Governo erra ao vender arroz importado tabelado
O Globo
Desabastecimento, se houver, será
consequência do controle de preços, pois 84% da safra gaúcha está colhida
Não se pode dizer que o governo federal não
tenha agido em resposta às chuvas que arrasaram o Rio Grande do
Sul. Entre outras iniciativas, anunciou a concessão de um
vale-reconstrução para cerca de 200 mil famílias, um programa para compra de
imóveis por meio do Minha Casa, Minha Vida e créditos para empresas atingidas.
Mas o Planalto erra feio ao intervir no mercado com a desnecessária importação
de arroz, sob pretexto de equilibrar os preços.
Depois de um vaivém de liminares, a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) realizou nesta quinta-feira um leilão para comprar 263 mil toneladas de arroz importado, movimentando R$ 1,3 bilhão. Poderá haver outros. A Medida Provisória 1.217/2024 autoriza a compra de até 1 milhão de toneladas em 2024. O argumento do governo é que o Rio Grande do Sul produz quase 70% do arroz do Brasil, e os estragos causados pelas chuvas poderiam desestabilizar o mercado, favorecendo a especulação e encarecendo o produto.
Não é apenas a insistência na importação que
causa estranheza, mas também a maneira estapafúrdia como o governo pretende
distribuir o arroz estatal. Pelo que foi anunciado, o produto será vendido em
embalagens de 5 quilos com os logotipos da Conab e da União, além da frase:
“Produto adquirido pelo governo federal”. Não bastasse a bizarrice, o governo
ainda tabelou o quilo em R$ 4. Depois de ressuscitar o tabelamento, só falta
trazer de volta os “fiscais do Sarney”, que ficaram populares durante o Plano Cruzado
tentando combater o desabastecimento, consequência inevitável de todo controle
de preços. Mesmo no PT não faltam economistas competentes para explicar por que
o tabelamento não tem como dar certo. Os brasileiros já viveram essa
experiência e não têm saudades.
O pior é que nem havia necessidade de
importar arroz. Quem diz isso é a Confederação da Agricultura e Pecuária do
Brasil (CNA), que entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no
STF contra a decisão do governo. A CNA argumenta que 84% da área plantada no
Rio Grande do Sul já havia sido colhida antes do início das chuvas, por isso
não há risco de faltar a mercadoria. Se houver desabastecimento, a única causa
agora será o tabelamento. Nenhum produtor aceitará vender por um preço abaixo
do que custa produzir e distribuir.
Além de considerar, com razão, a decisão do
governo “uma medida abusiva” de intervenção na atividade econômica,
restringindo a livre concorrência, a CNA diz que ela tem potencial para
desestruturar a cadeia produtiva, criando instabilidade de preços e prejudicando
os produtores locais. “O arroz produzido e colhido pelos produtores rurais
gaúchos certamente sofrerá com a predatória concorrência de um arroz
estrangeiro, subsidiado pelo governo federal e vendido no Brasil fora dos
parâmetros econômicos de fixação natural de preços”, afirma.
Como já fez ao escolher o ex-ministro Paulo
Pimenta — pré-candidato ao governo do Rio Grande do Sul — para coordenar os
trabalhos de reconstrução no estado, mais uma vez o governo do presidente Luiz
Inácio Lula da
Silva politiza uma questão técnica. Não tem cabimento levar às gôndolas dos
supermercados arroz tabelado com preço inferior ao da concorrência, ainda mais
estampado com a logomarca do governo. Sem disfarce, o Planalto aproveita os
efeitos deletérios das chuvas para tentar faturar dividendos políticos.
Não faz sentido policiais e militares
aposentados comprarem mais armas
O Globo
Portaria amplia quantidade que eles podem
adquirir, abrindo brecha para alimentar arsenal que abastece crime
A decisão do Exército de ampliar de dois para
quatro o número de armas que podem ser adquiridas por policiais e bombeiros
militares inativos é um contrassenso. A portaria, publicada na terça-feira,
autoriza também que policiais e bombeiros inativos mantenham um fuzil
particular, desde que tenha sido comprado quando estavam na ativa. O
afrouxamento das restrições aconteceu depois de pressões da bancada da
segurança pública no Congresso. Como mostrou
reportagem do GLOBO, é a terceira vez neste ano que o Exército
altera normas sobre compra e porte de armas por agentes de segurança, ora
reduzindo, ora aumentando os limites.
Não faz sentido ampliar o número de armas
para agentes que não estão mais na ativa. Por mais que se trate de
profissionais experientes, a decisão abre brecha para haver mais armas em
circulação, além da quantidade excessiva já existente. O argumento de que o
arsenal ficará bem guardado é frágil. Não se duvida das boas intenções de
policiais e bombeiros, mas nem o Exército consegue impedir furtos e extravios,
como têm mostrado episódios recentes. Tem sido cada vez mais frequente o uso de
armas obtidas legalmente pelo crime organizado.
É verdade que um dos primeiros atos do atual
governo foi revogar o conjunto de decretos da gestão anterior que facilitavam o
acesso a armas e munições. Compra e porte de arma — especialmente as de uso
restrito — ficaram mais difíceis. Mas até agora o Ministério da Justiça não
apresentou um plano factível para reduzir o arsenal que já está em poder da
população, ao alcance do crime. O recadastramento feito no ano passado, sob o
então ministro Flávio Dino, revelou a existência de quase 1 milhão de armas. E
isso é apenas parte do arsenal.
No Congresso, a bancada da segurança pública
tem atuado para afrouxar as restrições. No fim do mês passado, a Câmara aprovou
um projeto que derruba trechos do decreto sobre armas do governo Lula. Uma das
principais alterações acaba com a exigência de que clubes de tiros fiquem a
pelo menos 1 quilômetro de escolas. A proposta prevê mudanças também na rotina
de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs), para os quais não
haverá mais o requisito de um número mínimo de treinos e competições.
Um país onde se contam tiroteios aos montes e
em que mortes de inocentes por balas perdidas se tornaram uma odiosa rotina
deveria levar mais a sério o risco das armas. Quanto maior a quantidade,
maiores as chances de tiros — afinal, para isso elas são feitas. Por isso seu
uso deve ser restrito a situações onde são absolutamente necessárias. Não é o
caso dos agentes inativos. Armas e munições legais, mesmo nas mãos de agentes
de segurança, não são garantia de nada.
Taxação de importados é política mal debatida
Folha de S. Paulo
Tributação de compras pequenas é votada de
modo sorrateiro; revisão ampla do entulho protecionista é deixada de lado
A taxação federal de compras internacionais
de pequeno valor, aprovada na
quarta-feira (5) pelo Senado, é um pequeno exemplo de como políticas
públicas podem ser estabelecidas de forma opaca, sem maior debate de mérito nem
identificação dos interesses envolvidos.
A medida, que ainda depende de novo exame
pela Câmara dos
Deputados e da sanção do presidente da República, foi incluída
sorrateiramente num projeto que tratava de assunto diverso —os eternos
subsídios à indústria automobilística nacional—
e votada de maneira simbólica, sem a identificação nominal dos apoiadores.
Tudo isso porque parlamentares e o governo
Luiz Inácio Lula da
Silva (PT),
que se omitiu, equilibravam-se entre o apoio à proposta e o temor de
responderem pelo aumento de preços de artigos importados consumidos por
estratos pobres e remediados da população.
Em tais circunstâncias, pode-se imaginar que
o escrutínio técnico da taxação, se houve algum, passou longe da transparência.
O tema está em pauta pelo menos desde o
governo Jair
Bolsonaro (PL), impulsionado por
queixas de empresários que apontam fraudes e concorrência desleal no varejo —o
que é plausível e conta com o endosso da Receita
Federal.
Na época, as discussões para uma medida
provisória destinada a elevar a tributação foram publicamente desautorizadas
pelo então presidente, provavelmente preocupado com sua popularidade.
Na administração petista, a tese foi
encampada pelo ministro da Fazenda, Fernando
Haddad, como uma das providências para ampliar a arrecadação e
cobrir parte do déficit provocado pela escalada de gastos públicos. Lula, no
entanto, também fugiu do risco de desagradar eleitores e tirou suas digitais da
iniciativa.
O pleito empresarial acabou tendo acolhida no
Congresso, que até aqui fixou tarifa de importação de 20% sobre as compras até
US$ 50 —sabe-se lá com que critérios. As operações já estão sujeitas ao ICMS,
estadual, de 17%.
Há questões mais amplas em torno da medida.
Boa parte da indústria de fato sofre com a tributação excessiva e caótica sobre
o consumo no país. Essa distorção deve ser enfrentada por meio da reforma dos
impostos hoje em tramitação.
De outro lado, o Brasil é um dos países mais
fechados do mundo às importações, em nome de uma alegada proteção à produção
nacional que gera ineficiência econômica e prejudica consumidores. A revisão do
entulho protecionista tem sido historicamente ignorada por governo e Congresso.
Arejar a caserna
Folha de S. Paulo
Abertura para mulheres voluntárias é
bem-vinda; falta rever serviço obrigatório
"Queremos mulheres armadas até os
dentes", foi a frase de gosto duvidoso que o ministro da Defesa, José
Múcio Monteiro, escolheu para o anúncio de um acordo com os comandantes
militares para ampliar a presença feminina nas Forças
Armadas. "Queremos o fim da discriminação contra mulheres na
caserna" seria mais apropriado.
Pelo que ficou acertado entre o ministro e os
oficiais-generais, mulheres que completarem 18 anos em 2025 poderão
participar, em caráter voluntário, do sistema de alistamento militar,
que seleciona recrutas para servir a partir de 2026.
Pode-se celebrar o acordo como mais um passo
no tortuoso processo de reduzir as resistências dos militares à presença
feminina, mas a escolha do alistamento como forma de acesso parece equivocada.
Tal sistema, obrigatório para os homens, não
é exatamente uma porta de entrada na carreira militar. Os conscritos permanecem
na Força por 12 meses, prorrogáveis até o limite de 96. O jovem ingressa como
soldado e, com o tempo máximo permitido, pode deixar as fileiras como 3º
sargento.
Essa fórmula representa mais um hiato na
trajetória de vida dos jovens do que um atrativo. Em grande parte dos países
desenvolvidos e democráticos, entre eles EUA, Reino Unido, Alemanha e França,
o alistamento já foi há décadas substituído pelo serviço voluntário com
possibilidade de transformar-se numa carreira.
No Brasil, os contingentes recrutados têm
diminuído, mas há grande resistência do generalato em acabar com o serviço
obrigatório —o caminho mais correto a seguir, gradualmente que seja.
Mulheres já chegam às Forças Armadas,
predominantemente por escolas de oficiais, mas sua participação em unidades de
combate ou de elite ainda é bastante limitada. A exceção é a Marinha, que as
aceita como fuzileiras navais.
O que a experiência internacional ensina é
que mulheres são
perfeitamente capazes de atuar em todas as posições militares, tanto
em situações de treinamento como de guerra real. Se há requisitos de capacidade
física para determinadas funções, candidatas a esses postos devem ser
submetidas a testes de aptidão individual.
O que não faz sentido é o veto ao gênero, que parece ainda inscrito na mentalidade de alguns generais.
As blusinhas e a República de Alagoas
O Estado de S. Paulo
No jogo temerário para recuperar
popularidade, governo não quis assumir sua posição e por pouco não sofreu
derrota numa pauta da agenda econômica, até então poupada pelo Congresso
Após muita polêmica, o Senado aprovou um
projeto que restabelece a incidência de Imposto de Importação sobre as compras
internacionais de até US$ 50. A taxação havia sido incluída no projeto de lei
que criava o Programa Mobilidade Verde e Inovação (Mover), e por pouco não saiu
do texto final.
Relator do projeto no Senado, Rodrigo Cunha
(Podemos-AL) fez da proposta uma plataforma política para promoção de si mesmo
– e, há que reconhecer, foi muito bem-sucedido em seu objetivo. Não que o
aumento dos preços das blusinhas realmente fosse o foco da preocupação do
senador alagoano. O irônico é que, de fato, Cunha tinha um bom ponto.
Por mais correta que seja a tributação das
compras em plataformas internacionais, como já defendemos neste espaço, o tema
jamais deveria ter sido proposto da forma como foi, por meio de um “jabuti” no
projeto de lei que cria o Mover, destinado à indústria automotiva.
Ao se colocar contra a taxação e retirar o
trecho do projeto de lei, Cunha angariou uma atenção que nunca havia recebido
desde que chegou ao Senado, em 2019. Agora, todo o País conhece o senador do
baixo clero que será vice-prefeito na chapa de João Henrique Caldas (JHC). Se
tudo der certo para o clã, JHC será reeleito prefeito de Maceió neste ano,
renunciará ao cargo em 2026 para disputar o Senado e deixará a capital alagoana
aos cuidados de Cunha – eis o verdadeiro interesse do senador.
A disputa política em Alagoas só ganhou
visibilidade nacional porque o movimento vai de encontro aos planos do
presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que também pretende concorrer a uma
vaga no Senado daqui a dois anos. Na disputa por votos, Cunha e JHC seriam os
políticos que lutam contra o aumento de impostos, enquanto Lira ficaria com a
pecha de vilão. Lira, afinal, foi o fiador de um acordo entre o governo federal
e a Câmara para viabilizar a cobrança de 20% de Imposto de Importação sobre as
compras em plataformas estrangeiras.
A promessa de Lula da Silva de que vetaria a
taxação das bugigangas era, evidentemente, conversa fiada. Tudo que o
presidente queria era se livrar do ônus político da decisão. O Ministério da
Fazenda já pretendia estabelecer o Imposto de Importação sobre as compras desde
o ano passado e só recuou depois que até a primeira-dama Rosângela Lula da
Silva se meteu no debate.
Ao fim dessa novela, o Senado aprovou o
texto-base do projeto que criava o Mover por 67 votos favoráveis e nenhum
contrário. A impopular emenda jabuti das blusinhas, por sua vez, foi apreciada
em seguida, em votação simbólica, na qual nenhum senador precisou carimbar suas
digitais.
O texto, agora, volta à Câmara. Até a próxima
semana, o governo terá o desafio de esfriar os ânimos de Lira, que julga ter
havido quebra de acordo. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, estava em
Roma, em encontro com o papa Francisco para defender a taxação dos super-ricos,
mas foi cobrado por Lira por telefone, que ameaçou, inclusive, derrubar todo o
projeto do Mover caso o problema não fosse resolvido no Senado.
As blusinhas foram mais um episódio de
desarticulação política com o Legislativo. Da forma como o debate evoluiu nesta
semana, ficou parecendo que tudo foi culpa do senador Rodrigo Cunha, e seria
muito cômodo para o governo acreditar nessa versão.
Na verdade, Cunha apenas se aproveitou da
atitude pusilânime do governo para atrair holofotes para si mesmo. Tivesse o
governo sido firme a respeito da importância da medida para trazer isonomia à
indústria e ao varejo locais, como defende o vice-presidente Geraldo Alckmin, e
para reforçar a arrecadação, tema prioritário para o ministro Fernando Haddad,
nada disso teria acontecido.
Nesse jogo temerário para recuperar a
popularidade de maneira populista, o governo Lula da Silva quase sofreu uma
derrota em uma pauta da agenda econômica, até então poupada pelo Congresso,
porque foi incapaz de unificar e assumir um discurso sobre o assunto. A
continuar dessa forma, não tardará para que isso venha a ocorrer.
A ética dos arruaceiros
O Estado de S. Paulo
Cenas vergonhosas protagonizadas por
desordeiros no Conselho de Ética mostram que essa ralé não respeita nem os
adversários nem o voto que recebeu. Ou seja, não respeita a democracia
Diz muito sobre o atual DNA do Congresso
Nacional a vergonhosa baderna que transformou o Conselho de Ética da Câmara dos
Deputados em uma espécie de “conselho de ética dos arruaceiros”. Na sessão que
livrou o deputado André Janones (Avante-MG) da cassação pela prática de
“rachadinha” – quando parte do salário de funcionários do gabinete é repassada
ao parlamentar –, assistiu-se a muito mais do que a repetição da hipocrisia e
da indulgência, às quais congressistas recorrem para encobrir malfeitos de colegas.
Antes fosse algo extraordinário, a entrar no anedotário de uma casa de baixo
prestígio. O que se viu, ao contrário, foi a realidade exposta de um desvio
permanente: o Congresso Nacional, a instituição que deveria ser a sede da
democracia, isto é, do respeito ao dissenso, vem sendo vilipendiado por uma
ralé que não honra o voto que recebeu.
Além do insulto à inteligência alheia, com a
impunidade de um parlamentar sobre quem pairavam todas as evidências, houve
empurrões, xingamentos e palavras de baixo calão, e só não se chegou às vias de
fato porque os valentões foram contidos.
A molecagem envolveu, primeiro, os deputados
Nikolas Ferreira (PLMG) e o próprio André Janones, depois este contra o
deputado Zé do Trovão (PL-SC). Já Guilherme Boulos (PSOL-SP) – que, como
relator do caso, parece ter concluído que há “rachadinhas do bem” (cometidas
por aliados, como Janones) e “rachadinhas do mal” (a de seus opositores) e
recomendou o arquivamento do caso – bateu boca com Pablo Marçal, dublê de coach
e picareta bolsonarista que, como muitos ali, ganhou notoriedade na base do
ultraje.
Marçal, a propósito, nem deputado é, mas foi
levado à sessão por aliados, mesmo com a ordem do presidente da comissão de
permitir a presença apenas de parlamentares. Para completar o deboche, Marçal –
que, como Boulos, é pré-candidato à Prefeitura de São Paulo – usava um broche
de parlamentar, que somente os 513 deputados têm. Toda essa turma converteu a
sessão num circo grotesco, ambiente no qual muitos deles se sentem em casa.
É isto um Parlamento? Nem remotamente. É
evidente que o Congresso deve ser lugar de debates muitas vezes acirrados sobre
os rumos do País, mas há limites para o acirramento, determinados pelo decoro.
E o decoro não é uma escolha, mas uma obrigação daqueles que pretendem
representar o povo nesse debate: não se trata apenas de respeitar aquele com
quem há divergências, mas, sobretudo, de respeitar os votos recebidos pelo
adversário. Todos têm legitimidade popular para estar ali e por isso mesmo
devem ao menos tolerar uns aos outros.
Nos últimos tempos, porém, o Congresso
Nacional parece funcionar movido pelos algoritmos das redes sociais. A
transformação digital da discussão política mudou representantes que antes
acreditavam em divergência com civilidade, e a tribalização da vida pública deu
incentivos para a radicalização e a intolerância, que se tornaram ativos
eleitorais. Não raro, usa-se a política como trampolim para a lacração, como se
a prática parlamentar requeresse ser modulada pelos padrões de engajamento que
se veem nas redes sociais. E o mais grave: agem de maneira a proteger colegas
envolvidos em atos duvidosos, como pareceu o caso envolvendo Janones.
E assim o Congresso segue descendo a ladeira
da popularidade. Num levantamento do Datafolha de março deste ano, o Congresso
só perdeu para redes sociais e partidos políticos na lanterna do ranking de
confiança da população, ficando atrás das Forças Armadas, grandes empresas,
Poder Judiciário, Ministério Público, Presidência da República, Supremo
Tribunal Federal (STF) e imprensa. Consequência inevitável de um Parlamento
formado em parte por quem não pretende representar ninguém senão a si mesmo,
gente que reduziu a atividade política a uma live contínua, feita para gerar
cliques e insultos, sem nada a propor de bom para o País.
Chegou o pós-Mandela
O Estado de S. Paulo
Partido de Nelson Mandela sofre derrota
inédita em 30 anos e terá de fazer concessões
Após liderar o fim do apartheid, conduzir a
transição democrática e governar a África do Sul por 30 anos, o partido de
Nelson Mandela, o Congresso Nacional Africano (ANC, na sigla em inglês), sofreu
um choque de realidade. Na sétima eleição desde a democratização, perdeu pela
primeira vez a maioria: os votos despencaram de 57%, em 2019, para 40%. O ANC
ainda é o maior partido, mas precisará de coalizões para governar. Suas
escolhas determinarão o destino do país por muito tempo.
A primeira parte da missão do ANC foi
cumprida com relativo sucesso. Nos anos 90, ele evitou a guerra civil. Até
2009, a economia cresceu em média 3,3% ao ano. Direitos socioeconômicos foram
estendidos. Liberdades fundamentais foram consolidadas. As eleições são livres,
justas e competitivas. Sua hegemonia nacional não se traduziu em repressão aos
partidos de oposição, que conquistaram governos nas províncias. Apesar da
humilhação nas urnas agora, o ANC não contestou os resultados.
Mas o partido não conseguiu evitar a
trajetória de degradação comum aos movimentos de liberação. O poder corrompe, e
o poder longo corrompe longamente. No governo de Jacob Zuma (2009-2018), cargos
foram distribuídos não por mérito, mas lealdade, a governança foi depredada, a
corrupção se proliferou e a economia se estagnou. O atual presidente, Cyril
Ramaphosa, tentou conter a hemorragia com reformas sensatas, mas pouco
profundas. Muitos sul-africanos estão frustrados com a democracia e creem que
ela apenas acoplou às elites brancas as elites negras, relegando o resto à
pobreza.
Uma das opções do ANC é se aliar a
dissidentes radicais, como o novo partido de Zuma, uMkhonto we Sizwe (MK, 14,6%
dos votos), ou os revolucionários socialistas Combatentes da Liberdade
Econômica (EFF, 9,5%). O primeiro quer abolir o sistema judicial “ocidental” e
reescrever a Constituição para dar mais poder a chefes regionais. O segundo tem
uma plataforma radical de desapropriação e estatização. Nesse cenário, o país
entrará em processo acelerado de “venezuelização”.
A alternativa envolve compromissos com o
partido centrista de oposição, a Aliança Democrática (DA, 22% dos votos). A DA
é favorável ao livre mercado e governa com sucesso suas províncias, mas é vista
com desconfiança como o partido “dos brancos”. O ANC teria de ceder à DA a
presidência do Parlamento. O controle da pauta legislativa daria à DA uma
oportunidade de implementar seus padrões de governança. Mas, se quiser vencer
seu teto de votos, terá de incluir mais lideranças negras. Ambos correriam
riscos de perder apoio de suas alas radicais. Mas, para o bem do país, as
perdas podem ser compensadas com um governo de unidade nacional, que reúna
partidos menores, exceto o MK e o EFF.
O segundo capítulo da África do Sul pós-apartheid, o pós-Mandela, está começando. É um momento de enorme perigo, mas também de oportunidades. O ANC salvou a África do Sul da destruição e pode salvá-la de novo. Para isso, precisa salvar a si mesmo, renunciando ao canto da sereia dos radicais e fazendo concessões ao centro.
BCE abre ciclo de corte de juros nos países
desenvolvidos
Valor Econômico
BCE reduz taxas mesmo com avanço da inflação mensal e dos salários
O Banco Central Europeu (BCE) deu início à
era da redução dos juros nos países desenvolvidos, ao lado do Banco do Canadá.
Ela não terá ritmo definido a priori e dependerá da evolução da economia,
explicou a presidente do BCE, Christine Lagarde. Não foi um passo isento de
riscos: a inflação subiu um pouco na zona do euro em maio, para 2,6%, e o
próprio BCE reconhece que continuará sem chegar perto da meta de 2% em boa
parte de 2024 e de 2025. A ação do BCE e seus motivos dão uma ideia do
horizonte de possibilidades para a desmontagem das políticas monetárias
restritivas em outros países no curto prazo.
Ainda que a inflação mensal tenha avançado, o
BCE mesmo assim cortou juros porque houve “estabilidade nas previsões
inflacionárias”, afirmou Lagarde. Isso quer dizer que as expectativas estão
ancoradas e os riscos de novo afastamento dos preços em relação à meta não
existem, ou são desprezíveis. O Federal Reserve americano não tem ainda essa
certeza, e, no caso do Banco Central do Brasil, há a suspeita de que a inflação
futura esperada pode se distanciar do objetivo.
O BCE, com sua decisão, sublinhou outro
ponto. As perspectivas econômicas melhoraram e as previsões de crescimento para
o atual exercício e anos seguintes foram elevadas. Em 2024, o PIB da zona do
euro deve crescer 0,9% e não mais 0,6%, avançando para 1,4% em 2025 e 1,6% em
2026. A redução do aperto monetário começará então em um ciclo ascendente da
atividade econômica que, em tese, seria desfavorável à queda rápida do nível de
preços. A lógica do BCE, no caso, é que se os maiores juros desde a criação da
zona do euro fossem mantidos e se esperasse até que a inflação atingisse a meta
para diminuí-los, a economia poderia não se recuperar ou até mesmo correr o
risco de mergulhar em uma recessão. Ou seja, é possível reduzir juros com a
economia em crescimento. Ao fazê-lo nessa circunstância, o BC ganha maior
liberdade para dosar os próximos passos, já que não tem sobre si a urgência de
uma economia à beira da contração.
Dadas as condições específicas da economia
europeia, o BCE não esperou uma retração maior das atividades - na verdade, a
zona do euro está estagnada há 18 meses. Essa premissa é bem diferente daquela
que o Fed americano tem de considerar. A economia americana mal reduziu sua
velocidade, apesar da maior taxa de juros em 40 anos, e, enquanto não
desaquecer, não há a garantia de que o índice de preços seja domesticável. No
caso brasileiro, dúvidas parecidas rondam o Banco Central. A economia
brasileira caminha para percorrer seu terceiro ano consecutivo acima do
potencial, o que amplia a resistência a uma queda mais rápida de preços, apesar
do nível alto dos juros - 6% acima da inflação - ou até mesmo criaria um
ambiente favorável a uma nova escalada do IPCA.
O BCE resolveu reduzir os juros mesmo
enfrentando sinais desfavoráveis de indicadores que têm preocupado as
autoridades monetárias dos dois lados do Atlântico. Um deles é o avanço dos
salários acima do ritmo corrente da inflação. Na zona do euro, eles subiram
4,7% nos 12 meses encerrados em março. O mercado de trabalho apertado favorece
a pressão salarial. Em abril, a desocupação teve nova baixa a nível recorde no
bloco, de 6,4%. Nos EUA, a situação é semelhante, com a oferta de vagas ainda
superior à de trabalhadores dispostos a preenchê-las e salários avançando ao
redor de 4% ao ano. No Brasil, o reajuste dos salários tem pique idêntico,
perto do pleno emprego (7,5% no primeiro trimestre do ano).
O problema da pressão dos salários é se eles
estão correndo agora à frente dos preços para alcançá-los porque ficaram para
trás antes ou se adquiriram uma dinâmica própria à frente da inflação, por
inércia. O BCE acredita que se trata do primeiro caso. Como a inflação avançou
muito - atingiu 10% em 2022 -, os salários estão compensando a defasagem, em um
processo que, com a queda dos índices de preços, tende a se acomodar. “Ainda
que elevados, os salários estão a caminho do declínio”, disse Lagarde. É bastante
provável que o mesmo possa ser dito a respeito das pressões salariais,
mencionadas como objeto de preocupação, pelos BCs do Brasil e dos EUA.
Como reflexo de salários e mercado de
trabalho apertado, a inflação de serviços intensivos em mão de obra é um fator
preocupante para a inflação também na zona do euro. Mas o BCE acha que a
inflação está ancorada, o que lhe dá um impulso para começar a cortar os juros.
O Fed americano não está seguro disso ainda, embora as expectativas de longo
prazo dos preços nunca tenham ficado desancoradas. O BC brasileiro desconfia de
que nos serviços residem surpresas desagradáveis e voltou a apontar que as
perspectivas para a inflação saíram de prumo.
O BCE advertiu que será cauteloso e que seus próximos atos dependerão do comportamento dos indicadores econômicos, mantra que o Fed e o Banco Central também seguem. Apesar dos impulsos fiscais, que impedem a inflação de cair rapidamente, os juros serão reduzidos com o tempo. A dúvida é mais forte sobre o Brasil. Ainda assim, outra questão, bem diferente, é em que nível os juros irão estacionar. Eles devem ser maiores do que antes da pandemia nos países desenvolvidos e, se o Banco Central seguir na atual toada, bem maiores no Brasil.
Doses a mais e adesões a menos
Correio Braziliense
Especialistas brasileiros alertam para a
tendência de queda em outras coberturas, não somente no que se refere ao HPV,
mas também de vacinas que integram o calendário do Programa Nacional de
Imunizações, como sarampo e poliomielite
Pouco mais de um mês após o início da
vacinação, em dose única, contra o papiloma vírus humano (HPV), a cobertura
vacinal ainda patina em grande parte dos estados brasileiros. A decisão do
Ministério da Saúde de reduzir a aplicação de duas para uma única dose via
Sistema Único de Saúde (SUS) para as crianças e adolescentes de 9 a 14 anos foi
justamente uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que concluiu
que uma dose da vacina já oferece uma proteção significativa contra o vírus.
O grupo prioritário também inclui pessoas com
imunocomprometimento, vítimas de violência sexual e outras condições
específicas, conforme disposição do Programa Nacional de Imunizações (PNI),
podendo receber a vacina até os 45 anos. É importante lembrar que o HPV é
associado a mais de 90% dos casos de câncer de colo do útero.
À época, a ministra da Saúde, Nísia Trindade,
chegou a convocar agentes de saúde dos estados e municípios para que fizessem
uma busca ativa por adolescentes e jovens de até 19 anos que não haviam
recebido nenhuma dose do imunizante para que pudessem atualizar a carteira de
vacinas.
Fato é que os índices de cobertura seguem
baixos, embora melhores que em anos anteriores. De acordo com os dados mais
recentes, em 2023, foram aplicadas mais de 6,1 milhões de doses da vacina
contra o HPV — o maior contingente de vacinados desde 2018. Neste ano, a
cobertura vacinal chegou a 5,1 milhões de pessoas, o que corresponde a uma
elevação de 42% em relação a 2022, quando foram aplicadas pouco mais de 4
milhões de doses.
O esquema de dose única é adotado em outros
37 países, seguindo recomendações de autoridades médicas internacionais. Já os
especialistas brasileiros alertam para a tendência de queda em outras
coberturas, não somente no que se refere ao HPV, mas também de imunizantes que
já integram o calendário do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que
combatem doenças como sarampo e poliomielite, sendo que a primeira deixou de
ser considerada erradicada no Brasil em 2018, época em que foi registrado um
surto da doença, com mais de 10 mil casos e 12 óbitos.
O esforço do Ministério da Saúde envolve o
Movimento Nacional pela Vacinação, que inclui ainda as vacinas contra a
covid-19 e uma valorização maior dos serviços prestados pelo SUS. Vale lembrar
que até abril deste ano apenas 22% do público-alvo havia se vacinado contra a
gripe na rede pública, ou seja, 14,4 milhões de pessoas de um total de 75,8
milhões de doses reservadas para 2024. As unidades da Federação com as menores
porcentagens da população vacinada contra o vírus influenza são: Distrito
Federal (13,78%), Mato Grosso do Sul (14,18%), Mato Grosso (14,36%), Bahia
(14,92%) e Rio de Janeiro (17,76%).
Iniciada oficialmente em 25 de março, a campanha se estende até o fim do primeiro semestre nas regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Nordeste. No Norte, começa no segundo semestre, em decorrência de características climáticas da região. Agora é torcer para que a baixa cobertura do primeiro semestre (pelo menos por enquanto), não se repita no segundo.
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