Livro do pesquisador carioca Fernando Rodrigues revela a política discriminatória que rejeitava negros, judeus e filhos de estrangeiros nas escolas militares para evitar a ""contaminação"" da elite do País
Leonencio Nossa
É uma história que, por ordem do Exército, deveria ter sido queimada. Um livro recém-lançado reconstitui os exames de seleção das Escolas de Formação de Oficiais, entre 1931 e 1946, que rejeitavam candidatos filhos de negros, judeus, islâmicos, italianos, de mulheres separadas ou de pais barbeiros e peixeiros. Nas 240 páginas de Indesejáveis (Editora Paco Editorial), o historiador Fernando Rodrigues mostra como os governos revolucionário, constitucionalista e ditatorial de Getúlio Vargas tentaram moldar uma elite militar sem homens considerados de "raça inferior".
"É de cor." Essa constatação foi suficiente para o Exército rejeitar o pedido de um estudante para ingressar na Escola Militar de Realengo em 1941, no auge do Estado Novo. A caneta vermelha do avaliador das fichas de inscrição dos candidatos, geralmente o próprio ministro da Guerra, foi implacável também com filhos de estrangeiros. Um dos candidatos considerados "inaptos" era filho de pais "italianos sem significação social", segundo registrou o avaliador.
Outro candidato foi rejeitado por ser filho de barbeiro. "A profissão de barbeiro, embora honesta, é servil e a gorjeta regulava sua situação econômica, sendo que em tal ambiente não é de se esperar uma formação moral sólida, como a que deve ter um oficial."
Nos últimos seis anos, Fernando Rodrigues, de 46 anos, doutor em história pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), analisou 16 mil fichas guardadas no Arquivo Histórico do Exército. Por norma baixada pelo então ministro - e depois presidente - Eurico Gaspar Dutra, os documentos deveriam ser incinerados após dois anos. Não se sabe o motivo de o material ter permanecido nas estantes do Exército. No período analisado pelo pesquisador, estiveram nos bancos das escolas militares homens que teriam influência na vida do Exército e do País na segunda metade do século 20, especialmente durante o regime militar - Emílio Médici e Ernesto Geisel passaram pela Escola de Realengo nos anos 1920. A pesquisa analisa também o período entre 1905 a 1929.
Rejeitados. Na função de ministro da Guerra, Dutra analisou pessoalmente parte das fichas de ingresso nas escolas militares. Para ele, candidatos "de cor" não podiam ser aceitos porque as escolas formariam os futuros oficiais que iriam dirigir o Exército e defender a Nação. A ficha dos rejeitados levava um "arquive-se".
Rodrigues destaca que, primeiro, o Exército excluiu candidatos que pudessem ser indisciplinados ou associados à política. Depois, discriminou negros, judeus e islâmicos. "Entre 1931 a 1946, observei o esforço institucional na formação de uma elite militar no Exército Brasileiro, no contexto das tensões estabelecidas pela construção histórica das relações políticas, sociais e culturais na Escola Militar", escreve o historiador.
Ao Estado, Rodrigues disse que as ideias racistas e discriminatórias não surgiram dentro do Exército. A instituição, como outras, foi atingida pelas ideias correntes da época. "O que mais me marcou na pesquisa foi perceber a intenção de criar uma elite militar que atendesse aos interesses nacionais, que na verdade eram interesses de uma política sistemática que privilegiava brancos e católicos, influenciada até pela intelectualidade e pelas revistas da época."
Ele ressalta que o tema racismo e antissemitismo no Exército não é novo. "O ineditismo encontra-se na articulação do pensamento político de formação de uma elite militar em um Instituto de Ensino Superior e nos tipos de discriminação que foram detectados ao se analisar o acesso dos candidatos, buscando compreender as relações com a sociedade brasileira e compreender melhor a cultura corporativa dentro do Exército."
Ao analisar as fichas de ingresso na Escola Militar em 1942, o pesquisador constatou que 417 candidatos foram considerados "indesejáveis". Destes, foram rejeitados 53 candidatos por serem "de cor", 19 por virem de famílias de baixa condição social, 84 filhos de pais estrangeiros, 12 de pais de origem islâmica e 3 de origem judia. Os demais tiveram problemas como falta de documentação, má conduta em escolas militares e problemas de saúde.
As medidas para impedir a entrada de negros nas escolas militares foram tomadas quando ainda se usava a expressão "raça inferior". "O negro era o grande culpado pela miscigenação e pelo enfraquecimento do povo brasileiro", destaca o pesquisador.
"Neste clima de elitização social, com o domínio da raça branca em detrimento do judeu, do muçulmano e do negro, crescia o interesse na construção da identidade nacional", explica Rodrigues. "O contexto internacional articulava-se às tradições brasileiras racistas e religiosas que, impregnadas pelo nacionalismo crescente, apoiaram as práticas discriminatórias. Os ideais liberais foram logo substituídos pelo culto à força, à ordem, à disciplina, à personificação do chefe político, à raça pura e aos heróis nacionais."
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Leonencio Nossa
É uma história que, por ordem do Exército, deveria ter sido queimada. Um livro recém-lançado reconstitui os exames de seleção das Escolas de Formação de Oficiais, entre 1931 e 1946, que rejeitavam candidatos filhos de negros, judeus, islâmicos, italianos, de mulheres separadas ou de pais barbeiros e peixeiros. Nas 240 páginas de Indesejáveis (Editora Paco Editorial), o historiador Fernando Rodrigues mostra como os governos revolucionário, constitucionalista e ditatorial de Getúlio Vargas tentaram moldar uma elite militar sem homens considerados de "raça inferior".
"É de cor." Essa constatação foi suficiente para o Exército rejeitar o pedido de um estudante para ingressar na Escola Militar de Realengo em 1941, no auge do Estado Novo. A caneta vermelha do avaliador das fichas de inscrição dos candidatos, geralmente o próprio ministro da Guerra, foi implacável também com filhos de estrangeiros. Um dos candidatos considerados "inaptos" era filho de pais "italianos sem significação social", segundo registrou o avaliador.
Outro candidato foi rejeitado por ser filho de barbeiro. "A profissão de barbeiro, embora honesta, é servil e a gorjeta regulava sua situação econômica, sendo que em tal ambiente não é de se esperar uma formação moral sólida, como a que deve ter um oficial."
Nos últimos seis anos, Fernando Rodrigues, de 46 anos, doutor em história pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), analisou 16 mil fichas guardadas no Arquivo Histórico do Exército. Por norma baixada pelo então ministro - e depois presidente - Eurico Gaspar Dutra, os documentos deveriam ser incinerados após dois anos. Não se sabe o motivo de o material ter permanecido nas estantes do Exército. No período analisado pelo pesquisador, estiveram nos bancos das escolas militares homens que teriam influência na vida do Exército e do País na segunda metade do século 20, especialmente durante o regime militar - Emílio Médici e Ernesto Geisel passaram pela Escola de Realengo nos anos 1920. A pesquisa analisa também o período entre 1905 a 1929.
Rejeitados. Na função de ministro da Guerra, Dutra analisou pessoalmente parte das fichas de ingresso nas escolas militares. Para ele, candidatos "de cor" não podiam ser aceitos porque as escolas formariam os futuros oficiais que iriam dirigir o Exército e defender a Nação. A ficha dos rejeitados levava um "arquive-se".
Rodrigues destaca que, primeiro, o Exército excluiu candidatos que pudessem ser indisciplinados ou associados à política. Depois, discriminou negros, judeus e islâmicos. "Entre 1931 a 1946, observei o esforço institucional na formação de uma elite militar no Exército Brasileiro, no contexto das tensões estabelecidas pela construção histórica das relações políticas, sociais e culturais na Escola Militar", escreve o historiador.
Ao Estado, Rodrigues disse que as ideias racistas e discriminatórias não surgiram dentro do Exército. A instituição, como outras, foi atingida pelas ideias correntes da época. "O que mais me marcou na pesquisa foi perceber a intenção de criar uma elite militar que atendesse aos interesses nacionais, que na verdade eram interesses de uma política sistemática que privilegiava brancos e católicos, influenciada até pela intelectualidade e pelas revistas da época."
Ele ressalta que o tema racismo e antissemitismo no Exército não é novo. "O ineditismo encontra-se na articulação do pensamento político de formação de uma elite militar em um Instituto de Ensino Superior e nos tipos de discriminação que foram detectados ao se analisar o acesso dos candidatos, buscando compreender as relações com a sociedade brasileira e compreender melhor a cultura corporativa dentro do Exército."
Ao analisar as fichas de ingresso na Escola Militar em 1942, o pesquisador constatou que 417 candidatos foram considerados "indesejáveis". Destes, foram rejeitados 53 candidatos por serem "de cor", 19 por virem de famílias de baixa condição social, 84 filhos de pais estrangeiros, 12 de pais de origem islâmica e 3 de origem judia. Os demais tiveram problemas como falta de documentação, má conduta em escolas militares e problemas de saúde.
As medidas para impedir a entrada de negros nas escolas militares foram tomadas quando ainda se usava a expressão "raça inferior". "O negro era o grande culpado pela miscigenação e pelo enfraquecimento do povo brasileiro", destaca o pesquisador.
"Neste clima de elitização social, com o domínio da raça branca em detrimento do judeu, do muçulmano e do negro, crescia o interesse na construção da identidade nacional", explica Rodrigues. "O contexto internacional articulava-se às tradições brasileiras racistas e religiosas que, impregnadas pelo nacionalismo crescente, apoiaram as práticas discriminatórias. Os ideais liberais foram logo substituídos pelo culto à força, à ordem, à disciplina, à personificação do chefe político, à raça pura e aos heróis nacionais."
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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