O Globo
Saiu da Justiça de São Paulo uma tão inédita
quanto bem-vinda decisão de reconhecimento de atribuições familiares das
mulheres, sempre exigidas, nunca valorizadas. Um juiz antecipou em dois meses a
progressão para o regime semiaberto de uma detenta condenada por roubo a seis
anos e oito meses de prisão, em razão dos 180 dias de amamentação do bebê que
gestou e pariu no cárcere. A 12ª Câmara de Direito Criminal do TJ-SP acolheu o
pedido da Defensoria Pública do estado de considerar o período como trabalho, válido,
portanto, para a remição da pena.
A decisão do desembargador Sérgio Mazina Martins é de fins de abril, mas se tornou pública nesta semana. A jornalista Isabela Leite reportou no portal g1 a história de LKSO, cuja progressão foi rejeitada na primeira instância e concedida na segunda. O defensor público Douglas Schauerhuber Nunes alegou que a detenta permaneceu com o filho na ala de amamentação da unidade prisional e, com o entendimento de que a atividade está compreendida na economia do cuidado, pleiteou a antecipação da vigência do regime fechado para o semiaberto. O conceito engloba as funções desempenhadas por pessoas que se dedicam às necessidades físicas e psicológicas de terceiros, sendo as tarefas remuneradas ou não.
A mulher, que já cumpriu dois anos e oito
meses de prisão, receberá o benefício em fins de setembro de 2024, em vez de
novembro. A decisão de segunda instância é inovadora, porque equipara a
amamentação a outras atividades laborais ou educacionais. A Lei de Execução
Penal estabelece que o condenado em regime fechado ou semiaberto pode reduzir
parte do tempo da pena por trabalho ou estudo. Cada três dias de atividade
diminui um da pena.
No Superior Tribunal de Justiça (STJ),
há jurisprudência para conceder o benefício em caso de estudo por conta própria
ou à distância, tarefas de artesanato e atividades em coral. A remição por
leitura também foi regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021.
Assim, faz todo o sentido admitir o cuidado com filhos dentro da unidade
prisional como ofício apto à remição.
O desembargador Mazina Martins foi sensível à
tese e, para confirmar que amamentação é trabalho, evocou até as amas de leite,
mulheres escravizadas que tinham como dever alimentar os filhos de outras, não
raro abandonando seus próprios. Lembrou os hospitais que montam e gerenciam
bancos de leite e, claro, os direitos das crianças.
— Amamentar sempre foi um jeito de trabalhar
porque sempre foi também um meio de dividir, de compartilhar, e, mais ainda, um
jeito importante de coexistir — escreveu. E continuou:
— Ora, se há remição até na costura manual de
bolas de futebol, na montagem de antenas, no empacotamento de luvas ou na
leitura de livros, então muito mais importará, e dirá respeito ao povo do
Brasil, a remição de penas na amamentação de crianças recém-nascidas.
A ONG Think Olga, dedicada às questões de
gênero, estimou que mulheres, nos primeiros seis meses de vida dos filhos,
dedicam 650 horas à amamentação. São, no mínimo, seis meses de atividade, sete
dias por semana, oito a 12 vezes por dia, com duração de 15 a 20 minutos.
Consome tempo, energia, saúde; exige disponibilidade e dedicação. Ana Amélia
Camarano, demógrafa no Ipea e uma das grandes especialistas do Brasil em
economia do cuidado, festejou a decisão do TJ-SP. Amamentação, ela concorda, é
trabalho reprodutivo e, portanto, economia do cuidado:
— É sinal de que estamos avançando. Devagar,
mas estamos. A amamentação faz parte. A licença-maternidade pode ser estendida
de quatro para seis meses para mães que amamentam. Grandes empresas precisam
oferecer tempo ou espaço para as funcionárias amamentarem. É muito bom esse
entendimento no sistema penal.
A decisão beneficia uma mãe encarcerada, mas
serve de lição a um país que mal compreende, e menos ainda valoriza, o trabalho
reprodutivo. O tempo que mulheres dedicam aos afazeres domésticos e aos
cuidados de pessoas, sejam filhos, doentes ou idosos, é o dobro dos homens.
Afora a exaustão provocada pela dupla — às vezes, tripla — jornada, são menos
horas disponíveis para ocupações remuneradas. Isso lima a ascensão profissional
e reduz a renda média feminina. Ana Amélia estima que o Brasil tenha cerca de
47,5 milhões de pessoas envolvidas em cuidados, dos quais 78% são mulheres e
55% são negras.
Em fins do ano passado, os ministérios do
Desenvolvimento Social (MDS) e da Mulher anunciaram a Política Nacional de
Cuidados. Laís Abramo, secretária nacional de Cuidados e Família do MDS,
afirmou que “a organização social dos cuidados no Brasil é injusta e desigual,
está baseada em uma desproporcional responsabilização das famílias,
especialmente das mulheres”. E lembrou que 30% das mulheres — sobretudo, as
negras — não procuram emprego devido ao trabalho doméstico e de cuidados não
remunerados. A iniciativa tem como objetivo reorganizar e dividir a
responsabilidade pelas tarefas entre homens e mulheres; entre família,
comunidade, Estado, mercado e empresas. Como ensina o provérbio africano: “É
preciso uma aldeia para educar uma criança”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário