O Globo
A interação (negativa) dos brasileiros no
perfil do presidente americano foi intensa a ponto de os administradores
restringirem comentários na conta
Quase um ano atrás, o artigo de uma
jornalista americana sobre o impacto da iminente suspensão no Brasil do X,
de Elon
Musk, jogou luz sobre a relevância do ativismo digital no país. Citando um
internauta, Taylor Lorenz, fundadora da User Magazine, uma newsletter sobre
tecnologia e cultura on-line, escreveu que o bloqueio do antigo Twitter por
descumprimento de uma ordem judicial do ministro Alexandre
de Moraes, do STF,
equivaleria ao incêndio da Biblioteca de Alexandria nas comunidades de fãs. O
exagero da metáfora ajuda a dimensionar a força vocal dos brasileiros nas
redes.
— As contas brasileiras ressuscitaram sozinhas programas de televisão, filmes, músicas e celebridades americanas — publicou Lorenz.
Afora as inserções culturais, brotaram da
internet brasileira inúmeras mobilizações bem-sucedidas: das jornadas de junho
de 2013 à luta por direitos de pessoas LGBTQIA+; do antirracismo à preservação
da Amazônia; contra a PEC das Praias, o PL do Estupro, o monitoramento do Pix.
Os brasileiros na internet perturbaram tanto o Itamaraty quanto
o governo indonésio pela demora no resgate de Juliana Marins, morta em
decorrência de uma queda na trilha do Monte Rinjani; atrapalharam a trajetória
da espanhola Karla
Sofía Gascón, protagonista de “Emília Perez”, ao Oscar 2025. A articulação
nas redes em prol de indivíduos, artistas, atletas, cidades e do país já é
citada como soft power, espécie de ativo diplomático imaterial, tal como a
MPB, o carnaval,
o futebol.
Por tudo isso, causa espanto que a extrema
direita — campo político que, por anos, soube usar a internet para dominar o
debate público — tenha subdimensionado a força vocal dos brasileiros contra a
retaliação pelo presidente dos Estados Unidos.
Apenas na manhã de ontem, a empresa de pesquisas Nexus identificou no X 240
milhões de impressões e 9,1 milhões de curtidas relacionadas à taxação em 50%
das exportações brasileiras pelos Estados Unidos e à resposta do
presidente Lula.
“Trump” foi primeiro nos trending topics, seguido de “respeita o Brasil”, por
respeito à soberania.
— O volume de menções foi muito maior do que
em dias normais, indicando que a decisão de Donald Trump de taxar a economia
brasileira em 50% mobilizou um sentimento nacionalista nas redes sociais. No X,
as hashtags em defesa do Brasil são muito mais mencionadas do que as críticas
ao governo brasileiro — disse Marcelo Tokarski, CEO da Nexus.
A interação (negativa) dos brasileiros no
perfil de Trump foi intensa a ponto de os administradores restringirem
comentários na conta do presidente americano. Os comentários foram
predominantemente negativos nas contas de bolsonaristas, sobretudo, Eduardo
Bolsonaro, filho do ex-presidente e deputado licenciado em autoexílio nos
Estados Unidos. Ele reivindicou em carta e vídeo o protagonismo pela retaliação
ao Brasil. Jair
Bolsonaro e os governadores Tarcísio
de Freitas e Romeu Zema,
da mesma aliança política, tampouco foram poupados. Saem de São Paulo e
de Minas
Gerais, respectivamente, um terço e 11% das exportações do Brasil para os
Estados Unidos.
O presidente da República evocou a soberania
brasileira para responder ao colega americano, que anunciou o tarifaço em
documento tornado público sem passar pelos canais oficiais. Grosseria
inimaginável entre nações que completaram 200 anos de relações diplomáticas.
Donald Trump pode ter se indignado com a reunião do grupo do Brics no
Rio de Janeiro, no último fim de semana; com a perspectiva de o dólar, algum
dia, ser substituído por moedas locais no comércio entre o bloco; com a
condenação por Lula do ataque recente ao Irã. Mas nada disso
apareceu na carta endereçada a Lula.
Planalto e Itamaraty entenderam que a
condição apresentada para rever o choque tarifário marcado para 1º de agosto é
a anistia a Jair Bolsonaro e seu grupo, bem como a liberdade irrestrita para
plataformas digitais dos Estados Unidos no Brasil. São exigências que atacam a
autonomia, não do Executivo, mas do Judiciário. Inegociáveis. Bolsonaro é
julgado pela trama golpista que deu na destruição de sedes dos Poderes no 8 de
Janeiro de 2023; big techs estão submetidas à lei brasileira e serão
responsabilizadas, sobretudo, por crimes cometidos contra crianças e
adolescentes.
Os ministérios das Relações Exteriores, do
Desenvolvimento e da Fazenda estudam, com o empresariado, caminhos possíveis
para negociações comerciais — e apenas isso. Os Estados Unidos são destino de
12% das exportações brasileiras; parceiro importante em aviação, peças, chapas
de aço e alumínio, suco de laranja, café, celulose. Décadas atrás, pesavam o
dobro. Um caminho é chamar atenção para a complementaridade das cadeias
produtivas dos dois países; outro, para o impacto do tarifaço no preço final de
mercadorias para os consumidores dos Estados Unidos. Por fim, se for preciso,
retaliar em reciprocidade, não tarifando importações, mas buscando áreas
estratégicas para os Estados Unidos, como patentes de medicamentos, royalties e
propriedade intelectual. São itens da balança de serviços, na qual o superávit
dos Estados Unidos com o Brasil é muitas vezes superior ao comercial. Por
interesses corporativos, das big techs, e personalíssimos, dos Bolsonaros, o
presidente americano ameaça dois séculos de relações amistosas e rentáveis para
seu próprio território.
Nenhum comentário:
Postar um comentário