As manifestações de junho (que continuaram em julho) despertaram toda uma sorte de tentativas de interpretação das razões que as motivaram, nenhuma delas completamente satisfatória. Em parte, isso se deve a que as manifestações tiveram diferentes fases e, em cada uma delas, mudavam os motivos mais evidentes e a composição social e política dos manifestantes.
Mesmo pesquisas feitas com os que protestavam foram incapazes de diagnosticar exatamente o ocorrido, já que muito mais a fotografavam um momento do que revelavam o todo. A enquete do Datafolha feita no dia 20 de junho em São Paulo, e aceitando mais de uma motivação, mostrava que 50% dos manifestantes naquele dia declaravam ter no combate à corrupção sua principal causa. Em seguida vinham: a queda na tarifa de transporte, com 32%; o protesto contra os políticos, com 27%; a melhora da qualidade do transporte, com 19%; e o rechaço à PEC 37, que retirava poderes investigativos do Ministério Público, com 16%.
Outra enquete, essa do Ibope, feita no mesmo dia, porém em sete capitais do Sul, Sudeste e Nordeste, revelava um cenário apenas parcialmente distinto. O ambiente político (que agregava corrupção, rechaço aos políticos e outros assuntos) era a causa principal para 65% dos manifestantes; o transporte público (juntando um conjunto de temas correlatos) somava 53,7%; os gastos da Copa eram lembrados por 31%; a saúde por 36,7%; a educação por 30%; a PEC 37 por 12%. O funcionamento da justiça e segurança pública eram causa de 10%, enquanto o rechaço à ação violenta da polícia e a defesa do direito de manifestação motivavam 4%. Outros assuntos, somados, perfaziam 7,5%.
A baixa qualidade do Estado como um todo é preocupante
O momento desses levantamentos foi aquele em que já se havia ultrapassado o teor restrito das primeiras manifestações (focadas no transporte público) e já havia ocorrido a reação à ação truculenta da polícia (em particular a desferida na quinta-feira, dia 13 de junho, em São Paulo), que motivou o engrossamento do movimento e sua reconfiguração societária e ideológica. Naquela hora, o ganho de importância da temática da corrupção indicava claramente que já haviam se tornado predominantes os manifestantes das altas classes médias escolarizadas, politicamente à direita do Movimento Passe Livre. Contudo, as bandeiras deste ainda se faziam presentes, como os números das enquetes indicavam.
Desconsideremos, por ora, os desvios antidemocráticos que se fizeram presentes nessas mobilizações desde o início, como a presença de extremistas de diferentes orientações ideológicas, de criminosos comuns convertidos em vândalos (como os atuantes no Rio nas últimas semanas) e de meros valentões irresponsáveis (como o que destruiu a sede da Prefeitura de São Paulo, em 18 de junho). Feito isto, nota-se que há um ponto comum à miríade de motivos elencados pelos manifestantes como justificativa para sua participação: a baixa qualidade do Estado brasileiro.
Tal baixa qualidade do Estado pode ser identificada nos diversos temas. Em parte, é a baixa qualidade tanto dos procedimentos dos agentes estatais, como deles próprios, algo manifesto no rechaço à corrupção e aos políticos. Trata-se também da baixa qualidade das políticas públicas, sejam elas de transporte, saúde, educação, segurança, ou no estabelecimento de prioridades justificáveis, como evidenciado no rechaço aos megaeventos esportivos. Se tomarmos outras pesquisas, que aferem a confiança nas instituições, como o ICJBrasil, feito pela Escola de Direito de São Paulo, da FGV, veremos que a população também não avalia positivamente outras instituições estatais, como a polícia e o Judiciário.
Ao final de 2012, o ICJBrasil mostrava que apenas o Ministério Público (53%) e as Forças Armadas (71%) contavam com a confiança de mais da metade dos brasileiros, entre as instituições estatais consideradas - o Congresso e os partidos ficavam na lanterna. Porém, não se trata apenas de uma questão de confiança - embora ela seja importante, tanto que é uma das motivações das pessoas irem às ruas. O ponto é que de pouco adianta os cidadãos confiarem em Forças Armadas sucateadas, desaparelhadas e sem capacidade de desincumbir-se a contento de suas tarefas. De certa forma, pode-se dizer que a população apenas confia nas Forças Armadas porque não tem instrumentos para aferir cotidianamente o seu mal funcionamento, da mesma forma como consegue fazer com o transporte, a saúde, a educação, a polícia ou a conduta dos políticos.
A insatisfação generalizada dos cidadãos com a qualidade dos serviços públicos, porém, é um bom indicador da baixa qualidade do Estado brasileiro. Tal qual aquele cliente que vai ao restaurante e nota que a comida está péssima, embora não saiba bem o motivo para isso (se o cozinheiro é ruim, a receita está errada ou os ingredientes estragados), o cidadão percebe que o Estado funciona mal ao provar de seus serviços, embora decerto não tenha um diagnóstico preciso das razões pelas quais isto ocorre. A forma mais evidente que a democracia oferece para a solução desse problema é a eleição: mudam-se os dirigentes de forma a mudar as políticas.
O problema é que nem sempre a solução é tão simples, ou tão rápida. Quando os políticos e seus partidos se convertem numa corporação profissional, com interesses e uma ética próprios - paradoxalmente avessos aos de seus representados -, funciona deficientemente a competição democrática, que deveria regular o sistema. Desse modo, a alternância no poder pode mudar diversas políticas, mas não altera as práticas fundamentais do "fazer política".
Ademais, há partes do Estado que não são diretamente afetadas pela competição democrática, como a burocracia pública - incluídas aí as polícias e o Judiciário. Operando de costas para a sociedade, muitos agentes desse Estado imaginam ser função dela servir-lhe, em vez do contrário. Mudá-lo demanda um processo longo e difícil de reformas. E não se trata dessa pseudopanaceia universal, a reforma política. Trata-se da já esquecida e indispensável reforma do Estado.
Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico
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