transformando em projeto político, baseado na
minimização do povo como sujeito de direitos, como se viu nas providências de
Estado equivocadas em relação à pandemia de covid.
É preciso considerar que desastres, como os
do Sul, afetam profundamente as pessoas por eles alcançadas na medida em que
mutilam os sujeitos de referência de seu processo interativo. A sociedade, na
vida cotidiana, depende desses sujeitos para se reproduzir.
A sociedade não se reproduz no vazio. Mesmo
quem não se identifica com a sociedade em que vive, não tem como sobreviver
solitariamente. Depende de relacionamentos sociais que reiteram o modo de ser
da sociedade, mesmo que para ser contra.
A ruptura social dos desastres dessocializa
as pessoas, os grupos e as comunidades, cria a incerteza do provisório,
invalida normas pela ausência das referências de que carece a sociabilidade
humana. Os ausentes assombram na espera interminável da volta.
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