Folha de S. Paulo
'Apocalipse nos Trópicos', criticado por usar
Silas Malafaia como fio condutor, mostra sistema de crenças em apoio a
bolsonarismo
Uma falha involuntária do documentário "Apocalipse
nos Trópicos", de Petra Costa, não deixa de ter consequências para a
discussão sobre o lugar do chamado mundo evangélico no
universo social e político brasileiro. Anterior aos dados do Censo, o filme e
seu personagem condutor, o pastor Silas
Malafaia, assumem que os evangélicos no Brasil, em crescimento acelerado,
já ultrapassariam 30% da população.
As apurações recentes do IBGE revelaram um freio nessa expansão —que, na realidade, chegou a 26,9% da população. Essa reversão de expectativas quanto a um país fadado a se tornar majoritariamente evangélico, como imaginavam alguns, passa a ser um ponto a considerar no entendimento da cena religiosa no país. Um dos aspectos é o triunfalismo de certa elite de pastores que ascendeu em vertentes pentecostais por meio do business da fé e passou a arregimentar fiéis para sustentar um projeto político teocrático de ocupação do Estado com evidente viés reacionário. A ideia de fazer do Brasil um país "governado por Jesus" parecia questão de tempo.
Mas o que afinal desejaria Jesus aqui na
terra antes de seu retorno pós-apocaliptico? Ver seu rebanho no poder, diz
Malafaia, que fala como se soubesse tudo sobre o que quer e não quer o filho de
Deus. E o que não quer? Casamento gay, por exemplo, de modo algum. Comunismo,
com ideias socioeconômicas coletivistas e igualitárias, menos ainda. Jesus,
aliás, como vemos no documentário, é contra a Escola de
Frankfurt —a teoria crítica de Max Horkheimer e Theodor Adorno.
Tampouco simpatiza com cultos de matriz africana e até coisas que não existem,
como a intenção de Lula de instalar banheiros unissex em escolas e fechar
igrejas.
Sempre se poderá dizer que a diretora do
documentário tem lado, é progressista e admira Lula. Em sendo de esquerda,
teria forçado a mão para caracterizar Malafaia como referência de pastor,
difundindo assim um estereótipo e promovendo uma redução da diversidade desse
segmento religioso. Uma crítica, de fato, a levar em conta. Malafaia poderia
ter sido mais um e não "o" pastor do documentário.
Malafaia,
contudo, não é uma fantasia ou invencionice da esquerda preconceituosa.
Embora tenha perdido estatura, é personagem midiático que se mostrou poderoso
no interregno histórico pelo qual o filme se interessa. Exerceu influência na
ascensão de Jair Bolsonaro e de seu cortejo de ignorantes e golpistas a falar
línguas estranhas e dar pulinhos epifânicos, como a ex-primeira dama Michelle,
porque um "terrivelmente evangélico" chegou ao STF.
Não há dúvida de que as igrejas evangélicas, assim como outras tantas entidades
religiosas, são um porto seguro que oferece conforto espiritual, pertencimento
comunitário e apoio para muita gente. Isso não basta, porém, para inspirar uma
atitude condescendente com a ameaça que a instrumentalização política da
religião representa para uma sociedade republicana e democrática. Não vale só
para evangélicos, embora esse grupo seja um "case" recente no Brasil.
O filme, com algumas passagens
impressionantes, tem um ponto de vista relevante sobre a história do complexo
de crenças presente no ataque à democracia no Brasil até o fatídico 8 de
Janeiro. Vale conferir.
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