José Murilo Carvalho diz que Exército imaginado por general de Vargas é bem diferente do concebido no início da República
Leonêncio Nossa
Um dos mais destacados historiadores brasileiros da atualidade, José Murilo de Carvalho, de 71 anos, observa que o Exército imaginado pelo general Góis Monteiro, um dos homens fortes do governo Vargas, era bem diferente da instituição concebida por Benjamin Constant no início da República. Doutor pela Universidade Stanford (EUA), Carvalho é autor do clássico Os Bestializados. De O Rio de Janeiro e a República Que não Foi e do recente best-seller Pedro II. Ser ou não Ser.
Quais foram os impactos da recriação do Exército durante a ditadura Vargas na vida da instituição e do País nas décadas seguintes?
O principal foi a transformação do Exército em poderoso ator político a serviço da construção do Estado. De 1889 até 1930, a instituição era mais foco de oposição e de revoltas do que de ordem. As reformas procuraram reduzir os conflitos internos, fortalecer a hierarquia, enfatizar o profissionalismo, definir um papel para a instituição. O espírito da reforma reflete-se na frase de Góis Monteiro, que, como tenente-coronel, comandou a ação militar de 1930: "É preciso fazer a política do Exército e não política no Exército". Afastar o Exército da política partidária era condição indispensável para que ele pudesse agir em bloco.
O Exército da ditadura militar absorveu mais os ideais do Estado Novo ou as doutrinas e concepções militares do século 19 e do começo do 20?
O Exército da ditadura era o mesmo que vinha sendo reformado desde 1930. Os condestáveis do Estado Novo, os generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, já estavam presentes na cúpula militar desde 1933. No Estado Novo, eles monopolizaram o ministério e a chefia do Estado-Maior. Foram eles também os principais agentes da deposição de Vargas. A nova visão do papel do Exército incutida após 1930 ajustava-se às preocupações que depois se consolidaram no Estado Novo: fortalecimento do Estado Nacional contra o que consideravam excessos do federalismo, ênfase na ordem, exacerbada pela luta ideológica trazida do cenário internacional, reformas de cima para baixo.
A tentativa de disciplinar o Exército e acabar com a fragmentação de poderes dos militares criou uma elite à parte das elites econômica, social e política?
Tudo começou antes do Estado Novo e eu diria que os esforços para unificar o Exército ajudaram a viabilizar o Estado Novo, isto é, dar apoio militar a Vargas. Se a unificação estivesse completa, provavelmente Góis Monteiro poderia ter assumido a ditadura, pois vontade não lhe faltava. A eliminação da política dentro do Exército exigiu um afastamento em relação à sociedade buscado por várias medidas: fortalecimento do corpo de oficiais, barreiras à promoção de praças ao oficialato, preparação ideológica, maior seletividade no recrutamento para os colégios militares, escolas preparatórias e Escola Militar. Hoje se diria que buscavam blindar o Exército contra influências externas. Mas já no Estado Novo outro tipo de contato se estabeleceu. A nova ênfase no desenvolvimento industrial aproximou militares de setores empresariais da época.
O estudo do historiador Fernando Rodrigues indica que o Exército adotou normas racistas e discriminatórias nos seus processos de seleção.
Ainda não li o trabalho citado. O Estado Novo, sem dúvida, exacerbou as medidas discriminatórias. O relatório secreto de 1940 indicava os critérios de exclusão de candidatos: nacionalidade, religião, orientação política, condições morais. Segundo depoimento de Nelson Werneck Sodré, que foi oficial de recrutamento, na prática eram discriminados judeus, filhos de estrangeiros, filhos de mulheres separadas dos maridos e "pretos". No Império e na Primeira República, o problema era oposto. De um lado, obrigar todos ao serviço militar, de outro, atrair a classe alta.
O que explica o distanciamento hoje das demais forças militares das elites econômica, cultural e política?
São restos dos ressentimentos gerados pela ditadura, que se aplicam sobretudo às áreas cultural e política. As coisas, no entanto, já estão mudando. Na área acadêmica já existem vários exemplos de aproximação e cooperação. O Brasil caminha para ter Forças Armadas voltadas para sua profissão, alheias à política partidária, em contato com os setores da sociedade em torno de problemas de interesse nacional. Só falta remover o último obstáculo, a questão dos desaparecidos durante a ditadura.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
Leonêncio Nossa
Um dos mais destacados historiadores brasileiros da atualidade, José Murilo de Carvalho, de 71 anos, observa que o Exército imaginado pelo general Góis Monteiro, um dos homens fortes do governo Vargas, era bem diferente da instituição concebida por Benjamin Constant no início da República. Doutor pela Universidade Stanford (EUA), Carvalho é autor do clássico Os Bestializados. De O Rio de Janeiro e a República Que não Foi e do recente best-seller Pedro II. Ser ou não Ser.
Quais foram os impactos da recriação do Exército durante a ditadura Vargas na vida da instituição e do País nas décadas seguintes?
O principal foi a transformação do Exército em poderoso ator político a serviço da construção do Estado. De 1889 até 1930, a instituição era mais foco de oposição e de revoltas do que de ordem. As reformas procuraram reduzir os conflitos internos, fortalecer a hierarquia, enfatizar o profissionalismo, definir um papel para a instituição. O espírito da reforma reflete-se na frase de Góis Monteiro, que, como tenente-coronel, comandou a ação militar de 1930: "É preciso fazer a política do Exército e não política no Exército". Afastar o Exército da política partidária era condição indispensável para que ele pudesse agir em bloco.
O Exército da ditadura militar absorveu mais os ideais do Estado Novo ou as doutrinas e concepções militares do século 19 e do começo do 20?
O Exército da ditadura era o mesmo que vinha sendo reformado desde 1930. Os condestáveis do Estado Novo, os generais Eurico Gaspar Dutra e Góis Monteiro, já estavam presentes na cúpula militar desde 1933. No Estado Novo, eles monopolizaram o ministério e a chefia do Estado-Maior. Foram eles também os principais agentes da deposição de Vargas. A nova visão do papel do Exército incutida após 1930 ajustava-se às preocupações que depois se consolidaram no Estado Novo: fortalecimento do Estado Nacional contra o que consideravam excessos do federalismo, ênfase na ordem, exacerbada pela luta ideológica trazida do cenário internacional, reformas de cima para baixo.
A tentativa de disciplinar o Exército e acabar com a fragmentação de poderes dos militares criou uma elite à parte das elites econômica, social e política?
Tudo começou antes do Estado Novo e eu diria que os esforços para unificar o Exército ajudaram a viabilizar o Estado Novo, isto é, dar apoio militar a Vargas. Se a unificação estivesse completa, provavelmente Góis Monteiro poderia ter assumido a ditadura, pois vontade não lhe faltava. A eliminação da política dentro do Exército exigiu um afastamento em relação à sociedade buscado por várias medidas: fortalecimento do corpo de oficiais, barreiras à promoção de praças ao oficialato, preparação ideológica, maior seletividade no recrutamento para os colégios militares, escolas preparatórias e Escola Militar. Hoje se diria que buscavam blindar o Exército contra influências externas. Mas já no Estado Novo outro tipo de contato se estabeleceu. A nova ênfase no desenvolvimento industrial aproximou militares de setores empresariais da época.
O estudo do historiador Fernando Rodrigues indica que o Exército adotou normas racistas e discriminatórias nos seus processos de seleção.
Ainda não li o trabalho citado. O Estado Novo, sem dúvida, exacerbou as medidas discriminatórias. O relatório secreto de 1940 indicava os critérios de exclusão de candidatos: nacionalidade, religião, orientação política, condições morais. Segundo depoimento de Nelson Werneck Sodré, que foi oficial de recrutamento, na prática eram discriminados judeus, filhos de estrangeiros, filhos de mulheres separadas dos maridos e "pretos". No Império e na Primeira República, o problema era oposto. De um lado, obrigar todos ao serviço militar, de outro, atrair a classe alta.
O que explica o distanciamento hoje das demais forças militares das elites econômica, cultural e política?
São restos dos ressentimentos gerados pela ditadura, que se aplicam sobretudo às áreas cultural e política. As coisas, no entanto, já estão mudando. Na área acadêmica já existem vários exemplos de aproximação e cooperação. O Brasil caminha para ter Forças Armadas voltadas para sua profissão, alheias à política partidária, em contato com os setores da sociedade em torno de problemas de interesse nacional. Só falta remover o último obstáculo, a questão dos desaparecidos durante a ditadura.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO
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